Julgar

O pequeno esforço intelectual que apresento ao leitor é o resultado das especulações filosóficas feitas com base em um vácuo deixado na filosofia de Hannah Arendt. Infelizmente, ela morreu antes de concluir a terceira parte do livro “A vida do espírito”.

Usarei aqui alguns elementos da filosofia de Heidegger, cuja influência no pensamento da filósofa radicada nos EUA é evidenciado pela correspondência de ambos:

“A tese kantiana sobre o ser é um trabalho maravilhoso. Ao lê-lo na viagem de volta, percebi de imediato como ele se compõe harmonicamente com a lembrança de nossas conversas e do que você apresentou no seu curso. Estou enviando em anexo um aforismo de Kafka. Pensei nesse aforismo no momento em que você mencionou a liberdade em relação ao espaço e ao tempo, assim como nos primeiros parágrafos do texto sobre Kant em que o futuro se mostra como o que ‘está por vir’ e ‘nos alcança’. Pois os dois ‘oponentes’ da parábola kafkiana são evidentemente passado e futuro.” (Hannah Arendt – Martin Heidegger, Correspondência 1925/1975, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2001, p. 115)

Julgar parece ser a atividade essencial do espírito humano livre. As duas outras segundo Hannah Arendt são o pensar e o querer. O julgamento se distingue de ambos em virtude de ocorrer no espaço que existe entre o “ser” e sua “representação”.

O resultado do julgamento humano dependerá sempre dele ir em direção ao “ser” (rejeitando sua “representação”) ou dele confirmar a “representação” (como se fosse impossível ao homem se dirigir ao próprio “ser”). Portanto, todo julgamento humano simples pode produzir dois argumentos. Considerado excedente argumentativo, um deles deve ser e de fato será descartado.

A atividade de julgar pode ser pessoal ou impessoal. Pessoal é o julgamento feito com base em regras definidas pelo homem que julga no momento mesmo em que ele se põe a julgar. Impessoal é o julgamento realizado com base em regras previamente definidas às quais o espírito humano voluntariamente decidiu aderir para poder julgar bem.

Dependendo do critério empregado na sua realização, o julgamento humano pode produzir não dois e sim quatro argumentos. Dois deles seguem em direção ao “ser” e produzem como excedente argumentativo a rejeição de sua “representação” de maneira pessoal e/ou impessoal.

Os outros dois fazem o inverso. Eles afirmam a “representação “ do “ser” de maneira impessoal e/ou pessoal, produzindo dois excedentes argumentativos que rejeitam o “ser”.

Quando o julgamento é simples ele produz apenas um excedente argumentativo desprezado. Mas à medida que o ato de julgar fica mais mais complexo a quantidade de excedente argumentativo desprezado se torna muito maior do que o argumento que predomina no espírito humano.

Se ao julgar o espírito humano confrontar um “ser” a outro “ser”, obviamente não teremos quatro e sim oito argumentos. Sete deles serão descartados quando o espírito afirmar o predomínio de um deles que se dirija, de maneira pessoal ou impessoal, em direção a um “ser” ou á “representação” de um “ser” desprezando todos os demais argumentos possíveis.

Mas no caso de um julgamento complexo, algo interessante pode ocorrer. É possível ao juízo afirmar o argumento de um  “ser” e, concomitantemente, o argumento da “representação” do outro. Neste caso, a quantidade de argumentos descartados durante a atividade de julgar ainda será maior do que o resultado do julgamento do espírito humano. Mas o excedente argumentativo será obviamente menor do que aquele que existiu na hipótese anterior.

No princípio, dissemos que o julgamento se distingue do pensar e do querer em virtude de ocorrer no espaço que existe entre o “ser” e sua “representação”. O julgamento também pode ocorrer num tempo diferente daquele em que o pensar e o querer se tornaram realidade.

Aquele que julga o tempo presente, o faz levando em conta o passado. Aquele que julga o passado o faz tendo em vista o reflexo dele ou do julgamento no presente.

Não é possível julgar o futuro. Tudo que o espírito pode fazer em relação a ele é imaginar aquilo que poderá ou não ocorrer. O problema é que o futuro nunca é totalmente condicionado pelo passado ou pelo julgamento que se fez dele no presente. Fenômenos novos estão sempre a nascer produzindo realidades impensáveis no momento em que o futuro ainda era apenas uma possibilidade submetida à imaginação.

E por fim, um julgamento pode incidir sobre outro julgamento. Nesse caso, para demonstrar a coerência ou não do julgamento proferido e a exatidão do seu resultado, o espírito humano pode mergulhar de maneira pessoal ou impessoal na superfície do resultado da atividade humana (o argumento ou os argumentos predominantes). Mergulhar no vasto excedente argumentativo que foi descartado também pode ser necessário e interessante.

O exercício da faculdade de julgar, entretanto, nem sempre é tranquilo. Como a própria Hannah Arendt menciona em outra de suas cartas a Heidegger:

“No momento não é muito fácil alcançar tranquilidade por aqui e conservá-la. De maneira justificada o país está em uma espécie de reviravolta e se é constantemente impelido por todos os lados a tomadas de posição. Conquanto estas (pedidos e tomadas de posição) provenham dos estudantes, não conseguimos nos esquivar delas. Os conflitos de consciência desta geração são muito sérios. E se não se está por um lado em condições de dar conselhos diretamente nem tampouco se deve fazê-lo, os diálogos, por outro lado, são inúteis.” (Hannah Arendt – Martin Heidegger, Correspondência 1925/1975, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2001, p. 119).

No calor do momento presente a liberdade de julgamento do homem pode ser obliterada ou limitada? A supressão total ou parcial da liberdade de julgar de si para si não existe na maiêutica socrática. Hannah Arendt admitiu essa hipótese quando analisou a evidente incapacidade de Eichmann de julgar as escolhas que ele mesmo havia feito.

Durante o julgamento em Jerusalém, ao ser confrontado com o resultado de suas ações, Eichmann se limitava a dizer que havia cumprido ordens, que não podia violar o juramento de lealdade que havia proferido, que não poderia ter feito algo diferente e que pessoalmente nunca cometeu qualquer ato violento contra um judeu.

Hannah Arendt rejeita a argumentação de Eichmann. Ele não pode ser perdoado justamente em virtude de ter se recusado e continuar a se recusar a julgar sua própria conduta. Todavia, no momento em que escreveu a Heidegger, ela parece inclinada a reconhecer a existência de alguma verdade nas palavras do oficial nazista. Se existiram, os conflitos de consciência da geração de Eichmann certamente foram tão ou mais sérios do que aqueles da geração dos americanos que exigiam que Hannah Arendt julgasse o tempo presente e/ou se conduzisse de acordo com o julgamento que poderia ser feito.

Eichmann silenciou sua consciência e preferiu agir de acordo com os padrões imorais e criminosos do governo que servia. Hannah Arendt prefere silenciar reconhecendo a impossibilidade de dar conselhos e de dialogar com os estudantes.

Impossibilitada de tomar uma posição, não querendo fazer isso ou se recusando a revelar o conteúdo de seu julgamento aos estudantes, Hannah Arendt se vê numa situação aparentemente semelhante a de Eichmann. Ele foi julgado e condenado em Jerusalém. Ela estava sendo julgada e condenada pelos seus estudantes nos EUA.

Justiça e injustiça nunca se equivalem. Mas uma contingência externa e irresistível (o nazismo na Alemanha de Eichmann; os conflitos políticos nos EUA de Hannah Arendt) pode produzir distorções tanto na faculdade de julgar quanto na qualidade dos julgamentos que são proferidos.

Não julgar ou deixar de revelar o conteúdo do julgamento no calor dos fatos é uma opção, sem dúvida. Mas talvez não seja a opção mais acertada. Afinal, alguém poderia dizer que essa teria sido uma escolha inevitável para Eichmann.

Ao prestar depoimento, Eichmann evidenciou que renunciou à faculdade de julgar sua conduta de si para si como se o ato (de organizar a identificação, reunião e transporte de judeus para os campos de concentração) pudesse ser separado do seu resultado (o extermínio deles nas câmaras de gás). Eichmann se deixou conduzir por um caminho reprovável. E o resultado das ações dele o colocaram no banco dos réus em Jerusalém.

A situação em que Hannah Arendt no momento que ela escreveu a Heidegger não era idêntica à de Eichmann. Mesmo assim ela confessa ao amigo sua hesitação. Todavia, dependendo da situação hesitar pode também ser algo necessário, um fruto legítimo da maiêutica socrática.

Condenado a tomar cicuta Sócrates não se insurgiu contra a decisão injusta. A atividade de julgar de si para si, que obriga a pessoa a agir de maneira justa, também pode obrigá-lo a não fazer nada quando no momento de agir o ato lhe parecer igualmente inadequado. A hesitação pode ser a afirmação da suspensão temporária de qualquer ação baseada no julgamento e não necessariamente o resultado da incapacidade de julgar ou da recusa de fazer isso.

Ao tomar conhecimento do programa de extermínio dos judeus, Eichmann não teve qualquer crise de consciência. Ele não abandonou seu posto, nem revelou ao mundo o que estava ocorrendo. Muito pelo contrário, ele fez aquilo que acreditava correto: cumprir suas ordens da melhor maneira, organizando um eficiente serviço de localização, reunião e transporte dos judeus para os campos de concentração.

Vejamos agora o exemplo alguém que fez o oposto de Eichmann e sofrer consequências negativas em razão disso. Mesmo correndo risco pessoal, em 1986 Mordechai Vanunu julgou ser melhor revelar ao mundo os detalhes do programa nuclear secreto de Israel. Em razão de sua conduta ele foi raptado em Roma e, como Eichmann, julgado e condenado em Israel.

Após cumprir 18 anos de prisão, 11 dos quais em solitária, Mordechai Vanunu foi libertado em 2004. Entretanto, ele continuou a ser perseguido pelo Estado israelense e voltou a ser condenado e preso em 2007 e em 2010.

Qual a diferença entre estes dois julgamentos? Ambos usaram o mesmo critério impessoal, mas apenas um deles se refere a fatos ocorridos em Israel. Eichmann foi considerado culpado porque cumpriu fielmente a legislação do Estado nazista. Mordechai Vanunu não foi absolvido por ter feito aquilo que os israelenses julgaram que estava ao alcance de Eichmann fazer.

A objeção da consciência do militar israelense ao programa nuclear secreto de Israel foi considerada irrelevante. A conduta dele foi julgada criminosa. A ausência de qualquer objeção de consciência por parte de Eichmann foi considerado um indício de sua culpa.

Eichmann participou ativamente da Solução Final. Vanunu se recusou a preservar os segredos que detinha em função de sua condição. Não há, portanto, qualquer semelhança entre ambos.

Participação no genocídio dos judeus num caso. Rejeição legítima de um programa militar capaz de produzir genocídios no outro. O julgamento que pode ser feito da conduta de Vanunu não é e não pode ser idêntico ao julgamento que continuará sendo feito da conduta de Eichmann.

O Estado de Israel atribuiu a si mesmo o direito de condenar Mordechai Vanunu. O Estado Alemão certamente condenaria qualquer deslealdade de Adolf Eichmann. Como julgar dois Estados diferentes e paradoxalmente tão semelhantes?

A Lei Internacional que impõe limites ao uso da violência dentro e fora das fronteiras dos Estados foi debatida e aprovada após o fim da II Guerra Mundial. É questionável o uso retroativo dela no caso de Eichmann (esse, aliás, foi um dos argumentos usado em defesa dele). Não existe nada que impeça quem quer que seja de julgar as decisões tomadas pelo governo Israel com base na Lei Internacional. Afinal, ela também tem sido invocada pelos próprios israelenses.

O que é verdade no caso de Israel não deixa de ser verdade no caso do Brasil. O governo brasileiro pode e deve ser julgado por crime de genocídio. Mas até o presente momento nenhum oficial do Exército fez qualquer objeção de consciência ao programa de extermínio disfarçado mediante a distribuição de um medicamento extremamente tóxico e inútil para combater a pandemia do COVID-19.

Muito pelo contrário, a objeção de consciência apresentada pela juíza Valdete Souto Severo corre o risco de ser punida pelo CNJ e eventualmente pelo Judiciário. Ao que parece, os conselheiros daquele órgão acreditam que o julgamento deles não poderá ser ou não será julgado de maneira impessoal dentro e fora do país.

Qualquer pessoa minimamente civilizada consegue sentir um fedor de Eichmann em qualquer soldado israelense que pratica violências exageradas e desnecessárias contra civis palestinos. Esse mesmo fedor poderá ser sentido nos militares, juízes e procuradores federais brasileiros que, de uma forma ou de outra, decidirem participar ou legitimar o extermínio dos índios para concretizar os planos de desmatamento, mineração e recolonização das terras indígenas que está sendo colocado em prática por Jair Bolsonaro.

Dito isso, encerro esse pequeno esforço intelectual com uma confissão. Minha satisfação será muito maior se ao terminar de ler o texto o leitor sentir em si mesmo o fedor de Adolf Eichmann. Afinal, o primeiro passo para reconhecer um erro de julgamento é começar a julgar corretamente a própria maneira de pensar, querer e agir durante um governo potencial ou abertamente genocida.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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