As origens da política, por Felipe A. P. L. Costa

Uma epopeia intrigante a respeito da qual ainda há muitas interrogações.

As origens da política.

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

Cerca de 10 mil anos atrás, em diferentes regiões do planeta, a base material de sustentação das sociedades humanas mudou radicalmente. A caça e a coleta deram lugar ao cultivo de plantas e à criação de animais. A invenção da agricultura (ou da agropecuária, para falarmos mais amplamente) foi uma jornada e tanto. Uma epopeia intrigante a respeito da qual ainda há muitas interrogações.

1. ASSENTAMENTOS E ENSAIOS INICIAIS.

Embora a adoção da agricultura permanente implique em um estilo de vida mais sedentário, este último pode ser igualmente favorecido em outras circunstâncias. Por exemplo, muitos sítios arqueológicos, em diferentes partes do mundo, são ricos em depósitos de restos animais e vegetais [1]. O que tem sido interpretado como evidência de que os seus ocupantes eram capazes de controlar (pois conheciam bem) as fontes de alimentação que exploravam.

O manejo das fontes de alimentação teria se desenvolvido de modo independente em grupos de caçadores-coletores vivendo em diferentes tipos de hábitats – e.g., grupos vivendo em formações savânicas na região de Lagoa Santa (MG) ou em costões rochosos no litoral do estado do Rio de Janeiro ou de Santa Catarina.

O cultivo de plantas alimentares e a domesticação de animais teriam sido iniciados nesses acampamentos semipermanentes. A princípio, de modo facultativo e inspirado no que se observava ao redor – e.g., germinação e crescimento de plantas a partir de sementes caídas no entorno do assentamento. Mais tarde, além de imitações e acidentes bem-sucedidos (e.g., tentativa e erro), o progresso se deu por meio de ensaios deliberados, frutos do conhecimento acumulado e das tradições culturais de cada grupo.

Após uma fase inicial de transição, a agricultura permanente foi adotada por muitos grupos. O fardo aumentou – a lida diária de cuidar da terra é bem diferente da lida de quem vive do extrativismo. Em compensação, aumentou o controle que os seres humanos exerciam sobre a disponibilidade dos recursos. Com acesso a um suprimento alimentar maior e mais previsível, certas restrições foram minimizadas. As taxas de mortalidade, por exemplo, foram refreadas. O que teve duas implicações radicais (ver adiante, neste capítulo): (1) Os grupos aumentaram de tamanho; e (2) O perfil demográfico dos grupos mudou.

2. AGRICULTURA PERMANENTE.

Nos primeiros dias da agricultura, a produtividade era baixa e a produção mal dava para suprir as necessidades do grupo [2]. Não havia excedentes. De sorte que ainda não era factível que alguns indivíduos se dedicassem apenas e tão somente ao trabalho intelectual. Todos os braços precisavam se empenhar em algum tipo de trabalho manual. A divisão de trabalho estava até então restrita ao sexo – e.g., homens caçavam, enquanto as mulheres coletavam e processavam frutos e raízes [3].

O que teria então impulsionado a Revolução Agrícola?

Mais especificamente, o que teria levado ao abandono de um estilo de vida baseado no extrativismo grátis e à adoção de um sistema de produção organizado e previsível, culminando então com algum tipo de agricultura permanente?

A questão é intrigante. Todavia, além de intrigante, a história da agricultura tem aspectos controversos. Um exemplo adicional, como nós veremos a seguir, diz respeito às polêmicas em torno da questão do controle social dos excedentes.

3. EXCEDENTES, TROCAS, ESCRITA.

Com o advento e posterior desenvolvimento da agricultura permanente, surgiram os excedentes agrícolas. Certos itens colhidos na estação da fartura – se devidamente processados e estocados – podiam agora saciar a fome na estação da escassez.

A partir de então, na opinião de alguns estudiosos, as disputas dentro e entre grupos teriam se intensificado. Pilhagens e saques teriam se tornado atividades lucrativas, ainda que arriscadas, a ponto de se converterem em um modo de vida. As vítimas, por sua vez, teriam desenvolvido sistemas de defesa – patrulhas de vigilância foram criadas e as normas de convivência (e.g., códigos de interdição e punições) se tornaram mais rígidas. Gerou-se assim uma corrida armamentista entre grupos de saqueadores e agricultores sedentários, o que teria promovido e alimentado sucessivas mudanças na organização social dos grupos.

As coisas também mudaram dentro dos grupos. Os produtos do trabalho coletivo deixaram de ser repartidos de modo equitativo. Surgiram castas especializadas (e.g., curandeiros, feiticeiros, sacerdotes e militares), as quais não mais se envolviam diretamente na produção de alimentos. Na defesa dos seus privilégios, as castas dominantes recorriam à coerção física ou à persuasão ideológica. A desigualdade social aumentou e a vida no interior dos grupos passou a ser cada vez mais objeto de legislação e controle, incluindo até mesmo repressão e punição física contra eventuais opositores.

4. REGISTRANDO AS TRANSAÇÕES.

Embora os conflitos letais nunca tenham deixado de ocorrer, vários grupos aprenderam a trocar excedentes entre si [4]. O escambo, por exemplo, permitia que os grupos tivessem acesso a uma base ampliada de recursos. No cômputo final, as trocas eram um modo mais seguro e confiável de se obter aquilo que não se produz – e.g., “Troco a minha cabra pelas suas espigas de milho”.

O comércio se estabeleceu e prosperou. Os bens se transformaram em mercadorias – produtos que até então tinham valor de uso, passaram a ter também valor de troca. Com a intensificação do comércio, surgiu a necessidade de um denominador comum para normalizar as transações. A moeda foi criada.

A escrita e os sistemas numéricos, duas ferramentas usadas na criação de códigos e registros, foram aperfeiçoados e difundidos. A invenção de códigos individualizados permitiu que múltiplas transações fossem controladas simultaneamente – e.g., “Fulano me deve 50 espigas de milho. Beltrano me deve uma cabra”.

5. AS PRIMEIRAS CIDADES.

Entrepostos e rotas comerciais foram criados. Núcleos habitacionais se converteram em aldeias e vilas, algumas das quais deram origem às primeiras cidades – e.g., Eridu, Lagash e Ur [5].

Algumas cidades se converteram em cidade-estado. O dia a dia de uma grande cidade (ontem como hoje), é bom ressaltar, depende de uma infraestrutura mínima. Razão pela qual logo foram criados os serviços públicos [6], responsáveis pela proteção da cidade contra invasores e por cuidar da construção e manutenção de grandes obras (e.g., sistemas de irrigação e muralhas).

O desenvolvimento continuado de algumas cidades resultou no surgimento das primeiras civilizações – e.g., sumérios (3500 aC) e egípcios (3000 aC). Por fim, o advento de sociedades civilizadas mudou de vez a identidade das forças que pesam sobre o destino dos grupos e a sorte dos indivíduos. Diminuiu o peso das imposições ecológicas. O protagonismo foi transferido para as lutas políticas travadas no interior de cada sociedade. As relações intergrupais ganharam uma nova dimensão [7].

Mais recentemente, a emergência dos estados nacionais criaria demandas ainda mais novas e insuspeitas – e.g., a realização de censos demográficos visando identificar e monitorar as dimensões da nação.

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NOTAS.

[*] Assim como nove artigos anteriores (ver Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo? e A terceira via: Algumas notas sobre o método científico ), o presente artigo (uma versão resumida e simplificada do texto original), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em desenvolvimento).

Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Os sambaquis seriam um exemplo – ver Souza (1999). Para detalhes e discussões, v. Tenório (1999) e Silva & Rodrigues-Carvalho (2006).

[2] Produtividade: biomassa colhida por unidade de área cultivada; produção: biomassa total colhida. Caçadores-coletores são se converteram em agricultores da noite para o dia. Houve uma longa transição. Em algumas sociedades, os dois estilos de vida ainda convivem – ver Diamond (2003).

[3] Para detalhes e um contraexemplo recente, ver Haas et al. (2020).

[4] O escambo seria um modo civilizado de ter acesso a recursos que antes eram obtidos por meio de saques ou pilhagens. Sobre conflitos armados anteriores à invenção da agricultura – ver, e.g., Mirazón Lahr et al. (2016).

[5] As três foram erguidas em território que hoje pertence ao Iraque.

[6] Para uma discussão sobre serviços públicos, ver Toynbee (1987).

[7] Há uma longa e sangrenta história de contatos inamistosos entre grupos humanos. O motivo? Saques, pilhagens, guerras etc. Embora a adoção da diplomacia como um modo de estreitar laços e resolver conflitos seja algo milenar, alguns dos mais importantes organismos multilaterais só foram criados muito recentemente. A ONU (https://www.un.org), por exemplo, foi fundada em 24/10/1945 e a OMS (https://www.who.int), em 7/4/1948.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Diamond, J. 2003 [1997]. Armas, germes e aço. RJ, Record.

+ Haas, R & mais 9. 2020. Female hunters of the early Americas. Science Advances 6: eabd0310.

+ Mirazón Lahr, M & mais 21. 2016. Inter-group violence among early Holocene hunter-gatherers of West Turkana, Kenya. Nature 529: 394-8.

+ Silva, HP & Rodrigues-Carvalho, C, orgs. 2006. Nossa origem. RJ, Vieira & Lent.

+ Souza, SMFM. 1999. Anemia e adaptabilidade em um grupo costeiro pré-histórico: uma hipótese patocenótica. In: Tenório (1999).

+ Tenório, MC, org. 1999. Pré-história da Terra Brasilis. RJ, Editora UFRJ.

+ Toynbee, A. 1987 [1972]. Um estudo da história. SP, Martins Fontes & Editora UnB.

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Redação

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