Os haitianos na fronteira dos Estados Unidos e México são um grande constrangimento para o Brasil, por Nadejda Marques

Desde a década de 70, durante a administração Carter, os haitianos tem tratamento diferenciado entre os grupos de imigrantes (the Haitian Program)

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Os haitianos na fronteira dos Estados Unidos e México são um grande constrangimento para o Brasil

por Nadejda Marques

As imagens recentes de agentes da patrulha de fronteira  (Border Patrol) montados a cavalo perseguindo imigrantes haitianos para que estes não entrassem no Texas vindos do México chocam pela violência, crueldade e também porque aciona traumas ainda não resolvidos decorrentes dos terrores da escravidão. A imagem desses agentes remete a dos capitães-do-mato que chicoteavam pessoas escravizadas para que trabalhassem os campos nos Estados Unidos, no Brasil e em grande parte do hemisfério ocidental. Embora denunciados pelas câmeras, os agentes da Border Patrol não agiram no vácuo. Suas ações são viabilizadas por uma política contra imigrantes implementada a nível local, estadual, nacional e internacional.

Comecemos pela Border Patrol. A base da instituição surgiu em 1924 com membros da KKK e do grupo racista Texas Rangers. Não é surpresa que ao ser incorporada às forças policiais para o controle de fronteira seja protagonista de uma história racista e violenta.

No Texas, o governador republicano Greg Abbott além de se posicionar contra as recomendações de saúde para a prevenção da Covid-19, como uso de máscara e distanciamento social, regularmente acusa os imigrantes de serem responsáveis pela disseminação do vírus. De fato, em julho deste ano, emitiu ordem para que as tropas estaduais parassem qualquer veículo transitando com imigrantes supostamente para evitar a propagação do vírus.

A administração Biden, contrariando a sua retórica, não só mantem políticas anti-imigrantes com o argumento de prevenção contra o coronavirus de seu antecessor (Title 42) – que na prática impede pedidos de asilo – como, nos últimos seis meses, tem apoiado nos tribunais a extinção de certos vistos, a ampliação dos requerimentos necessários para o visto permanente e o não deferimento de pedidos de residência permanente. É certo que algumas das políticas draconianas da era Trump exigem ação do Congresso mas também é evidente que embora sejam maioria os Democratas não são garantia de nada.

A política de imigração americana, sobretudo em relação a imigrantes haitianos, tem longa história. Desde a década de 70, durante a administração Carter, os haitianos tem tratamento diferenciado entre os grupos de imigrantes (the Haitian Program). Seus pedidos de asilo são negados com mais frequência e eles ficam detidos por mais tempo em prisões e centros de detenção, inclusive, nos anos 90, em Guantanamo. Não há como negar que são políticas basadas no preconceito de que os imigrantes haitianos são pobres, transmissores de doenças e criminosos e na discriminação generalizada contra imigrantes negros.

Mas, não é conveniente aos brasileiros criticar os Estados Unidos sem reconhecer sua parcela de responsabilidade nessa nova tragédia humanitária. Grande parte dos haitianos buscando asilo nos Estados Unidos foram viveram antes em países como o Brasil e o Chile. O fato de que entre os imigrantes já deportados pelos Estados Unidos de volta ao Haiti nesta semana estão ao menos 30 crianças brasileiras que não tem documentos haitianos, nunca estiveram no país, nasceram no Brasil de pais haitianos, é um grande constrangimento e claro exemplo de como falhamos em nossa resposabilidade. Falhamos por não criar políticas específicas de integração e apoio aos imigrantes haitianos e falhamos por nossos próprios preconceitos perversos e discriminação contra o imigrante negro.

A imigração de haitianos para o Brasil é intensificada após o terremoto que destruiu o Haiti em 2010. No Brasil, grande parte dos haitianos recebeu visto temporário e não de refugiado porque embora o Brasil tenha uma das legislações mais modernas sobre migração, as autoridades migratórias ainda usam uma interpretação mais restritiva no deferimento do status de refugiado. Por sua vez, sem o status de refugiado são poucas as medidas que possibilitam a inserção na sociedade brasileira. São poucas as proteções oferecidas pelo governo para garantir sua alimentação, moradia e emprego. Sequer o aprendizado do português era oferecido de maneira contínua e estável aos haitianos. Sobrevivem graças ao dedicado trabalho da Pastoral do Imigrante, alguns centros de imigrantes, organizações não-governamentais e voluntários.

As famílias das crianças brasileiras deportadas a Port-au-Prince e demais haitianos em busca de asilo devem receber todo nosso apoio. Devemos pedir a eles uma segunda chance para trazê-los de volta ao Brasil e dar a eles o que temos de melhor. Para isso, o Brasil precisa aumentar sua estrutura de atendimento aos estrangeiros e serviço de imigração. É preciso que o governo brasileiro amplie a intepretação legal das causas de refúgio principalmente porque a realidade de refugiados por razões sócio-econômicas e ou ambientais já é tão presente quanto a do refugiado que sofre perseguição na concepção mais tradicional. E, de uma vez por todas, precisamos por fim ao medo que o senhor de engenho tem do Haiti e celebrar mais o grande feito histórico da primeira república negra do mundo e o primeiro país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão.

Nadejda Marques é PhD em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e trabalha com direitos humanos há mais de duas décadas. Ela é autora de Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley (2018) sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício. Escreveu ainda o livro auto-bibliográfico chamado “Nasci Subversiva” sobre a ditadura no Brasil da perspectiva de uma criança.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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