O legado da Rio+20

CRESCER, INCLUIR E PROTEGER: SER HUMANO É O MAIOR LEGADO DA RIO+20

Carol Proner*, especial para o blog. 

Passados alguns dias do encerramento da Rio+20, os noticiários já se dedicam a outras pautas, sejam de ordem internacional, com o golpe parlamentar no Paraguai, ou às agendas internas de coligações e alinhamentos eleitorais. Com a mudança de ares, talvez seja um momento mais favorável para refletir sobre o evento que foi considerado pela ONU como o maior do gênero e também, sob o aspecto da sociedade civil, o mais participativo.

Durante o processo de construção do consenso, prevaleceram nos noticiários diversas críticas à condução brasileira. O documento inicial, apresentado pelo Brasil para subsidiar os debates, sofreu diversas alterações até chegar ao intermediário Documento de Acordo para a Realização da Conferência, ambos disponíveis na página oficial do evento. Nesse processo, ou seja, bem antes da aprovação do texto final – chamado de Esboço Zero. O Futuro que Queremos – as críticas contundentes partiam de múltiplas fontes e atores, desde delegações descontentes em aspectos específicos, passando por supostas vozes veladas na delegação brasileira, até as mais expressivas críticas e manifestações de “frustração” ecoadas pelos representantes da sociedade civil convidados a participar (lembrando que as entidades e organizações haviam sido convidadas a participar da construção do documento base – e assim o fizeram – desde o ano 2011, por meio do Decreto 7.495, em 7 de junho de 2011, pelo qual foi criada a Comissão Nacional da Rio+20, composta por representantes do Governo e da sociedade).

Dada a ampla repercussão internacional e midiática oportunizada pela realização da Conferência, o momento era extremamente profícuo para o exercício das disputas em questão, tanto dentro como fora da Rio+20, e é preciso destacar a extraordinária iniciativa da Cúpula dos Povos, evento paralelo que reuniu mais de 300 mil pessoas, o qual com diversidade de manifestações e demandas, foi capaz de elaborar as mais importantes e legítimas análises sobre os efeitos do sistema capitalista predatório que opera no planeta. O espaço de manifestação, reflexão e teorização oportunizado pela Cúpula, bem como a Declaração Final que sintetiza os principais eixos discutidos durante as plenárias e assembleias ocorridas entre 15 e 22 de junho, mostrou-se inigualável quanto aos alertas mais atuais e dramáticos dos efeitos devastadores da lógica de produção capitalista que subjaz, também, às discussões e propostas da Rio+20. No entanto, seria ingênuo imaginar que tais apelos, premidos pelo escasso tempo de uma reunião intergovernamental, poderiam ser acolhidos como propostas e serem incorporadas no documento final da Rio+20. Essa expectativa, além de pueril, é produtora de frustrações imaginarias e, como tal, contraproducente por produzir situações limite como a interrupção do diálogo por iniciativa da própria sociedade civil.

O distanciamento dos debates acalorados permite uma reflexão sobre as expectativas e as frustrações que decorrem de um processo como este no contexto de uma conferência intergovernamental e sobre o papel que cumpre desempenhar cada ator isoladamente ou em conjunto, compreendendo os limites intrínsecos desses debates entre governos e sobre temas sensíveis e potencialmente ameaçadores à liberdade irrestrita dos mercados.

É preciso dizer, não era novidade para ninguém que haveria forte restrição quanto aos compromissos assumidos pelos governos dos 192 países participantes, principalmente de governos de países centrais e mais industrializados, em ceder aos apelos que implicavam, entre outros aspectos, efetivo aumento nos custos de produção, como modificações de matrizes energéticas e investimento em “tecnologia limpas”, o que justifica a absoluta falta de interesse em assumir novas obrigações provenientes de marcos regulatórios de autoimposição e vigilância. Em tempos de crise econômica generalizada, a conduta incriminatória que prevaleceu nos debates quanto aos compromissos ambientais esteve salvaguardada pelas “razões da crise”, considerada a pior desde 1930 e que servem para justificar tantos males mundo afora.

Diante de tanta resistência e hostilidade no momento da construção dos consensos, avalia-se inclusive que uma das vitórias da Conferência (e do Brasil) foi de ter sido capaz de evitar retrocessos em relação à Agenda 21 (Eco 92), propostos por delegações nas reuniões preparatórias e durante a Conferência. Faço menção às tentativas fracassadas de dissipar a incidência do “princípio das reponsabilidades comuns, mas diferenciadas”, e ainda as propostas de supressão do direito universal a água potável, debatidas semanas antes na cidade de Nova York, em reunião preparatória à Rio+20.

Nesse sentido, quando da análise específica da conferência governamental, não caberia falar em frustração ou grande decepção com a Rio+20, sentimento alardeado não raras vezes com o intuito de desmerecer a gestão brasileira na coordenação dos trabalhos e de inflar as críticas de natureza política em ano eleitoral. Mais justo seria analisar as quebras de expectativa com relação a temas aos quais concretamente se imaginava poder avançar, especialmente quanto às estratégias que vêm sendo discutidas há anos, como as medidas para produção e consumo sustentáveis (Processo de Marrakech) e, nesse ponto, é preciso reconhecer que os avanços foramtímidos ou pouco ousados, para usar expressões do momento.

Outros pontos que representam quebra de expectativa: a) a incapacidade de acordar uma nova métrica para o desenvolvimento capaz de complementar e aperfeiçoar índices consagrados como o PIB e o IDH, reconhecidamente limitados; b) a incapacidade de criar regras claras sobre financiamento e processos de governança transparentes e democráticos para o Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF); c) as dificuldades para a adoção de propostas de financiamento, como a criação de um imposto global sobre operações financeiras para proteger direitos humanos; d) a dificuldade de alcançar consenso quanto ao pleno exercício dos direitos sexuais reprodutivos. Considerado uma grande perda, o termo “direito reprodutivo” foi substituído pela expressão “saúde reprodutiva” no texto final.

O texto ainda traz conceitos imprecisos como o da Economia Verde, baseado na ideia de que a nova economia deve ser a da sustentabilidade e da inclusão. Baseada nos princípios da Rio-92, a Economia Verde prevê como prioridades a erradicação da pobreza, a segurança alimentar, um sólido gerenciamento de recursos hídricos, o acesso universal a serviços de energia moderna, a ideia de cidades sustentáveis, o gerenciamento de oceanos, a saúde pública, o desenvolvimento de recursos humanos e o crescimento sustentado, inclusivo e igualitário.

No documento brasileiro ofertado como base para o debate, encontram-se fundamentado com mais precisão cada uma das prioridades mencionadas no documento final, e a proposta pátria vai além, incluindo outros destaques quanto ao trabalho decente, ao emprego e à responsabilidade social das empresas, à educação, à cultura, a questão de gênero e ao empoderamento das mulheres, à promoção da igualdade racial, entre outros. Se é verdade que o termo escolhido para permanecer no Esboço Zero resultou vago e impreciso – e como tal recebeu duras críticas – também é verdade – convocados que somos a provar os sapatos da diplomacia – que a conjuntura não dava para mais e que a opção dos negociadores líderes foi a de chegar-se a aprovar um documento final da ONU, compreendendo que a negativa de apenas um dos 192 países já impediria a aprovação do texto.

Pontos que tem sido considerados de destaque positivo e que foram mantidos no Esboço Zero por clara influencia brasileira foram: a) a renovação do papel do sistema multilateral como foro de solução dos grandes problemas globais; b) a afirmação incondicional do “princípio da não-regressão”, segundo o qual não podem ser admitidos retrocessos de conceitos e de compromissos internacionais previamente assumidos; c) a reafirmação, em pelo menos três momentos do texto final, ao “princípio das reponsabilidades comuns, mas diferenciadas”; d) e o mais importante, a incorporação definitiva da erradicação da pobreza como elemento indispensável à concretização do desenvolvimento sustentável, acentuando sua dimensão humana.

Sobre esse último aspecto, vale destacar alguns trechos do Esboço Zero que consolidam a superação da ideia de que proteção ambiental está dissociada ou é autônoma face ao desenvolvimento social. No preâmbulo, todos os parágrafos enfatizam a erradicação da pobreza como objetivo prioritário e enaltecem a ideia de sociedades justas, igualitárias e inclusivas com a compreensão da necessidade de preservar e proteger o sistema de suporte da vida e do planeta.

A redação do documento como um todo associa o desenvolvimento sustentável com a meta prioritária da erradicação da pobreza, defendendo os três pilares de desenvolvimento sustentável como sendo o econômico, o social e o ambiental, traduzidos pela delegação brasileira no trinômio: crescer, incluir e proteger. E, como já visto, a concepção de Economia Verde tem como meta primeira a erradicação da pobreza.

A concepção dos seres humanos com parte integrante da natureza – e não como elementos alheios e potencialmente destrutores – foi a mais importante conquista da Rio+20 e trará consequências fundamentais para o futuro das políticas sobre meio ambiente. Nesse campo, o Brasil deixou de ser o escriba de um texto politicamente correto para ser um modelo a seguir, assim reconhecido pela ONU na reunião preparatória de Nova York ocorrida em maio, que considerou o país modelo de desenvolvimento sustentável, tendo destaque, entre outros programas sociais, o Fome Zero e o Bolsa Família.

A centralidade dos homens e mulheres diante do desenvolvimento sustentável também tem o mérito de provocar e contestar teorias – algumas no campo progressista – que insistem em considerar os seres humanos alheios à natureza, pois o futuro perverso e ameaçador denunciado pelos ambientalistas e ecologistas já chegou para milhares de pessoas que vivem em condições de pobreza, independente de mudanças climáticas.

A grande herança da Rio+20, portanto, será essa: a centralidade dos seres humanos em condições sociais dignas, incluídos nos modelos produtivos com respeito às oportunidades de crescimento material, com acesso a emprego e renda, com inclusão tecnológica, política, cultural, tendo garantido o direito a participar dos frutos do crescimento econômico nas distintas sociedades, entre outros tantos elementos que constituem o desenvolvimento humano. 

 

* Carol Proner é doutora em direito internacional, Coordenadora do Mestrado em Direito da UniBrasil e Codiretora do Programa Máster-Doctorado em Derechos Humanos da UPO-Sevilla-ES.

Luis Nassif

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