Charlie Hebdo e a moral dupla do Ocidente

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
[email protected]

Charlie Hebdo e a moral dupla do Ocidente

Por Rennan Martins

Via Desenvolvimentistas

A França e o mundo assistiram em choque o ataque de extremistas à redação do semanário satírico Charlie Hebdo. Armados de fuzis AK-47, dois homens que o governo francês alega serem franco argelinos invadiram a sede da publicação por volta das 11:30 locais e assassinaram oito jornalistas, dois policiais, um visitante e um transeunte que se encontrava nas imediações do prédio.

No momento que traço estas linhas a imprensa corporativa dá ampla cobertura ao cerco que a polícia francesa fez a fábrica onde dizem estar os suspeitos com reféns. A ostensiva busca realizada nas horas subsequentes mobilizou 88.000 homens das forças de segurança.

Conhecida por um humor corrosivo e politicamente incorreto, Charlie Hebdo possui cerca de três décadas de história na qual publicou charges que atingem e por vezes ofendem a diversos setores da sociedade. Apesar de ligada à extrema-esquerda, a revista muitas vezes se alinhou a pura intolerância em desenhos islamofóbicos e anti-minorias.

Independente do quão desrespeitosos e ofensivos eram os cartoons, é fundamental deixar claro que este atentado é injustificável, monstruoso e que só alimenta ainda mais a violência. Essencial também é lembrar que o terrorismo islâmico mata sobretudo os próprios muçulmanos. Em entrevista à Revista Fórum, o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser, explana:

“No ano passado, foram 18 mil pessoas mortas no mundo por atentados terroristas – são dados oficiais. Quantas pessoas morreram na Europa? Nenhuma. Quantos atos terroristas foram praticados por islâmicos na Europa? Nenhum. Houve vários atentados terroristas na Europa, classificados oficialmente como terrorismo, a grande maioria atribuída a grupos separatistas, e nenhum islâmico. Há um exagero da ameaça islâmica. Há muito preconceito e pouca informação.”

Preocupante, no entanto, é a postura das lideranças ocidentais e a narrativa promovida pela imprensa hegemônica. A abordagem das autoridades e dos veículos evidencia o quão hipócrita e circunstancial é a moral em voga.

Todo o teatro teve reinício e mais uma vez se fala nos EUA e aliados como baluartes da democracia e justiça, restando ao “mundo islâmico” o papel de povo que inveja nossas “liberdades”. A Globo News gasta longos minutos falando de controle de fronteiras, fazendo o jogo fácil de colar na testa do estrangeiro a alcunha de mal. Ora, os suspeitos Chérif e Said Kouachi nasceram na França, são apenas descendentes de árabes. No que o recrudescimento da fiscalização auxiliaria?

É preciso evidenciar os dois pesos e medidas com que a OTAN trata o terrorismo, o uso político que fazem do fenômeno. A população tem o direito de saber que o ocidente tem parte e alimenta o terror quando este convém a seus objetivos geopolíticos.

A Al Qaeda era insignificante até serem financiados e treinados, ainda nos anos 80, pela inteligência norte-americana. Enquanto as ações do talibã serviam aos interesses de desestabilizar o arquirrival, à época a URSS, Bin Laden era retratado como guerreiro da liberdade.

A grande mídia não é exemplo de independência, pratica autocensura e até mesmo espalha mentiras quando estas servem ao Poder. Não nos esqueçamos que a Guerra no Iraque foi legitimada por diversos boatos sobre inexistentes armas de destruição em massa amplamente veiculados por nossos “jornalistas”. Esta intervenção vitimou mais de 110.000 civis.

O Estado Islâmico ganhou poderio e atualmente se consolida, mas somente teve condições para isso após os EUA e as monarquias sunitas locais os financiarem largamente no intuito de que a desestabilização promovida gerasse dividendos geopolíticos e econômicos. O EI só se tornou uma ameaça a civilização após passarem a atuar em regiões inconvenientes.

No mesmo dia do ataque à Charlie Hebdo, a Agência Efe informa que os jihadistas do Boko Haram mataram centenas de pessoas na cidade de Baga, nordeste da Nigéria. Onde estão o repúdio e horror das autoridades? As vítimas nigerianas são de menor valor?

A sociedade civil precisa abrir os olhos e se mobilizar para impedir que esse atentado seja instrumentalizado pela extrema-direita, que já se movimenta para avançar na agenda bélica e xenófoba. Como diz o brilhante professor Chomsky, a melhor forma do ocidente combater o terrorismo é deixar de promovê-lo.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

10 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Nunca é demais lembrar que

    Nunca é demais lembrar que foram os Estados Unidos que fizeram de Bin Laden a figura importante que ele se tornou, ao tempo da guerra fria. O próprio Sadan Hussen serviu muito ao Busch-pai na guerra do Golfo. É correto dizer que são dois pesos e duas medidas tomadas pelas potências ocidentais quando tratam de crimes terroristas. E é mais absurdo se ter a certeza de que os grandes vilões, como Sadan e Bin Laden, entre outros, primeiramente tiveram muita serventia para os Estados Unidos.

    As grandes potências, antes de se reunirem mais uma vez para a prática de chacinas no Oriente Médio poderia rever suas ideologias, suas políticas. Tem o dever de fazerem um mea-culpa. Se não será possível exterminar os orientais de suas pátrias, ou mandá-los embora, precisam, então, encontrar meios de boa convivência entre os povos. 

  2. Já era, a xenofobia, a

    Já era, a xenofobia, a islamofobia e a intolerância de ambos os lados triunfou. Essa ataque ao Charlie, a despeito de suas vítimas terem o mesmo valor dos da Nigéria, foi simbólico. Mataram o palhaço. Agora vai ser o circo dos horrores, um extremista alimentando o seu oposto.   

  3. A alma do humor
    “Independente do quão desrespeitosos e ofensivos eram os cartoons,” … não importa.

    Li, em algum lugar, escrito por algum psicanalítico, que o humor, em essência, deve causar uma sensação de alívio do sofrimento para o próprio autor, e se ele não for o objeto do chiste, também para o outro.

  4. O q o texto diz sobre Charlie Hebdo nao é verdade

    “a revista muitas vezes se alinhou a pura intolerância em desenhos islamofóbicos e anti-minorias” a

    Nao é verdade. A revista nao era islamofóbica, e nem contra qualquer minoria, combatia o racismo francês e a Frente Nacional. Combater o obscurantismo religioso — isso eles faziam, e nao só em relaçao ao Islã, a charge mais cáustica deles que vi foi sobre a dita Santíssima Trindade — nao é a mesma coisa que combater minorias. Nao se pode, com o argumento de dizer que isso ofende os crentes, proibir críticas e humor sobre as religioes. É só o que faltava voltarmos à Idade Média e termos novamente “crimes” como blasfêmia e heresias. 

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador