Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Como fazer notícia para um telejornal

Como o dramaturgo do Teatro do Absurdo Eugène Ionesco pode explicar o suposto escândalo da questão de uma prova de Filosofia de uma escola pública que citava a música da Valesca Popozuda? Não só explica como também fornece um método para a criação de notícias em telejornais: a estratégia de descontextualização. Mais uma bomba semiótica onde a fabricação da notícia é ordenada pela organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo parece ser o presságio de um inevitável abismo para onde o País caminharia. Uma bomba semiótica cujo efeito é turbinado tanto pelo preconceito de classe contra o funk  quanto pelo jornalismo metonímico do “Não Vai Ter Copa”.

Como recortar um elemento do real para apresentá-lo como notícia em um telejornal? Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo – 1909 a 1994) nos fornece um método bem interessante que é seguido à risca na atualidade para a montagem de bombas semióticas. Em primeiro lugar, devemos declarar como “extraordinário” um conjunto de elementos qualquer:

Sra. Smith ao casal Martin: vocês que viajam bastante devem ter muita coisa para contar.

O Sr. Martin para a sua mulher: Diga querida, o que você viu hoje?

Sra. Martin: Não vale a pena, não acreditarão em mim.

Sr. Smith: Não duvidaremos da sua boa-fé.

Sra. Smith: Você os ofenderia se o fizesse.

Sra. Martin (com graça): Pois bem, assisti hoje a uma coisa extraordinária, inacreditável.

Sr. Martin: Diga logo, querida.

Sr. Smith: Ah! Vamos nos divertir.

Sra. Smith: Finalmente!

Estamos nas manchetes, ou tecnicamente naquilo que se chama “escalada” em um telejornal. É preciso que o espectador tenha curiosidade por algo que foi pinçado da realidade seja uma novidade.

Sra. Martin: Muito bem, ao ir ao mercado para comprar verduras, que estão cada vez mais caras…

Sra. Smith: Onde é que vamos parar?

Sr. Smith: Não devemos interromper, querida levada!

Sra. Smith: Via na rua, ao lado de um café, um senhor convenientemente vestido, com cerca de 50 anos, talvez nem isso, que…

Sr. Smith: O que, quem?

Sra. Smith: O que, quem?

Sr, Smith: Não devemos interromper, querida. É desagradável.

Sra. Smith: Pois bem, vocês dirão que inventei, mas ele pôs o joelho no chão e se agachou…

Sr. e Sra. Smith: Ohh!

Sra. Martin: Sim, agachado!

Sr. Smith: Impossível!

Sra. Martin: Sim, agachado. Aproximei-me dele para ver o que ele fazia.

A fabricação da notícia é ordenada por essa organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo aprece ser o presságio do inevitável.

Sr. Smith: E então?

Sra. Martin: Ele amarrava os cordões do seu sapato que tinha soltado

Os outros três: Fantástico!

Sr. Smith: Se não fosse a senhora, não acreditaria.

Sr. Martin: Por que não? Veem-se coisas ainda mais extraordinárias quando se anda por aí. Eu mesmo vi sentado em um metrô um senhor que lia tranquilamente seu jornal!

Sr. Smith: Que original! Talvez fosse o mesmo.

Substitua os personagens dessa peça de Ionesco pelos apresentadores e telespectadores de telejornais e o homem que “estranhamente” se agachava na rua pela falsa polêmica da questão da prova de Filosofia que fazia referência a Valesca Popozuda, e teremos um caso exemplar de fabricação de mais uma bomba semiótica.

O fato descontextualizado

A primeira vista o trabalho de um jornalista pode parecer simples: ver coisas que se passam e relatá-las. A princípio, essas coisas que passam seriam acontecimentos que rompem a norma, destoam em relação à regra e, por isso, chocam – um cachorro que morde um homem não é notícia, mas se um homem morder um cachorro… Mas desde que o Jornalismo transformou-se em uma indústria de notícias, esse trabalho simples tornou-se complexo: o mundo não produz um número de acontecimentos “chocantes” que atenda às necessidades diárias de produtividade da Imprensa. Então, é necessário tornar chocante qualquer acontecimento, algo parecido com o método proposto por Ionesco.

Mas, quando, além disso, a Imprensa e a grande mídia assumem o papel de oposição política, temos então a necessidade de produzir acontecimentos “chocantes” não mais de forma genérica como “sensacionalismo” (notícias chocantes para vender jornais e conquistar audiências), mas agora com uma intencionalidade: descontextualizar acontecimentos. Tal como o absurdo diálogo acima proposto por Ionesco, a grande mídia deve retirar fatos da sua banalidade cotidiana para em seguida, descontextualizado, o fato é elevado à condição de acontecimento.

Um professor de Filosofia, na sua atividade cotidiana de ministrar o conteúdo programático da disciplina em uma escola pública do Distrito Federal, lança mão de uma estratégia pedagógica para discutir com os alunos os valores da sociedade e o papel da imprensa – como a mídia apenas vê pontos negativos e não consegue enxergar os pontos positivos. E o funk como um exemplo. Correspondendo ao que foi discutido em aula, o professor formula uma questão ao mesmo tempo irônica é séria citando uma música da Valesca Popuzada.

Professor Antonio Kubitschek versus

Valesca Popozuda: estratégia didática rotineira elevada 

ao status de escândalo educacional

A imagem nas redes sociais da questão da prova (correspondendo ao homem convenientemente vestido que se agacha na rua, de Ionesco) e a citação da música “Beijinho no Ombro” (o homem estava amarrando os cordões do sapato) são retirados do contexto dos instrumentos didáticos cotidianos utilizados por um professor para discutir conteúdos (não só aquele homem, mas todos os homens convenientemente vestidos amarram seus cadarços na rua).

Eu mesmo na minha experiência como professor, já utilizei letras de músicas de Talking Heads e Madonna a Latino e o funk Dança da Motinha para contextualizar certos temas e debates. Imagine se uma dessas provas fosse parar em redes sociais…

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

9 Comentários

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  1. as midionas de hoje e Diógenes, O Cínico

    Parabéns ao Professor Antonio Kubitschek. O objetivo da questão “Valeska” era causar repercussão nas mídias, e conseguiu. 

    http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_educacaobasica/2014/04/08/ensino_educacaobasica_interna,421964/objetivo-da-questao-sobre-valesca-popozuda-era-gerar-polemica-diz-docente.shtml

    Fico imaginando como a Globo veria o filósofo Diógenes, aquele do barril. 

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%B3genes_de_S%C3%ADnope

    Ficheiro:Waterhouse-Diogenes.jpg

  2. Isso, Wilson.

    Adiciono que a âncora da TV Globo, no afã de mostrar-se indignada, acabou revelando burrice, além de preconceito. Notem que ela havia anunciado a matéria dizendo que pra se responder à questão seria preciso conhecer a letra do funk. Não é verdade: trata-se de uma questão com respostas em múltipla escolha, cuja solução depende do raciocínio, e não do conhecimento da letra: o fim do enunciado da questão (“se bater de frente”) está no mesmo campo semântico da alternativa a (“é tiro, porrada e bomba”). O professor justamente quis trazer a filosofia das estratosferas para o universo de referências de adolescentes de hoje em dia, com humor e ironia. 

  3. O que diz um aluno do professor:
    Gabe River commented on a link.

    Olá pessoal. Sou um dos alunos do CEM 03 de Taguatinga, onde a prova foi aplicada. E queria dizer que é extremamente divertido ver a reação do público controlado pela mídia. Pessoas abaixo dizendo que ele é um cretino, babaca, só tem o diploma na parede… Que “esse é o motivo da educação estar tão ruim”.

    Acontece que esta foi uma das 12 questões da prova bimestral de filosofia, onde o professor colocou esta questão (nº 11) por motivos que ele mesmo explicou na entrevista.

    Mas não é aí onde quero chegar, e sim no fato de que o público, controlado pela mídia, tende a ver somente o que é exposto e julgar indiscriminadamente sem antes avaliar a situação como um todo. Isso entra em um dos assuntos que nos foram explicados pelo professor recentemente, sobre Kohlberg. A matéria dada pelo professor Antônio tratava a respeito da Teoria do Desenvolvimento Moral. Eu não vou explicar isso aqui, pois se acham-se no direito de julgarem um professor de filosofia, creio eu que devem ter conhecimento a respeito do assunto. No entanto, um dos tópicos foi o dilema de Heinz, proposto por Kohlberg. Ele diz que Heinz estava com a esposa doente, e o remédio que a salvaria custava mil dólares. Como não podia comprá-lo do farmacêutico que detinha a fórmula, após esgotadas as tentativas de obtê-lo de modo honesto, roubou-o. Kohlberg pergunta se o marido fez bem ou não em ter roubado, e analisa as respostas dadas, indentificando o nível moral do entrevistado através destas. (texto retirado do livro Filosofando, ARRUDA, Maria Lúcia de; e MARTINS, Maria Helena Pires, com adaptações). O que acontece nesta situação é o mesmo. É possível “analisar” as diversas respostas do público em relação à questão da prova e identificar seus níveis morais. “Não devia ter colocado a questão na prova pois é um professor e isso é errado.” (nível convencional, terceiro estágio – pertencimento ao grupo). Quando suas respostas a isso, como adultos, deveriam estar no nível pós-convencional, destacando o conflito entre a ética profissional e o direito que cada pessoa tem de exercer a própria vida, ou no sexto estágio do nível pós-convencional. Mas, infelizmente, como diz Kohlberg, nem todos os adultos atingem este nível, devido à educação e vida que recebem, em condições diferentes.

    Se chegou a ler até aqui, gostaria de ressaltar apenas algumas informações importantes sobre o conteúdo da prova. As demais 9 questões da prova tratavam de ética, moral, valores, e níveis de moralidade. Caso tenham alguma dúvida, podem pedir à direção da escola para liberar o resto do conteúdo da prova. Estes conteúdos que citei acima, foram todos tratados e explicados em sala pelo professor, conteúdos que também estão presentes no livro que nos foi dado pela escola e no componente curricular da terceira série do Ensino Médio. Então, para aqueles que gostam de dizer que o professor é incompetente por causa de uma única questão e que não estamos aprendendo nada em sala, saibam que estamos sim aprendendo, e não somente um ou dois alunos, mas a grande maioria.

    E, para finalizar, posso dizer que apenas me sinto mal por vocês adultos que ainda se encontram no Estágio Intuitivo ou Simbólico de Piaget. Esse é aquele estágio em que a criança possui uma inteligência egocêntrica, sendo assim ela sente, pensa e age a partir de si mesma e não se coloca no lugar do outro. Digo isso porque, ao invés de avaliarem a situação corretamente, baseado em todo o contexto do ocorrido, simplesmente julgam o professor por sua questão sem avaliar o contexto todo, como se fossem perfeitos ou pudessem fazer melhor. Acontece que, olha só para o que estão fazendo: criticando, atrás de uma tela de computador, usando de argumentos incoerentes, palavras ofensivas e tudo o mais. Acham mesmo que pessoas nesse nível são capacitadas pra julgar a ética e moral dos outros?

    Obrigado pela atenção, e BEIJINHO NO OMBRO PRO RECALQUE PASSAR LONGE.
    Gabriel Guilherme, 3º G #39 CEM 03 de Taguatinga.

     

     

    1. Eles pararam no estagio do Id

      O garoto do texto ai acima deu um baile nos jornalistas, o que também não esta dificil, não. O professor foi irônico na proposição sobre a tal musica. Mas é isso mesmo, você ja entendeu bem o que acomete às pessoas hoje em dia. E que chance você tem de ter um professor que estimule a pensar. 

  4. Carta de um aluno
    Essa carta , de um aluno de escola pública, numa cidade-satélite  de Brasília, me  convenceu que ele tem um bom professor. A resposta de um dos alunos do professor Kubtischek, que também pode ser visto na página do Facebook dele: https://www.facebook.com/gabe.river0 ”Olá pessoal. Sou um dos alunos do CEM 3 de Taguatinga, onde a prova foi aplicada. E queria dizer que é extremamente divertido ver a reação do público controlado pela mídia. Pessoas abaixo dizendo que ele é um cretino, babaca, só tem o diploma na parede… Que “esse é o motivo da educação estar tão ruim”. Acontece que esta foi uma das 12 questões da prova bimestral de filosofia, onde o professor colocou esta questão (nº 11) por motivos que ele mesmo explicou na entrevista. Mas não é aí onde quero chegar, e sim no fato de que o público, controlado pela mídia, tende a ver somente o que é exposto e julgar indiscriminadamente sem antes avaliar a situação como um todo. Isso entra em um dos assuntos que nos foram explicados pelo professor recentemente, sobre Kohlberg. A matéria dada pelo professor Antônio tratava a respeito da Teoria do Desenvolvimento Moral. Eu não vou explicar isso aqui, pois se acham-se no direito de julgarem um professor de filosofia, creio eu que devem ter conhecimento a respeito do assunto. No entanto, um dos tópicos foi o dilema de Heinz, proposto por Kohlberg. Ele diz que Heinz estava com a esposa doente, e o remédio que a salvaria custava mil dólares. Como não podia comprá-lo do farmacêutico que detinha a fórmula, após esgotadas as tentativas de obtê-lo de modo honesto, roubou-o. Kohlberg pergunta se o marido fez bem ou não em ter roubado, e analisa as respostas dadas, indentificando o nível moral do entrevistado através destas. (texto retirado do livro Filosofando, ARRUDA, Maria Lúcia de; e MARTINS, Maria Helena Pires, com adaptações). O que acontece nesta situação é o mesmo. É possível “analisar” as diversas respostas do público em relação à questão da prova e identificar seus níveis morais. “Não devia ter colocado a questão na prova pois é um professor e isso é errado.” (nível convencional, terceiro estágio – pertencimento ao grupo). Quando suas respostas a isso, como adultos, deveriam estar no nível pós-convencional, destacando o conflito entre a ética profissional e o direito que cada pessoa tem de exercer a própria vida, ou no sexto estágio do nível pós-convencional. Mas, infelizmente, como diz Kohlberg, nem todos os adultos atingem este nível, devido à educação e vida que recebem, em condições diferentes. Se chegou a ler até aqui, gostaria de ressaltar apenas algumas informações importantes sobre o conteúdo da prova. As demais 9 questões da prova tratavam de ética, moral, valores, e níveis de moralidade. Caso tenham alguma dúvida, podem pedir à direção da escola para liberar o resto do conteúdo da prova. Estes conteúdos que citei acima, foram todos tratados e explicados em sala pelo professor, conteúdos que também estão presentes no livro que nos foi dado pela escola e no componente curricular da terceira série do Ensino Médio. Então, para aqueles que gostam de dizer que o professor é incompetente por causa de uma única questão e que não estamos aprendendo nada em sala, saibam que estamos sim aprendendo, e não somente um ou dois alunos, mas a grande maioria. E, para finalizar, posso dizer que apenas me sinto mal por vocês adultos que ainda se encontram no Estágio Intuitivo ou Simbólico de Piaget. Esse é aquele estágio em que a criança possui uma inteligência egocêntrica, sendo assim ela sente, pensa e age a partir de si mesma e não se coloca no lugar do outro. Digo isso porque, ao invés de avaliarem a situação corretamente, baseado em todo o contexto do ocorrido, simplesmente julgam o professor por sua questão sem avaliar o contexto todo, como se fossem perfeitos ou pudessem fazer melhor. Acontece que, olha só para o que estão fazendo: criticando, atrás de uma tela de computador, usando de argumentos incoerentes, palavras ofensivas e tudo o mais. Acham mesmo que pessoas nesse nível são capacitadas pra julgar a ética e moral dos outros? Obrigado pela atenção, e BEIJINHO NO OMBRO PRO RECALQUE PASSAR LONGE.Gabriel Guilherme, 3º G #39 CEM 03 de Taguatinga.” 

  5. Confesso que não entendi:

    Confesso que não entendi: estratégia pedagógica para discutir com os alunos valores da sociedade e o papel da imprensa, numa questão de múltipla escolha, no momento da avaliação? Como se dá essa discussão? Não seria o caso de uma questão aberta, discursiva? 

  6. Fácil de mostrar um exemplo

     

    Leio o post.

    Abro outra aba e entro na página do portal G1. Há chamadas para diversas notícias. Uma delas é a seguinte: Sophie Charlotte curte uma praia e dá ajeitadinha no biquíni no Rio”.

    Em outra aba, entro no UOL. Umas das chamadas: “Silvio Santos aparece em selfie com Lívia Andrade após dia de trabalho”.

    E esta é apenas uma pequena amostra.

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