A última gravação de Parker com Gillespie, por Jota A. Botelho

por Jota A. Botelho

O ÚLTIMO ENCONTRO GRAVADO de Charlie Parker com Dizzy Gillespie aconteceu em 15 de maio de 1953, no Massey Hall em Toronto, no Canadá. O concerto The Quintet Jazz At Massey Hall reuniu pela primeira e única vez um grupo de lendários músicos de jazz encabeçados por Charlie Parker e Dizzy Gillespie, considerados os criadores do bebop, acompanhados por Bud Powell, Max Roach e Charles Mingus, ambos também vistos individualmente na época como grandes inovadores deste novo e moderno estilo de jazz. O espetáculo foi quase totalmente improvisado como iremos contar na sequência, mas antes vamos abrir o nosso post com uma leitura genial do pianista Bud Powell, interpretando com uma suavidade comovente uma das belas canções de Cole Porter, a ponto de sensibilizar Max Roach na bateria e Charles Mingus no contrabaixo. Para alguns críticos, foi Bud Powell quem teve a melhor perfomance do show e também uma de suas melhores apresentações ao vivo. Mas logo saberemos os motivos. 

I’ve Got You Under My Skin, de Cole Porter, com Bud Powell, Max Roach e Charles Mingus.
https://www.youtube.com/watch?v=G_q9AnlQktA align:center]


O CONCERTO THE QUINTET JAZZ AT MASSEY HALL

Anunciado e conhecido como ‘O Maior Concerto de Jazz do Mundo’, mas a história não foi bem assim, segundo Don Brown, uma testemunha ocular do evendo descrito no blog de Marc Myers. Vamos tentar traduzir o artigo de forma literal (e desde já nos desculpamos de nossas imprecisões) sobre o que disse Don Brown ao discutir o show com Myers, quando ele deixou escapar que tinha assistido Charlie Parker e sua famosa apresentação com Dizzy Gillespie, em 1953, no Concerto do Massey Hall em Toronto, no Canadá, mas sem deixar de fazermos nossos acréscimos através de pesquisas em outros sites. Mas antes do artigo propriamente dito, os principais detalhes que Brown presenciou do evento é que ele continua a ser notável por várias razões.

A primeira delas é que Charlie Parker e Dizzy Gillespie, dois grandes amigos, se reuniram pela última vez numa gravação, e que todos os membros foram bastante influenciados por Bird em suas carreiras, o que permitiu uma química de outro mundo no palco. Charlie Parker apresentou tocando um saxofone de plástico, também conhecido como Grafton que, segundo alguns biógrafos, foi o que conseguiu arranjar de última hora por ter se atrasado e esquecido o seu sax alto. Além do mais, Charlie Parker teve que aparecer como Charlie Chan nos créditos porque ele estava vinculado por contrato de gravação com a Mercury Records. Este nome também foi usado por ele numa alusão ao seriado do fictício detetive Charlie Chan e à sua mulher Chan Parker.

A outra foi que Bud Powell estava completamente bêbado quando chegou ao show. Há quem diga que isso é mito e a história correta é que ele tinha saído há três meses de um hospital psiquiátrico e só precisou de um pouco de ajuda para chegar até o piano. Independente da versão correta, foi uma das maiores performances de sua carreira. O Quinteto nunca ensaiaram e só decidiram o que iriam tocar alguns minutos antes do show. Dizzie Gillespie saiu algumas vezes no meio do concerto para acompanhar a transmissão da luta de boxe entre Rocky Marciano e Jersey Joe Walcott valendo o campeonato. Em alguns momentos, o Quinteto fazia pausas e, junto com a plateia, iam acompanhar a luta. Por causa da disputa, o show não ficou lotado e a organização não quis pagar os músicos. Quando pagou, foi com cheques sem fundo. Somente Charlie Parker conseguiu de fato sacar o dinheiro, enquanto Dizzy Gillespie reclamou a vida inteira do cano que levou.

O registro do show foi originalmente realizado pela pequena gravadora Debut Records, fundada por Charles Mingus e Max Roach, a partir de uma gravação feita pela New Jazz Society (NJS). Charles Mingus levou a gravação para Nova York depois de brigar com os membros da NJS (Dick Wattam, Alan Scharf, Roger Feather, Boyd Raeburn e Arthur Granatstein), onde ele e Max Roach registraram suas participações e as de Bud Powell. Mais tarde foi lançado três volumes em Lps pela Debut com as gravações do próprio Mingus, que regravou algumas trilhas de baixo por quase não ser possível escutar o som. Mas em 2004, foi lançada a versão completa do show sem o overdubbing dele, contemplando as 14 faixas, das quais as de números 5 a 11 não contam com as presenças de Parker e Gillespie. A versão completa do show pode ser ouvida aqui, com a relação das músicas interpretadas durante o concerto.


The Quintet pela ordem na foto: Charlie ‘Chan’ Parker, Dizzy Gillespie, Max Roach, Charles Mingus e Bud Powell.

Vamos agora ao artigo com as lembranças de Don Brown sobre o concerto no Massey Hall. Ele recordou que:

“No início da primavera de 1953, os membros da New Jazz Society (NJS) se reuniram para discutir a possibilidade de trazer alguns dos principais praticantes do jazz moderno para a cidade para um concerto. Quando entrevistei Dick Wattam, o presidente da NJS, em 1993, ele me disse que tinha havido uma certa resistência com os demais membros naquele momento. Eles não haviam esquecidos que tinham perdido uma grana no verão anterior em um concerto que produziram de Lennie Tristano Quintet com Lee Konitz e Warne Marsh. O concerto com Tristano foi um sucesso musical, mas um desastre financeiro. O único lugar que a NJS podia pagar era uma pequena sala na Christie Street, que não tinha ar condicionado e, infelizmente, o concerto ocorreu num dos dias mais quentes do ano, suprimindo a afluência. Muitos dos investidores perderam cada centavo, portanto, eles não estavam dispostos a serem mordidos duas vezes.

Mas Dick Wattam não desistiu tão facilmente. De alguma forma ele conseguiu convencer os demais sócios que cada amante de jazz em Toronto estaria disposto a quebrar as portas das salas de concertos para ouvir o grupo estelar de músicos que ele tinha em mente. Sua escolha original dos participantes foram com Dizzy Gillespie no trompete, Charlie Parker no saxofone alto, Lennie Tristano no piano, Oscar Pettiford no baixo, e Max Roach na bateria. Dizzy, Bird e Max concordaram, mas Pettiford não estava disponível, e Tristano recusou a oferta, embora tenha recomendado Bud Powell a Wattam, que tinha acabado de ser liberado de um hospital psiquiátrico e seria muito mais apropriado para o grupo. Charles Mingus foi a escolha de Wattam para substituir Pettiford no baixo”.

Na nossa opinião, este concerto pode ter sido uma espécie de caça-níquel, tanto para à NJS quanto para os músicos de jazz. Tudo leva a crer que estavam todos duros.

Mas Brown continua: 

“A data foi escolhida algumas semanas antes, e o Massey Hall foi reservado, com lotação para 2.753 pessoas. (…) Mas depois as coisas começaram a ficar feias. Wattam conseguiu convencer seus colegas da NJS que não havia necessidade de comprar qualquer anúncio para divulgar o concerto. Afinal, quando os disc jockeys de rádios locais mencionassem o próximo concerto em seus programas, os ouvintes iriam ficar animados e as notícias se espalhariam rapidamente de boca em boca. Mas isso certamente não aconteceu na medida que Wattam esperava. Então, para complicar ainda mais, a data escolhida – 15 de maio de 1953 – passou a ser numa sexta-feira. Às sextas-feiras, na década de 1950, o boxe era parte da programação da TV regular, e o Friday Night Fights era extremamente popular. Para piorar uma situação difícil, uma luta da World Heavyweight Championship em Chicago foi marcada para este dia em particular, entre o campeão Jersey Joe Walcott e o desafiante Rocky Marciano (1). Naturalmente, as pessoas ficaram em casa em massa. Wattam simplesmente não prestava muita atenção para as coisas fora do mundo do jazz”.

(1) corrigimos aqui as declarações de Don Brown que está invertida. Marciano foi o desafiante, mas no ano anterior, em 23 de setembro de 1952, contra o mesmo Joe Walcott, em que se tornara campeão também por nocaute, conforme o site Mundo Estranho, itém 4

As lutas de boxes entre Rocky Marciano vs Jersey Joe Walcott, em 23/09/1952, no Municipal Stadium, na Filadélfia/EUA, e em 15/05/1953, no Chicago Stadium/EUA, sendo que a segunda interrompeu o concerto de jazz do The Quintet, no Massey Hall em Toronto, no Canadá, uma vez que ela ocorreu na mesma data e horário do show, numa sexta-feira, 15 de maio de 1953, e ambas foram vencidas por Rocky Marciano por nocaute, valendo pelo título de campeão. 


Os tickets das duas lutas (acima/abaixo): 23 de setembro de 1952 e 15 de maio de 1953. 

https://www.youtube.com/watch?v=99u6J3dkGmc align:center]


Um público de gatos pingados.

Brown nos informa ainda que:

“O meu amigo e eu compramos assentos de um balcão no centro, na linha de frente do palco do Massey Hall, e ainda me lembro olhando para baixo com um auditório quase vazio. O salão estava com menos de um terço completo e o concerto teve início cerca de meia hora de atraso (…). Lembro-me de que a formação do Quinteto foi curta, apenas quatro ou cinco músicas. Então Dizzy saiu das asas, seguido por Charles Mingus e Max Roach. Eventualmente, um confuso e instável Bud Powell foi levado para o piano pelo seu tutor, nomeado pelo tribunal, Oscar Goodstein. Finalmente, Charlie Parker, que o meu amigo e eu não tinha visto antes em pessoa, caminhou para fora olhando com a aparência de uma cama desfeita. Ele estava carregando um saxofone alto branco de plástico. Mais tarde soubemos que ele penhorou o seu saxofone Selmer para comprar drogas (2)“.

(2)The Guardian


Charlie Parker visilmente com um saxofone de plástico. 

Brown finaliza:

“Tinha-se a impressão de que nada fora elaborado pelos músicos de antemão. Depois de alguns minutos de discussão animada entre Dizzy e Bird, eles abriram com a música ‘Perdido’ de Juan Tizol, não com uma peça que se poderia esperar de dois dos fundadores do bebop. Mas, como qualquer pessoa familiarizada com a gravação do evento, sabe que foi um desempenho notável e veloz. Então, a diversão começou. Dizzy, que era normalmente um modelo de confiabilidade, parecia mais interessado na luta pelo campeonato do que com o concerto em questão. Ele continuou deslizando para os bastidores entre solos para verificar no rádio se a luta havia começado. Cada vez que ele voltava ao palco, dava ao público um breve comentário sobre as preliminares da disputa. Quando a competição do campeonato finalmente começou, tudo estava acabado no primeiro minuto e Marciano era o novo campeão. Dizzy disse sobre isso à plateia, mantendo as mãos na cabeça! De volta ao palco, ele começou a fazer caretas para Bud Powell debaixo da tampa do piano, tentando provocar uma reação, mas o pianista o ignorou e continuou a tocar como se sua própria vida dependesse disso, e ele provavelmente o fez.

Mingus começou a disparar olhares furiosos para o trompetista travesso, enquanto Max, o membro mais estável do grupo, de alguma forma conseguiu manter as coisas juntas. (…) Charles Mingus sempre esteve mais sob a influência do músico/compositor Duke Ellington, e lembro-me que Wee (também conhecida como Allen’s Alley) pareceu dar-lhe alguns problemas.

No intervalo Bird desapareceu. O Bandleader Rob McConnell me disse nos últimos anos que tinha visto Charles no bar, do outro lado da rua, bebendo scotches triplos. De fato, McConnell, que era menor de idade na época, conseguiu comprar algumas bebidas para ele com dinheiro emprestado. Ele ficou chocado quando ouviu Bird em desordem. Quando ele voltou ao palco, o seu modo de tocar, na segunda metade do concerto, foi surpreendentemente afetado. O concerto encerrou com Bird e Dizzy se juntando ao Canadian All Star Big Band com um blues. Infelizmente, nesta altura o gravador tinha sido desligado, então não há nenhum registro dele.

Bud Powell, é claro, teve seu melhor desempenho com o trio durante a maior parte do show (sem Parker e Gillespie). (…) Ele estava magnífico. Lembro-me que, imediatamente após o intervalo, Max Roach interpretou um solo chamado Drum Conversation. Algumas pessoas na plateia pareciam pensar que eles estavam num concerto da Jazz at the Philharmonic e começou a gritar ‘Go Max, go!’

Lembro-me ainda que o meu amigo e eu sentimos que o concerto foi muito divertido, mas esperava ouvir Dizzy e Bird num ambiente mais organizado no futuro. Isto, naturalmente, não era para ser. Nós nunca vimos Charlie Parker novamente. Os rumores mais tarde surgiram sobre as brigas que tiveram entre Bird e Dizzy, Bird e os organizadores, Mingus e todos eles. Eu não tenho ideia das razões. Mas no palco, a rivalidade musical amigável provocou uma tempestade melódica. Fora à anarquia e o caos, o gênio musical prevaleceu. Os jornais no dia seguinte analisaram o espetáculo de forma muito negativa. Robert Fulford bateu muito no concerto em sua crítica no Globe and Mail que eu discordei dele. Embora o show tenha sido muito caótico, porém, havia uma abundância de boas músicas. Mas ‘O Maior Concerto de Jazz do Mundo’, como foi descrito mais tarde? Eu não penso assim”.

Por Don Brown 
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Uma ilustração e foto do Massey Hall nos anos 50. Abaixo, o Massey Hall hoje e o simulacro que deve ter virado.

A NOSSA SELEÇÃO:

Perdido (Ervin Drake, H.J. Lengsfelder & Juan Tizol)
https://www.youtube.com/watch?v=4rIazMebnAU align:center]

All The Things You Are (Oscar Hammerstein II & Jerome Kern)
https://www.youtube.com/watch?v=SHs_D6tYdH8 align:center] 

52nd Street Theme (Thelonious Monk)
https://www.youtube.com/watch?v=G705iQ3yAUM align:center] 

Drum Conversation (Solo by Max Roach) 
https://www.youtube.com/watch?v=wT0m_0bZXF0 align:center]

Cherokee (Ray Noble) 
https://www.youtube.com/watch?v=tC9D1Mu_56Q align:center]

Hallelujah [Jubilee (Clifford Grey, Leo Robin & Vincent Youmans)
[video:https://www.youtube.com/watch?v=-bUQq0UW0og align:center

Sure Thing (Bud Powell) 
[video:https://www.youtube.com/watch?v=1bpn2C4o97E align:center

Lullaby Of Birdland (George Shearing & George David Weiss) 
[video:https://www.youtube.com/watch?v=KVa_JEjKWmw align:center

Wee [Allen’s Alley (Denzil Best) 
[video:https://www.youtube.com/watch?v=JkfDU6VG3p8 align:center

A Night In Tunisia (Dizzy Gillespie & Frank Paparelli) 
[video:https://www.youtube.com/watch?v=tJMuZN2Vn6g align:center

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Referências: 
Wikipédia/JazzatMasseyHall
Bird Lives – Jazz At Massey Hall
10 A.M. – Jazz & Blues
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Jota Botelho

1 Comentário

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  1. Sessenta e tres anos depois

    Sessenta e tres anos depois eles continuam mais avançados que os musicos de hoje.

    Genios, genios, genios.

    E se a historia do saxofone ser de plastico for verdadeira, ai o Parker é ainda mais genio do que imaginavamos.

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