A contradição entre o voto popular e o poder das elites

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Ref.: As semelhanças entre 1964 e 2014

Por Fernando G. Trindade

Parabéns ao Nassif por ter percebido a importância de se pesquisar, investigar e analisar a continuidade na história e não apenas a mudança.

1) O artigo me fez recordar a lição do grande historiador Fernand Braudel e sua tese dos 3 tempos da história, curta, média e longa duração.

No caso a passagem da curta para a média duração. Desde 2005/2006 que para mim ‘caiu a ficha’ das impressionantes semelhanças entre o processo político de hoje e o de 50/60 anos atrás.

A correta e precisa contradição que Nassif fez entre voto x poder também me fez recordar os idos de 64 e a falta de resistência ao golpe apesar dos bons índices de popularidade de Jango (confirmados pelo IBOPE).

Tenho convicção que talvez o maior erro do PT no governo ( e que redundou na crise – e farsa – do ‘mensalão’) tenha sido exatamente não ter se dado conta em que num País de pouca institucionalidade a contradição entre o voto popular e o poder das elites tende a ser bem maior do que nas sociedades ocidentais (atenção – insista-se sempre – o Brasil não é um país ocidental ‘tout court’, outra característica não percebida pelo PT no governo). Por isso cabe também registrar e acompanhar de perto o que está ocorrendo hoje nos processos politicos da Venezuela, da Turquia, da Tailândia, entre outros não ocidentais, a Venezuela como o Brasil é parcialmente ocidental, por assim dizer.

2) Ademais, cabe insistir no que já escrevi aqui. A direita no Brasil não está sustentada fundamentalmente nos partidos políticos, mas nos estamentos do Estado (veja o Judiciário, MP, BC, PF, FFAA etc etc) e especialmente na articulação midiático-capital financeiro.

Sobre o conservadorismo dos altos estamentos do Estado brasileiro – desde sempre – diversos autores já registraram tal característica. Agora mesmo nesses dias de carnaval estou lendo Manoel Bonfim e sua importante obra “A América Latina: males de origem”, de 1903 (cento e dez anos atrás e olha aí a questão dos tempos da história) e me deparo com tal afirmação de Bonfim “Dentre os diversos aparelhos e instituições sociais, não nenhum tão resistente ao progresso, e às reformas em geral, como as máquinas governamentais.” E após desenvolver interessante análise em que aponta que o burocrata “entrado na máquina administrativa, uma vez afeiçoado ao seu cargo, passa a cumprir função quase que automaticamente; daí por diante, vai ele incorporar-se aos outros nesta resistência passiva e absoluta – absoluta porque é inconsciente e automática – a qualquer modificação.” E conclui “Isto é assim no geral das sociedades: imagine-se, agora, em sociedades essencialmente conservadoras, viciadas num conservadorismo obstinado!…” (Nas quais inclui o Brasil). (Cf. item I do cap. “Efeitos devidos à tradição e à imitação”

3) Da minha parte,, sigo convencido de que o STF no ‘julgamento do Mensalão’ exerceu funções que foram exercidas pelas Forças Armadas no regime militar, no sentido da presunção de achar que está procedendo a uma ‘limpeza ética’ na política, por assim dizer, e com essa presunção perversa e ilusória o STF procedeu a uma flexibilização de regras constitucionais como a da presunção da inocência e a do duplo grau de jurisdição, da mesma forma que o regime militar procedeu nos idos do regime militar (a confissão de Barbosa não deixa mais dúvidas quanto à intenção de sobrepor a ‘limpeza ética’ ao direito e à justiça). Esperemos que a revisão feita pela maioria do STF na última assentada seja o início de uma mudança quanto a tal equívoco.

Cabe também dizer que a transmigração da ideologia udenista das FFAA para o STF se explica pela expressiva legitimidade simbólica da Constituição de 1988. Em razão dessa legitimidade a intervenção e a pretensa tutela da política não podem ser hoje feitas com rompimento expresso da Constituição, mas sim, utilizando-a como fundamento, embora apenas nominalmente. Daí a transmigração de um estamento estatal a outro.

Daí que enquanto a Constituição de 1988 permanecer com o grau de legitimidade que tem hoje qualquer golpe será na modalidade ‘golpe branco’ e terá que ter a participação do STF (por isso personagens como Barbosa e Gilmar são hoje mais importantes para o golpismo do que os generais golpistas foram em 64).

Para encerrar cabe o registro de que o ‘freio de arrumação’ que a grande mídia deu após as últimas declarações de Barbosa (veja-se os editoriais dos jornalões desaprovando ou ignorando a conclamação golpista de Barbosa) parece demonstrar que a mídia – no momento – não aposta em golpe, ainda que branco.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

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  1.  
    O constituinte de 1988 quis

     

    O constituinte de 1988 quis impedir o golpismo fortalecendo o STF e o MPF. Ledo engano. Hoje, a fonte mais provável de golpe é justamente o STF/PGR.

  2. Fernando, excelente

    2) Ademais, cabe insistir no que já escrevi aqui. A direita no Brasil não está sustentada fundamentalmente nos partidos políticos, mas nos estamentos do Estado (veja o Judiciário, MP, BC, PF, FFAA etc etc) e especialmente na articulação midiático-capital financeiro.

    Desde a invasão dos portugueses que a direita encontra sua maior sustentação nestes grupos.

    Uma das poucas diferenças é a substituição dos latifundiários pelo capital financeiro.

    Por isso, insisto que o Brasil não saiu da “casa grande e senzala”.

    O que ocorrerá quando aprendermos o que é exercer cidadania, o que vem com a inclusão social e a educação.

    Os temas de mais resistência da direita.

  3. Caro Fernando. Muito bom!

    Caro Fernando. Muito bom! Poderia explicar um pouco mais a fundo sobre o Brasil e Venezuela nao tão ocidentais? Abrs

     

     

    1.  
      Caro Flávio, as

       

      Caro Flávio, as dificuldades em entender que o Brasil não é apenas um país ocidental, que não pode ser uma reprodução das sociedades ocidentais, tem sido um drama para as elites brasileiras (historicamente vindas do Ocidente) e produzido um grande mal-estar e dificuldade de aceitação do Brasil e dos brasileiros por nossas elites e não só por elas.

      Creio que é a esse mal-estar que Sérgio Buarque de Holanda faz referência já no parágrafo de abertura de “Raízes do Brasil”: “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.”

      Creio que isso tem muito a ver (embora não só) com as tentativas de reprimir e recalcar a presença e as nossas heranças africana e indígena. Outro dia li uma interessante entrevista do Prof. Luis Felipe de Alencastro (que se dedica e é especialista no tema) lá no ‘saite’ do Instituto Cidadania (de Lula) em que afirma  que o Brasil é um país ocidental, mas não só, pois é também um país africano (aliás, isto está presente  já em Joaquim Nabuco, veja-se O Abolicionismo). E Alencastro chama a atenção para a importância de Angola na formação histórica do Brasil.

      Poderíamos falar também sobre a região e aos povos que formaram a Nigéria, porque não se repercute a profunda e extensa importância dos africanos dali que vieram para cá, das etnias haussá e iorubá, por exemplo?

      Enfim, eu diria que se de certa forma somos ocidentais, não somos apenas ocidentais, mas também somos do Sul, ou seja, se temos coisas em comum com Europa Ocidental e com EUA, temos também coisas em comum com África e com a Ásia.

      Aliás, por falar em semelhanças, já faz algum tempo que reflito sobre o porque os nossos pesquisadores patrícios não realizam ou realizam pouco estudos comparativos com os países do Sul, e vivem fazendo tais análises comparativas com países como França, EUA, Suíça, Alemanha, Inglaterra, todos do Norte, com honrosas exceções como o Prof. Alencastro.

      Será que não sería produtivo verificar interessantes (coincidências apenas?) entre Turquia e Brasil. Exemplo, a por vezes determinante participação das Forças Armadas na vida política e social. Exemplo de agora, a oposição do Poder Judiciário e outros estamentos estatais a governos populares (aqui e lá). A curiosa coincidência entre a condenação criminal de líderes do PT sob a acusação de corrupção no exercício do governo e o neste momento em andamento processo de acusação de líderes do governo turco de exatamente corrupção no exercício do governo?

      Outro exemplo, indo mais para Oriente. Não daria um estudo interessante a comparação entre os processos políticos da Indonésia e do Brasil na primeira metade dos anos 60? O governo João Goulart e o processo politico e social Brasil de então não têm bem mais em comum com o governo Sukarno e o processo político indonésio para fins comparativos do que o governo Kennedy e o processo político social estadunindense ou o governo Adenauer e o processo ´político social da Alemanha?

      Atenciosamente,

       

       

       

       

       

       

  4. Excelente.
    Sinto falta apenas

    Excelente.

    Sinto falta apenas de um texto sobre a influência das religiões tanto em 64 como agora. Esse é um tema pouco discutido.

    1. “Sinto falta apenas de um

      “Sinto falta apenas de um texto sobre a influência das religiões tanto em 64 como agora”:

      Sa bo ta gem   so ci al , Marco.

      Caso encerrado!  E tenho dito!

    2. Muito bem lembrado, Marco. A

      Muito bem lembrado, Marco. A igrejas protestantes que aqui se instalaram em peso, na decada de 70, prestam inestimável serviço no construto de mentes altamente conservadoras, impermeáveis à reflexão e às mudanças. Já tínhamos sofrido antes um duro golpe no projeto de formação de um pensamento crítico nacional: o AI 5, firmou as bases pedagógicas do acordo MEC-USAID, debelando de vez nossos próprios projetos, muito bem elaborados por nosso educador maior Paulo Freire. Creio que a decada de 70 foi a da conversão da cultura local para focos extra-locais, com grande ajuda da globo, e isso nunca foi devidamente combatido; dai os resultados aparecerem só agora. Já os católicos, históricos aliados do Estado até a RF, embora intentem avançar na dimensão política, não fazem, no entanto, trabalhos de construção mental como os protestantes, me parece fazerem interferências pontuais, e não há unanimidade entre as diversas ordens. Neste caso, me parece haver mais uso e abuso de temas religiosos que da Religião propriamente dita.

      1. Cara Nilccemar, acredito que

        Cara Nilccemar, acredito que é mais complexa e contraditória a questão do protestanismo no Brasil e nos países do Sul em geral.

        Se o protestantismo mais tradicional efetivamente tem contribuído para a reprodução do ‘status quo’, os pentecostais e neopentecostais têm muitas vezes atuado em solidariedade aos ‘de baixo’.

        A propósito, registro aqui interessante artigo do marxista Mike Davis, da Univerisdade da California e do conselho editorial da New Left Review “Planet of Slums” (2004), publicado no Brasil pela Boitempo “Planeta Favela”.

        Neste artigo, Davis demonstra como a desestruturação de comunidades e famílias em grandes cidades por todo o Sul, da Nigéria à China, do Paquistão ao Brasil, tem levado a um movimento de auto-ajuda comunitária, muitas vezes empreendidos por movimentos religiosos que articulam reivindicações por melhores condições de vida junto ao poder hegemônico.

        Dados interessantes coletados por Davis inclusive sobre o Brasil:

        “Sintomaticamente, a primeira congregação brasileira, num bairro operário anarquista de São Paulo, foi fundada por um artesão imigrante italiano que trocara Malatesta pelo Espírito Santo em Chicago. Na África do Sul e na Rodésia, opentecostalismo criou suas primeiras cabeças-de-ponte nos complexos mineirose nos bairros pobres, onde, segundo Jean Comaroff, “parecia harmonizar-se comas noções autóctones de forças espirituais pragmáticas e compensar a despersonalização e aimpotência da vivência da mão-de-obra urbana” . Concedendo umpapel maior àsmulheres do que as outras Igrejas cristãs e dando imenso apoio à abstinência e à frugalidade, o pentecostalismo – como descobriu R. Andrew Chesnut nas baixadas deBelém do Pará – sempre exerceu atração especial sobre“o estrato mais empobrecido das classes empobrecidas”: as esposas abandonadas,as viúvas e as mães solteiras”.

         

        .

  5. Caro Fernando e

    Caro Fernando e demais

    Acredito que há um adendo:

     

    A direita está sim, sustentada em partidos políticos, inúmeros, construidos ao longo do processo, e esses partidos, foram construíndo os estamentos de Estado, coisa que o PT e demais partidos progressitas deveriam agir para mudar, eses estamento seriam, em parte as seguranças, dos avanços do povo, junto aos aparelhos do Estado.

    Esses estamentos, é o atual bunker, o PT e demais partidos progressistas, tem que entrar e modificar esse núcleo da herança da sustentação da direita. 

    Ai é que mora o perigo.

     “2) Ademais, cabe insistir no que já escrevi aqui. A direita no Brasil não está sustentada fundamentalmente nos partidos políticos, mas nos estamentos do Estado (veja o Judiciário, MP, BC, PF, FFAA etc etc) e especialmente na articulação midiático-capital financeiro.”

    Saudações

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