Apertem os cintos, a guerra civil brasileira já começou

Duas notícias chamaram minha atenção este começo do ano. A primeira foi a invasão policial da sede da Mídia Ninja http://www.vermelho.org.br/noticia/291906-1. A segunda foi o cerco imposto ao Sindicato dos empregados da USP https://www.brasildefato.com.br/2017/01/05/sem-dialogo-reitoria-da-usp-cerca-sede-do-sindicato-dos-trabalhadores-com-grades/.

Abusos evidentes, os dois episódios não despertaram nem a atenção, nem a compaixão da grande imprensa. Muito pelo contrario, há vários anos os jornalistas e telejornalistas brasileiros se esforçam para construir um contexto em que a esquerda seja trucidada.

A moderna psicologia defende a tese de que não existem homens intrinsecamente bons ou maus. O que existe é o contexto, que pode ser virtuoso ou vicioso: 

“O contexto deve ser encarado como uma característica complexa e estruturada das habilidades psicológicas, característica que não está desconectada da habilidade do indivíduo (Rogoff, 1982).” http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-98931987000200012&script=sci_arttext  

A tragédia, portanto, não está no homem e sim no contexto em que ele atua. É preciso tentar entender o contexto em que a invasão da sede da Mídia Ninja e o cerco imposto ao Sindicato dos empregados da USP ocorreram sem cair no lugar comum. Dizer que os policiais agem como se fossem cachorros-loucos é irrelevante. Afinal, eles são apenas subordinados que cumprem ordens e temem punições administrativas.

Hannah Arendt afirma que:

“A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as consequencias finais do que estamos fazendo, a  violência só pode permanecer racional se almeja objetivos a curto prazo. Ela não promove causas, nem a história, nem a revolução, nem o progresso, nem o retrocesso; mas pode servir para dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública.” (SOBRE A VIOLÊNCIA, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009, p. 99).

Um pouco mais adiante a grande pensadora assegura que: 

“…quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência. Em uma burocracia plenamente desenvolvida não há ninguém  a quem se possa inquirir, a quem se possam apresentar queixas, sobre quem exercer as pressões do poder. A burocracia é a  forma de governo na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política, do poder de agir; pois o domínio de Ninguém não é um não-domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano.” (SOBRE A VIOLÊNCIA, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009, p. 101)

Apesar de estar se referindo à violência do movimento estudantil, Hannah Arendt nos dá uma pista importante para tentar entender o que está ocorrendo no Brasil.

Conforme foi noticiado, nos dois casos os policiais cometeram abusos que não despertaram qualquer reação da grande imprensa. Dramatizando suas queixas contra o sindicalismo politizado (Geraldo Alckmin) e contra a imprensa alternativa (Michel Temer) com ajuda dos jornalistas e telejornalistas a direita brasileira conseguiu o que desejava: legitimar a violência policial ilegalmente empregada contra uma parcela da população por razões políticas. As reações das vítimas certamente ocorrerão e serão igualmente dramatizadas.

A intolerância política, portanto, é o elo mais evidente que liga os dois episódios (e as reações provavelmente desejadas pelos arquitetos do novo regime imposto ao país pelo golpe de 2016). O que os próprios jornalistas e políticos conservadores dirão quando eles mesmos começarem a ser vítimas da espiral de violência criada pelos veículos de comunicação?

Os dois episódios mencionados indicam que, além dos meios necessários, seus protagonistas tinham uma necessidade incontrolável de purificar e destruir. No primeiro caso o que se pretende é a purificação da internet, mediante a destruição dos equipamentos utilizados pela imprensa alternativa para divulgar notícias indesejadas pelos comandantes da PM e/ou pelo Palácio do Planalto. No segundo, a USP será purificada não mediante uma melhor gestão dos recursos públicos e sim através da destruição da liberdade sindical.

Discorrendo sobre a violência de matriz política, Jacques Sémelin afirma que:

“A noção de embriaguez, aliás, tem aqui um sentido bem mais amplo que o do simples abuso do álcool ou mesmo de drogas, que os matadores podem consumir antes, durante e depois da passagem ao ato. A embriaguez é também da própria violência, pela qual o executor experimenta uma sensação de onipotência, podendo distribuir a morte sem restrições. A passagem ao ato, uma vez estabelecida, sempre recomeçada, parece induzir formas compulsivas de comportamento, próximas da toxicomania. Há um verdadeiro arrebatamento, ao mesmo tempo perverso e magnetizante, em poder assim agir sobre os corpos, sobre a vida e sobre a morte: causar sofrimento, humilhar, torturar, gozar, cortar, matar e de novo matar para, em seguida recomeçar.” (PURIFICAR E DESTRUIR, Jacques Sémelin, Rio de Janeiro, Difel, 2009, p. 412)

Semélin refere-se à dinâmica do massacre num contexto de conflito armado, em que “causar sofrimento, humilhar, torturar, gozar, cortar, matar e de novo matar para, em seguida recomeçar” se torna uma realidade cotidiana. Os ataques à Mídia Ninja e ao Sindicato dos trabalhadores da USP não produziram vítimas. As vítimas começarão a ocorrer no exato momento em que as sedes de outros sindicatos e empresas de comunicação alternativas forem atacadas e as vítimas resistirem á violência policial ilegal para dramatizar sua justa insatisfação.

A guerra é um fenômeno coletivo, mas depende de atos individuais de violência extrema como aqueles que foram praticados pelos nazistas (e pelos policiais e militares brasileiros que torturaram e executaram prisioneiros durante a ditadura militar). Portanto, a embriaguez da própria violência (legitimada pela imprensa e autojustificada pelas vítimas) pode se transformar num componente adicional das tragédias que ocorrerão no Brasil. Afinal, a dramatização da queixa (Arendt) pode se tornar ainda mais sedutora no momento em que os policiais encarregados da purificação começaram a agir e a sofrer as consequencias da resistência (Semélin). 

A burocratização das sociedades modernas é um fato irreversível e continuará provocando dramatizações violentas como as que foram noticiadas. O que pode ser feito?

Censurar a imprensa está fora de cogitação, mas o Judiciário poderia dar as vítimas o mesmo espaço que tem sido utilizado para legitimar os abusos policiais. Responsabilizar os políticos e comandantes policiais? Sem dúvida esta seria a melhor solução. Todavia, não estamos mais vivendo um período de normalidade democrática. Uma prova disto foi dada pela absoluta naturalidade como o Estado e a imprensa trataram as rebeliões de presidiários com quase uma centena de mortos.

Uma sociedade que se acostuma à barbárie (e até premia quem a estimula, como no caso do Secretário da Juventude de Michel Temer e do Deputado Jair Bolsonaro) está apenas criando um contexto em que atos ainda mais bárbaros são desejados ou planejados. Nesse sentido, não podemos dizer que o Brasil corre o risco de uma guerra civil. De fato, o conflito começou em 2016, no exato momento em que o estudante Guilherme Silva Neto foi morto a tiros por seu pai. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. O máximo que acontecerá será

    O máximo que acontecerá será uma guerrilha estilo araguaia, no qual os guerrilheiros serão massacrados. Guerra Civil só se as Forças armadas racharem, o que acho improvável…

     

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