Bolsonaro e a naturalização da tortura, por Wagner Romão

Brilhante Ustra, elogiado pelo candidato do PSL, torturava suas vítimas na frente de seus cônjuges, filhos e filhas, crianças. Sob a proteção do Estado. Sob a proteção de sua patente.
 
Colagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil e Reprodução do Instragram
 
O Brasil certamente foi o país latino-americano que mais teve dificuldades em passar a limpo o que ocorreu nos porões do regime autoritário. A Comissão da Verdade veio tardiamente e a Lei da Anistia foi imposta pelos militares quando ainda controlavam o país, muito embora ela tenha sido um marco importante na redemocratização pelo alívio que deu aos perseguidos políticos e às suas famílias.
 
Esta forma fraca de lidar com o horror do regime pode estar na raiz da naturalização da violência política e da tortura nestas eleições.
 
A imagem mais aterradora neste cardápio variado é o vídeo do elogio de Bolsonaro, em seu voto pelo impeachment de Dilma, ao coronel Brilhante Ustra, articulador e executor do aparato de “investigação” – leia-se, tortura – do DOI-CODI, de codinome “Tibiriçá”. 
 
(Este mesmo vídeo, utilizado na campanha de TV de Haddad, teve no sábado, dia 20, sua exibição suspensa pelo ministro Luis Felipe Salomão, do TSE.) 
 
Como é possível que uma pessoa que pretende se candidatar a presidente da República faça uma declaração daquela? Como pode ele fazer apologia à tortura – ele se referiu a Ustra como “o terror de Dilma” – e não sofrer um processo, no mínimo, por decoro parlamentar? Como poderemos ter um presidente da República com esse desvio de caráter?
 
Ustra torturava suas vítimas na frente de seus cônjuges, filhos e filhas, crianças. Sob a proteção do Estado. Sob a proteção de sua patente.
 
Muitos falam sobre o “outro lado”, pessoas que pretendiam instaurar uma “ditadura marxista” no país. Dizem que facínoras como Ustra teriam apenas cumprido um papel na guerra contra o “comunismo”.
 
Digo-lhes que, certamente, se houvesse democracia, se houvesse liberdade política, se houvesse a possibilidade da competição eleitoral entre as diversas ideologias políticas, tais grupos estariam relegados ao esquecimento. A ditadura militar provocou o aparecimento da luta armada. A luta armada não teria ocorrido sob um regime realmente democrático liberal.
 
Portanto, não há desculpas em se naturalizar e diminuir o horror da tortura, do assassinato, do desaparecimento. Não há distância segura. Não há como relativizar tais práticas como algo que atingiu apenas “quem estava fazendo coisa errada”.
 
No semestre passado eu lecionei um curso livre na Unicamp, para o pessoal da Terceira Idade. Numa das aulas, me impressionou muito o relato de alguns deles – a maioria vindos do interior de São Paulo – sobre como no período da ditadura seus pais, irmãos ou primos sofreram consequências do regime militar.
 
Não eram líderes da luta armada. Não eram “comunistas”. Era gente comum, que às vezes por rixa, às vezes por alguma militância política muito pouco radical, às vezes por pura falta de sorte, entrava em contradição com alguma autoridade local – um delegado, um sargento, um juiz, um dono de terras – e, de repente, essa pessoa sumia por uns dias, apanhava na cadeia, levava um “corretivo”.
 
Muita gente desapareceu em situações deste tipo, casos que sequer chegaram a ser notificados em comissões da verdade.
 
Este é o grande risco do retorno dos militares ao poder, na figura de Bolsonaro, Mourão e dos marombados que os rodeiam. Este é o pessoal que quer fazer a “sua” justiça com as próprias mãos e se sente absolutamente empoderado, liberado, para fazê-lo. Afinal de contas, seu líder maior – Bolsonaro – é um apologeta da violência verbal, da violência física e da tortura.
 
É isso que chamamos fascismo. Quando a caixa do fascismo se abre – sob o manto do patriota “Brasil (ou Alemanha, ou Itália, ou EUA…) acima de tudo”, com a apropriação de símbolos nacionais, com camisas pretas ou amarelas, com carrões adesivados… – essa coisa feia que é a violência política se espalha e toma conta de tudo. E depois, é muito difícil fazer isso retornar de onde veio. E ela pode atingir você e seus familiares também, mesmo você, que é entusiasta do 17 como solução para o país. Isso não tem controle.
 
A corrupção é algo que deve ser combatido. É algo vergonhoso, sobretudo numa sociedade tão desigual como a nossa. É algo que repudiamos.
 
Mas, ela não se compara com o grau de animalidade da tortura. Não se compara com o uso da violência para resolver as diferenças políticas. Não se compara com o risco à democracia que estamos presenciando neste momento.
 
Sem democracia, não haverá combate à corrupção. A não ser de fachada. Foi isso que ocorreu na ditadura militar. Corre-se um risco muito, muito grande de que isso ocorra sob o domínio de um possível governo Bolsonaro, do modo como este vem se desenhando, em que aqueles que detém a força armada para combater os inimigos externos protagonizarão o poder executivo.
 
Por muitas razões, mas acima de tudo por esta razão, a candidatura de Bolsonaro é tão nefasta e deve ser combatida com todas as nossas forças.
 
Wagner Romão é professor de Ciência Política e atualmente preside a Associação de Docentes da Unicamp.
 
Redação

7 Comentários

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  1. Será Lula o primeiro?

    Caso seja confirmada a eleição do Bozo, temo pelos que já estão presos. Provavelmente vão surgir vários Ustras Brasil afora loucos para mostrar serviço. 

  2. Em nome do Pai

    Em nome do “comunismo” ou do “marxismo” ou do “anarquismo” fizeram todas as violências possiveis no Brasil. Se alguma vez tivesse tido a minima possibilidade de o comunismo ter governado o Pais, não teria sido nada comparavel com as ditaduras que ja tivemos e o que pode advir nos proximos dias. 

  3. Num bar, neste final de semana, um sujeito puxa conversa comigo

    A certa altura ele se declara eleitor do Bolsonaro e me pertunta em quem eu vou votar. Digo que vou votar no Haddad. Ele me pergunta como eu tenho coragem de votar num candidato corrupto. Eu lhe respondo que o Haddad é presumidamente inocente, que, se é corrupto, pelo menos não foi condenado, e que todos são considerados inocentes até trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ele, que é formado em direito, concorda comigo mas diz que se o Haddad não é corrupto, ele é o candidato indicado pelo Lula, que cumpre pena privativa de liberdade. Eu alerto-o que o Lula é presumidamente inocente, porque a sua sentença penal condenatória ainda não transitou em julgado, sendo provisória a execução da sua pena e que, apesar da condenação, não há provas dos crimes atribuídos a ele. Ele, novamente, concorda comigo mas diz que o partido é corrupto, pois já tem petista condenado por corrupção, com sentença transitada em julgado e que, eventualmente, o Haddad é corrupto também.

    Eu pergunto a ele como ele tem coragem de votar num candidato declaramente fascista e eventualmente corrupto. Ele me diz que entre a corrupção e o fascismo, ele é mais favorável ao fascismo do que à corrupção e que a probabilidade do Haddad ser corrupto é maior do que a probabilidade do Bolsonaro ser corrupto. Eu falo a ele das viagens a interesse particular do filho do Bolsonaro custeadas com dinheiro público. Ele começa a se alterar. Eu pago minha conta e caio fora.

  4. Jesus foi torturado e suportou tudo sem reclamar?

    Jesus interrogado por Anás (Mt 26, 59-68; Mc 14,55-65; Lc 22,66-71) – 19Então, o Sumo Sacerdote interrogou Jesus acerca dos seus discípulos e da sua doutrina. 20Jesus respondeu-lhe: «Eu tenho falado abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. 21Porque me interrogas? Interroga os que ouviram o que Eu lhes disse. Eles bem sabem do que Eu lhes falei.»

    22Quando Jesus disse isto, um dos guardas ali presente deu-lhe uma bofetada, dizendo: «É assim que respondes ao Sumo Sacerdote?» 23Jesus replicou: «Se falei mal, mostra onde está o mal; mas, se falei bem, porque me bates?» 24Então, Anás mandou-o manietado ao Sumo Sacerdote Caifás.

  5. Por que a busca pela servidão?
    Não vamos filosofar, vamos falar de dinheiro, ou melhor, de custo. A busca pela servidão está em uma das primeiras aulas dos cursos de economia, mas as escolas não mostram isso para os alunos. Vamos ver se consigo explicar mesmo não sendo um economista.Para se fabricar uma mercadoria/produto são necessários três componentes: a matéria prima, o maquinário destinado ao fabrico e a mão de obra. Se diminuir a quantidade de matéria prima e não utilizar todo o maquinário destinado ao fabrico, a mercadoria/produto não será fabricada de acordo com o desejado. O único componente em que é possível diminuir custo final sem alterar o produto é a mão de obra. No início da industrialização a matéria prima e o maquinário eram operados por trabalhadores “braçais” para se chegar ao produto final. Com o progresso tecnológico máquinas passaram a ser fabricadas e incorporadas à linha de produção em substituição aos trabalhadores, diminuindo o custo da mercadoria/produto fabricado. Todos sabem que essas “novas” máquinas não tiram férias, não recebem 13º, não param para almoço/descanso, trabalham 24 horas/dia, desconhecem o calendário e nem ao banheiro vão. Resumindo, elas não possuem o custo social, só o de aquisição, instalação e manutenção, custos estes recompensado com a economia de escala e tempo de utilização. É impossível concorrer contra essas “novas” máquinas, os robots. Por isso os empresários não medem esforços para incluí-las em suas linhas de produção. O aumento do lucro é nítido.Resta ao trabalhador a disputa por locais de trabalho aonde elas ainda não chegaram ou a especialização para ser aproveitado junto com a instalação das mesmas. Mas é sabido que não haverá locais de trabalho para todos, com ou sem especialização. A quantidade de trabalhadores disponíveis por local de trabalho ofertado é uma das vantagens do empresariado. Mesmo assim, percebe-se que o empresariado, aqui instalado, decidiu equiparar o custo da mão de obra dos trabalhadores brasileiros ao custo da mão de obra dos trabalhadores asiáticos, ou seja, diminuir o ganho do trabalhador seja em salários e/ou direitos trabalhistas e sociais. Para atingir esse objetivo está sendo necessário retirar o Partido dos Trabalhadores da cena política. Parece que só a nefasta reforma trabalhista, aprovada pelo governo golpista, não foi suficiente aos empresários, eles buscam, agora, a servidão da classe trabalhadora. Sindicatos e Min. do Trabalho provavelmente vão ser a bola da vez caso o Bozo seja eleito, pois a palavra de ordem que se aproxima é eliminar vestígios trabalhistas. O que fica difícil de entender é ver trabalhadores com carteira assinada e até mesmo os sem carteira apoiarem esse candidato. 

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