Cleonice Berardinelli abre o jogo

Jornal Plástico Bolha – maio 2014

 

por Bete Peixoto e convidados

 

Para esta edição, o Plástico Bolha reuniu um time de professores, amigos e admiradores para entrevistar a professora Cleonice Berardinelli, grande mestre da Literatura Portuguesa, eleita em 2009 para a Academia Brasileira de Letras. A três meses de completar 98 anos de idade, 70 deles dedicados ao magistério, ela recebeu recentemente o título de Dra. Honoris Causa da Universidade de Coimbra. A defesa da primeira tese acadêmica no Brasil sobre Fernando Pessoa, a amizade com o poeta Manuel Bandeira, a infância, estas e muitas outras histórias estão neste bate-papo delicioso, repleto de entusiasmo pela vida e pelo saber.

 

Adriana Calcanhoto: Dona Cléo, conte da importância dos papos de anjo na sua relação com Manuel Bandeira e da primeira visita à Academia, ou melhor, à “confeitaria” da Academia. Beijos da sua ardorosa fã.

Manuel Bandeira foi um grande amigo meu, eu posso dizer é um grande amigo meu, porque, para mim, ele continua sendo um dos meus melhores amigos, uma pessoa encantadora, suave, gentil, generosa, inteligente, alguém de quem realmente eu gostava e gosto muito. Numa ocasião, tive uma ideia e nós a executamos juntos. Comentei com ele: “Ó Manuel, eu ouvi na rádio MEC que vão fazer um programa sobre Shakespeare. Achei ótimo, pois, naturalmente, vão chamar alguém muito competente, como fizeram com o do Dante, mas e Camões, fica onde?” Ele virou-se para mim e perguntou: “Você o faria?” Eu respondi: “Claro que sim.” Ele acrescentou: “Pois então vou telefonar ao Murilo Miranda, que é meu amigo – e era o diretor da rádio – e vamos encontrá-lo muito brevemente.” No dia seguinte, Manuel me telefonou para combinar o encontro e indagou se eu tinha alguma ideia para o título do programa. “Não Manuel, respondi, eu não tenho essa prática de nomes de programas para rádio.” Ele então sugeriu: “Que tal ‘Camões, poeta de todos os tempos’?” Eu logo concordei. Naquele tempo, eu tinha um carrinho e era muito fácil encontrar vaga diante da porta da Rádio MEC, na Praça da República.

 

Bete: Que tempo era esse?

Já faz tempo, esse tempo. E uma coisa horrível é que eu não tenho os programas, se perderam. Eu fui redatora de programas literários com fundo musical durante 20 anos, de 1962 a 1982; experimentei, lá na rádio MEC, momentos excepcionalmente bons, sempre muito bem recebida; da direção aos técnicos, tudo funcionava muito bem, até um dia em que lá cheguei, e no lugar da diretora, Maria Yedda Leite Linhares, encontrei um senhor que eu gostaria de nunca ter conhecido, Eremildo Luiz Viana, de quem já tinha notícia, pois era professor da minha mesma universidade, a Universidade do Brasil, um ser realmente de convívio indesejado. Foi posto à frente da rádio pelo governo da ditadura para instaurar um inquérito e interrogar os funcionários sobre a suspeita de que a rádio MEC se havia transformado numa célula comunista. Bem, voltando um pouco atrás: Manuel era meu colega na Faculdade Nacional de Filosofia, como professor de Literatura Hispano-Americana, eu de Literatura Portuguesa, e ambos fazíamos sempre parte das bancas de Língua e Literatura Espanhola, cujo professor era um dos melhores professores da faculdade, o mineiro José Carlos Lisboa. Bem, concluindo, Murilo Miranda gostou da ideia e durante esses 20 anos fiz programas semanais, gravados em disquinhos de 45 rotações; eu gostei muito de trabalhar lá o tempo inteiro, isso só mudou quando subiu ao trono Eremildo Luis Viana.

 

Bete: E os papos de anjo?

Ah! Os papos de anjo. Várias vezes, Manuel insistia: “Cleonice, você tem que conhecer a Academia Brasileira de Letras, eu quero levar você lá para fazer um lanche comigo, quero apresentá-la aos meus amigos, meus colegas.” Eu dizia: “Manuel, eu não tenho muito tempo, eu até que tenho curiosidade de ir, mas é tão complicado, tanta coisa para fazer, eu estou tão ocupada e lá eu não conheço ninguém.” “Mas vai conhecer” – ele assegurava. Eu achei graça, e fui empurrando, até o dia em que ele disse: “Ó Cleonice, na próxima quinta-feira você vai comigo e vai comer doces ótimos, há uma baba de moça maravilhosa feita pela cozinheira de lá.” Eu então concordei: “Está bom, com essa baba de moça você me convenceu.” Ele morava pertinho, quase em frente à Faculdade, na avenida Presidente Antônio Carlos, esquina com Beira Mar, num apartamento muito simples.

 

Bete: No edifício São Miguel, que ainda hoje lá está.

Sim, em frente à Casa de Itália, onde estava instalada a nossa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Finalmente, lá fui eu um dia conhecer a ABL e comer a baba de moça que era realmente uma delícia. Nessa ocasião, descobri que ele gostava muito de doces e eu lhe disse que era uma boa doceira: “Faço muito bem papos de anjo, bons e batidos com a mão, pois não tenho máquina, não.” Eu não tinha batedeira, batia na mão por longo tempo, depois colocava a massa nas forminhas, levava-as ao forno, fazia uns buraquinhos com o garfo e, depois de assados, mergulhava-os na calda; é maravilhoso. “Então você fica me devendo papos de anjo”, disse-me Manuel e eu assenti. A partir de então, em todas as datas de seu aniversário – 19 de abril – eu levava papos de anjo para Manuel.

 

Bete: Sempre no mesmo endereço?

Não, depois Manuel morou na rua Aires Saldanha, em Copacabana. Os últimos dias de Manuel foram muito duros, ele ficou desanimado, muito abatido. Ele era um homem alegre, animado, brincalhão, piadista; eu gostava tanto dele… Lembro-me de tê-lo visitado no hospital; ele estava sozinho, deitado, cheguei mais perto e disse: “Manuel.” Ele perguntou: “Você veio?” Eu disse: “Vim, você acha que eu não vira?” Ele respondeu: “Ah, que bom, eu estava tão sozinho!” Eu disse: “Pois é, mas agora já não está, tem aqui uma tagarela que veio para conversar com você; olha, Manuel, amanhã é o dia do meu programa, você liga o rádio para ouvir.” Ele disse: “Eu não tenho rádio aqui.” Eu então afirmei: “Vou trazer um rádio para você.” Eu tinha um radiozinho pequeno com um som bastante eficiente e, no dia seguinte, mandei levá-lo a ele com um cartãozinho bem afetuoso. Ao final do programa, ele ligou para mim e disse: “Cleonice, muito obrigado, ouvir o seu programa aqui foi uma companhia especial.” Um dia eu soube que ele havia tido uma piora muito grande. Fui ao hospital e disse: “Manuel, você vai ter que me dar um beijo.” Ele respondeu: “Você não me esquece.” Logo depois veio a notícia da morte e eu me lembrei da frase de um poema dele: “A dama branca levou meu pai.”

 

Sofia de Sousa Silva: A senhora poderia contar para os leitores do jornal Plástico Bolha o truque audacioso que utilizou para que Manuel Bandeira deixasse de se dirigir à senhora como “Cleonice poeta”?

Esse truque foi uma maldade da qual eu me arrependo. A história é a seguinte. Depois que eu traduzi as Cantigas Medievais em português moderno, Manuel, que me mandava sempre seus livros, passou a me pôr dedicatórias assim: “a Cleonice poeta, lembranças de Manuel Bandeira”; “a Cleonice poeta, um beijo do Manuel Bandeira.” Eu refutava: “Manuel, eu não sou poeta; Manuel, eu sei fazer versos, mas isto é outra história, sou capaz de fazer versos bem rimados, bem metrificados, mas não têm a chama que se chama poesia!” Ele insistia: “Pois é, mas para mim, você é poeta porque estão muito boas as suas traduções.” Um dia decidi fazer uma brincadeira com ele. Nós tínhamos uma aluna que era uma mocinha muito bonita, muito inteligente, que certa vez me tinha dito que havia tentado fazer uns versos e que não conseguira, mas que gostaria que eu visse seus poemas, para ouvir uma opinião crítica e sincera. Eram os poemas uma coisinha toda certinha, toda arrumadinha, mas não tinha a tal chama, e eu disse isso a ela, que ficou grata com a minha franqueza. Um dia, em companhia de Álvaro, meu marido, em nossa casa em Mendes, que ficava no alto de uma colina, num fim de tarde lindo, com vários matizes de verdes, eu comentei: “Álvaro, olhe que beleza, você tem razão de gostar de vir para cá.” Ao que ele respondeu: “Pois é, a natureza é isso, minha filha, sempre tem uma beleza para dar.” Ao fim dessa conversinha, fiz uns versos inspirados nessa situação; eu tenho pena porque acho que os perdi. De volta ao Rio, no primeiro encontro com Manuel, eu disse a ele: “Lembra-se daquela menina tal e tal?” “Lembro-me, bem vagamente” – respondeu ele. “Você gosta de menina bonita – brinquei com ele, porque ele gostava mesmo – pois é, ela mandou uns versinhos e pediu-me que eu os passasse a você porque tem vergonha de os entregar diretamente; para você me dizer o que acha.” Logo depois ele afirmou: “Olhe, Cleonice, os versos não são maus, estão bem feitos, são até bonitinhos, mas diga-lhe que se ela sente necessidade de escrever, que escreva à vontade, que não é uma coisa de todo má; ela pode chegar lá, que continue a praticar.” Eu disse que havia mandado o recado a ela.

 

Bete: Eram os teus versos, Cleonice, que danada, você!

Aí, a danada aqui acabou confessando a ele que, espantado, exclamou: “Cleonice! Como é que você faz uma coisa dessas comigo?” Eu disse: “Está vendo? Por isso mesmo, de outra forma, se você soubesse que eram meus, iria fazer um mingauzinho doce gostoso, com a babinha de moça, mas, meu querido, eu queria a sua opinião, e você a deu!” “Mas você é má, heim, Cleonice?” “Não sou má não, eu gosto da verdade!”

 

Bete: E ele deixou de te chamar de Cleonice poeta?

Ah, sim, deixou!

 

Jorge Fernandes da Silveira: Como se forma um bom leitor de poesia? Com tantos anos de magistério o que lhe dá a certeza, dona Cléo, de ter formado gerações de bons leitores (e leitoras, claro), de Poesia? E o que escreveria dona Cléo a Fernando Pessoa, felicitando-o pelos 80 anos da Mensagem?

Vou dar uma receita que foi a que me deram como leitora de poesia. Desde criança, tive injetada em minha memória e em meu gosto, em minha alegria e em minha satisfação, a poesia. Eu tinha quatro anos e já sabia de cor sonetos que nem fáceis eram, complicados mesmo, em ordem bem arrevesada, mas eu fui adorando aquilo tudo.  Sempre que havia uma visita em nossa casa, meu pai perguntava – com grandes piscadelas de olho da minha mãe que achava que aquilo não se podia fazer, que era maçar o visitante: “Você gosta de poesia?” Se a pessoa respondia afirmativamente e com convicção, papai revelava: “Pois Cléo diz poesias muito direitinho, ela adora e tem uma memória formidável.” Então a visita, com certeza metade por gentileza e talvez metade por convicção própria, dizia que gostaria muito de ouvir e perguntava o que eu sabia. Eu respondia: “Eu sei uma porção de versos, sei sonetos.” As pessoas ficavam horrorizadas: “Sonetos? Você é capaz de dizer um?” “Sou. Papai, digo o quê, ‘A Santa?’” Papai consentia e então eu começava: “Essa que passa por aí, senhores, / de olhos castanhos e fidalgo porte, / é a princesa ideal dos meus amores, / a mais franzina pérola do Norte. / Contam que, numa noite de esplendores, / a essa que esmaga o coração mais forte / hinos cantaram e jogaram flores / as estrelas, em mágico transporte.” Isto são os dois quartetos, que eu ainda consigo saber de cor, o resto eu não lembro.

 

 

Bete: E sobre os 80 anos de Mensagem?

Bom, Mensagem faz 80 anos neste 2014, e se eu pudesse escrever a Fernando Pessoa, eu diria uma coisa mais ou menos como isto: meu caro Fernando, você sabe que eu adoro Mensagem, ADORO, com todas as letras maiúsculas. Há quem considere Mensagem um livro meio estereotipado, que parece manual de amor a Portugal; uma coisa muito nacionalista, meio tola, digamos, nesse sentido de ser alguma coisa já muito explorada, mas às pessoas que dizem isso, eu realmente gostaria de mandar também uma mensagem: mudem de ideia, pensem melhor, Mensagem é uma jóia; Mensagem é um livro da inteligência à flor da pele, o que não é comum na poesia. A poesia costuma tocar o íntimo de cada um, tocar o sentimento; mas neste caso, é um sentimento pátrio, é o sentimento de um português nada piegas. Fernando Pessoa, isto é, os Pessoas – porque o Fernando Pessoa fala sozinho de vez em quando, mas em geral é um coro que nós ouvimos ao nosso lado – nada têm de sentimentalismo exacerbado, pelo contrário. A ele eu diria que esse livro é, para mim, um prazer enorme.

 

Paulo Henriques Britto: Como a senhora vê os caminhos da poesia brasileira e da poesia portuguesa nas últimas décadas? Quais as convergências e quais as divergências?

Eu conheço mal a poesia brasileira das últimas décadas e conheço menos ainda a portuguesa do mesmo período. Leio muito pouco a área da poesia contemporânea de língua portuguesa que abrange as duas – portuguesa e brasileira. O período escolhido não é realmente aquele em que eu me sinta confortável, sendo eu uma leitora assídua e profunda da literatura desde o século 13 e 14 até meados do século 20. Fernando Pessoa, que domino muito bem, morre em 1935.

 

Madalena Vaz Pinto: O ensino da literatura portuguesa. No texto “Linhas mestras da literatura portuguesa” (1971) a senhora defendia a criação de uma disciplina que permitisse ao aluno ter uma visão diacrônica e ao mesmo tempo sincrônica da literatura portuguesa. Com o mesmo número de disciplinas que a literatura brasileira, a literatura portuguesa, com oito séculos a mais de idade, acabava por ficar em desvantagem, incapaz de dar ao aluno, em poucas disciplinas, uma visão de fato abrangente. A proposta decorria da sua própria experiência como professora, ao perceber nos alunos uma percepção insular da literatura portuguesa e a consequente dificuldade de lançar pontes entre os vários períodos. A literatura portuguesa fazia parte do currículo, não se punha em causa essa presença. Entretanto, o ensino da literatura portuguesa no Brasil traz consigo um problema cultural. Ensinar literatura portuguesa no Brasil não é o mesmo que ensinar outra literatura estrangeira. Ensinar literatura portuguesa é ensinar a literatura da nação colonizadora e é trazer à tona a discussão da origem da literatura brasileira. É ainda discutir a relação entre duas literaturas que fazem uso de uma mesma língua que se desdobrou em línguas diferentes. Mais de 40 anos depois da publicação desse texto, gostaria de saber como a senhora pensa, hoje, a questão da legitimidade do ensino obrigatório da Literatura Portuguesa no Brasil, suas implicações políticas e culturais.

O que aconteceu na faculdade especificamente foi que o diretor, professor Afrânio Coutinho, tinha vindo do estrangeiro com as ideias do New Criticism, ou seja, a teoria literária que privilegiava o enfoque diacrônico no estudo da literatura, a análise do texto exclusivamente, rejeitando as influências externas tais como dados biográficos do autor e a contextualização sócio-cultural. Resultava que os alunos estudavam poetas ou trovadores, padre Antônio Vieira, por exemplo, mas não lhes ensinavam o Barroco Português. Eu achava que era necessário dizer o que era o Barroco, em primeiro lugar, situar esta disciplina que ficava numa ilhazinha no meio do mar, entre as outras ilhas que andam em volta dela, e depois lançar pontes – expressão que você usou aqui e que eu utilizo muito – desta ilhazinha para as outras ilhas; eu via alunos excelentes perdidos. Eu achava necessário que a nossa disciplina tivesse um currículo fechado em si, mas também centrado nas outras que a antecedem, sucedem e, principalmente, que lhe são contemporâneas. Eu me insurgi e disse ao diretor: “Acho que os nossos cursos estão muito encerrados em si e isso não me parece bom, é muito importante o aluno poder ter uma posição dentro da matéria que ele está estudando, ele tem que saber onde ele está e onde vai pisar.” Fiz isso porque um dia entrando na sala de aula, fiz uma pergunta aos alunos: “Vocês são capazes de me responder agora quais são os outros autores mais ou menos contemporâneos de padre Antônio Vieira?” Não sabiam, não tinham sequer noção de que estavam estudando o século XVII, em que predomina o Barroco em Portugal e, portanto, que Vieira é um escritor do Barroco. Para um curso bem orientado, bem dirigido, bem aprofundado, tem que haver, além do estudo diacrônico, que é essencial para o aprofundamento, o estudo sincrônico, que orienta, por exemplo, que Vieira está ao lado de um autor como Manuel Bernardes, outro autor cristão, padre, e que escrevia uma obra até semelhante à obra do padre Antônio Vieira.

 

Bete: E para concluir a pergunta da Madalena, você continua achando que é legítima a obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa no Brasil?

Eu acho, porque é o nosso antepassado mais próximo, é a mesma língua, apesar das duas pronúncias – como dizia o mestre Hernani Cidade, com a sua competência e o tempo de serviço que já tinha: “Ó Cleonice, eu estou preocupado porque nós portugueses estamos cada vez mais vocalófagos!” Eu briguei por essa causa: nós criamos aquilo que se chamou o SEPESP – Seminário Permanente de Estudos Portugueses, que era um grupo de discussão sobre a permanência da literatura portuguesa no nosso currículo e tivemos o apoio de Antônio Gomes da Costa, do Real Gabinete Português de Leitura.

 

Bete: Poderíamos então considerar que a literatura brasileira teve sua raiz na literatura portuguesa?

Pode ser, mesmo que os brotos possam ter sido melhorados, mais desenvolvidos, no Brasil. Algumas escolas literárias no Brasil têm uma significação que, por vários motivos, até políticos, não houve em Portugal. Por exemplo, toda a poesia abolicionista e política de Castro Alves. Uma poesia de defesa do homem, do cidadão, teve origem no Brasil que estava renegando a escravatura, quando surge aquele menino de gênio e começa a escrever e dizer “Ó mar, porque não apagas / co’a esponja de tuas vagas / do teu manto esse borrão? / Astros! Noites! Tempestades! / rolai das imensidades! / varrei os mares, tufão!…” Uma poesia belíssima, apaixonadamente brasileira. Além da figura jovem e bonita que tinha, ele ficou como ídolo popular no seu tempo, tendo conquistado de todas as maneiras o seu público.

 

Maria de Andrade: Na década de 40 no Brasil tivemos Ledo Ivo publicando uma revista homônima do principal periódico modernista português, a Revista Orpheu; em 1951, Drummond faz uma importante releitura de Camões em Claro enigma; e em 1952 publica-se Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, que está inteiramente associado a Os Lusíadas e que se remete também à máxima de Fernando Pessoa “navegar é preciso, viver não é preciso” nos versos “há sempre um copo de mar / para um homem navegar.” De que modo a senhora vê a relação entre a produção do Brasil dos anos 40/50 e a tradição literária portuguesa? Haveria aí uma explicação para a voga formalista (em especial a retomada dos sonetos, se pensarmos em Camões) e para o caráter introspectivo que se desdobra sob os auspícios de Orpheu (se pensarmos em Pessoa) na nossa poesia (ou a senhora acredita que essa tendência se justifique melhor com o aumento da circulação, ocorrida no mesmo período, do Rilke de Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno, tese que defende Arnaldo Saraiva)?

Maria, eu realmente não me estou sentindo com bastante conhecimento da obra do Drummond para poder responder com convicção. É que ultimamente eu tenho lido tanta coisa que me entregam para que eu tenha noção do que valem os poemas, que eu leio com aquele lápis na mão, marcando coisinhas à margem etc. Com isso eu ando com muito pouco tempo para as minhas ideias e as minhas leituras.

 

Anabela Mota Ribeiro: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”, verso mágico e famoso de Pessoa. Senhora professora, pode falar-me de todos os sonhos do mundo que há em si? De certo modo estou a perguntar pelo que perseguiu a vida toda, pelo que a alimentou. “Sete anos de pastor Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ E a ela só por prêmio pretendia.” Estes versos de Camões fazem-me pensar na decepção. E gostaria que me falasse dos seus sonhos que ficaram por cumprir. A pergunta é extensível à intimidade com os poetas, com a literatura, mas tem como centro o seu percurso. 

Você me faz uma pergunta inteligente, sem dúvida, mas muito difícil de responder. Veja bem, em primeiro lugar, é preciso supor que eu tenha tido todos os sonhos do mundo, como Fernando Pessoa. Não os tive mesmo. Eu tive alguns, mas foram frustrados no meio do caminho, então vou lhe contar quais foram as frustrações de grandes sonhos que eu tive, aqueles que marcaram a minha vida, dos quais eu não me esqueço, mas, naturalmente, se eu andar um pouco mais para trás, um pouco mais para minha meninice, terei tido outros, mas que ficaram perdidos na estrada. Então, o primeiro sonho grande que eu tive foi quando eu estudava música, nem mais nem menos do que com Oscar Lorenzo Fernandes, um dos grandes compositores brasileiros do século XX, grande de verdade, com uma obra bastante longa, bastante extensa, muito variada e muito inteligente também, porque é uma música em que ele aborda tipos brasileiros, tipos e coisas da nossa cultura popular. Ele começou por ser meu professor de teoria e solfejo. Fui uma aluna bastante boa, parece que sim. De teoria e solfejo, passei para a harmonia elementar e, logo em seguida, para a harmonia superior. Soube então que dava aulas particulares de piano na casa dele, em Botafogo. Perguntei à mamãe se ela me levaria, porque é claro que eu não andava sozinha, eu tinha 12 anos e só fui andar sozinha mesmo com 19, não conte isso a ninguém. Alguns anos depois, por volta dos meus 18 anos, eu tocava Bach, Vivaldi, Beethoven – a Patética, de que eu gostava tanto, e, segundo o mestre, eu tocava muito bem –, Schubert, Grieg, Sinding, que é pouco conhecido, mas há um verdadeiro poema em música chamado legasouillement du printemps, que é “o sussurro ou o murmúrio da primavera”, lindo e bem difícil porque é todo em arpejos para lá e para cá, para você supor que está ouvindo as aves cantando, as flores respondendo, é muito bonito. Certo dia, Lorenzo Fernandes revelou-me que havia, finalmente, realizado seu sonho de fundar o Conservatório Brasileiro de Música e que me queria como assistente! Qual não foi minha enorme decepção, quando, após contar a maravilhosa novidade, em casa, as caras murchas e cabisbaixas dos pais anunciaram que meu pai, militar, havia sido transferido para São Paulo. O mundo despencou e eu desabei. Eu estava no Rio de Janeiro, com 18 anos de idade, toda entusiasmada para galgar postos na música, Lorenzo Fernandes dizia que eu poderia vir a ser uma grande virtuose, o que, para uma garota boboca, é muita coisa, ouvir do mestre. Eu baixei as minhas orelhinhas e me resignei. Nossa vida foi sempre um verdadeiro ziguezague entre o Rio e São Paulo.

 

Bete: Foi este então o primeiro sonho frustrado?

A primeira frustração. A segunda foi em São Paulo. Estudante do Liceu Nacional Rio Branco, depois do meu sonho de música desfeito, eu resolvi que ia ser engenheira porque a matemática era a minha matéria predileta, em que eu tirava invariavelmente a nota 10. O diretor do colégio era o meu professor de português e literatura, Professor Sales – de quem ouvi, pela primeira vez, o nome de Gil Vicente –; e quando ele viu aquela aluna toda interessada, metida, escrevendo bem, corretamente, se tomou de amores por mim. Um dia, eu ouço a sua voz no meio da sala de aula: “Dona Cleonice, ouvi dizer que a senhora está pensando em estudar Engenharia. É verdade?” Após minha resposta afirmativa, ele retrucou: “Pois, nunca passarei numa ponte sua!” Eu revidei: “E eu o convidei a passar na minha ponte?” A turma de 45 alunos estourou em gargalhadas. Mas o professor Sales tinha muita força e, depois do último exame, no final do ano, fez questão de me acompanhar à secretaria e, no caminho, perguntou: “Então a senhora agora vai para casa para esperar marido?” Eu respondi: “Professor Sales, o senhor me acha mesmo com cara de esperar marido?” Ele disse: “Não, não acho nada, mas sabe lá o que as mulheres decidem.” Ele então fez o meu certificado de conclusão do curso e me disse, à porta da saída: “Pronto, agora vá matricular-se em Letras.” E eu perguntei: “Em Letras? Existe isso?” “Ah, que bom saber!” Minha mãe, que não gostava da ideia da Engenharia, ficou contente com a opção de Letras. A partir daí eu fiquei balançada, porque as letras também me seduziam muito. E assim foi que me matriculei no curso recém-fundado de Letras Neolatinas, na USP, onde os melhores professores europeus haviam sido contratados.

 

Bete: Essa, então, foi uma frustração que se teria transformado no maior prazer da sua vida?

Sem dúvida. Eu acho que entre ser professora de Letras e de Matemática, eu me enriqueci muito mais sendo professora de Letras, embora matemática continue até hoje a ser um assunto de que gosto imenso.

 

Bete: Qual o próximo sonho desfeito?

O próximo e maior de todos foi com o professor Fidelino de Figueiredo. Não me lembro de nada que tenha me traumatizado mais, me doído tanto. Na USP, o professor Fidelino acabara de chegar de Portugal, depois de ter dado aulas em França e nos Estados Unidos, ainda sem a família e fazendo de nós, como ele dizia, “a minha família brasileira”. Eu o adorava e os colegas gostavam muito dele porque era ao mesmo tempo de uma seriedade enorme e brincalhão, tinha um sorriso extremamente acolhedor. Ele e eu ficamos muito amigos. No final do curso me convidou para trabalhar como sua assistente, com nomeação e tudo. Eu quase desmaiei. O convite do Lorenzo Fernandes havia sido uma coisa grande, mas o do Fidelino foi o máximo, porque eu aí já sabia qual era a minha profissão, sabia o que queria realmente e tinha confiança no que eu poderia fazer.

 

Bete: Você respondeu naturalmente que sim?

Em êxtase, e em êxtase contei à minha família, em casa, o maior convite que recebi na minha vida. Minha mãe então me comunicou que meu pai havia sido transferido para o Rio de Janeiro. Aí, tive vontade de morrer, foi tão duro, tão definitivo, porque eu já tinha 22 anos, foi um baque total. No Rio, eu não tinha faculdade, não conhecia ninguém, não tinha mais colegas nem professores, nem amigos. Fiquei descentrada, foi horrível, essa foi realmente uma pena cruel que me impôs o destino.

 

Bete: E os filhos?

Bem, não foi agradável saber que eu não podia tê-los. Eu queria muito ter filhos, até hoje eu adoro crianças. Fiz vários tratamentos, mas não houve sucesso. Nilda, minha irmã, teve três filhos e eu transformei, afinal, meus sobrinhos em filhos, e os filhos deles são meus netos e há os bisnetos. Da mesma forma tenho netos, bisnetos e trinetos nos Estados Unidos, descendentes de uma de minhas duas enteadas, filhas do primeiro casamento de Álvaro, meu marido.

 

Helena Martins: Em O ano da morte de Ricardo Reis, de Saramago, lemos a certa altura: “Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, (…) e esta falta, omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê? …” Como interpreta a tão falada ausência de Camões da galeria dos heróis portugueses de Mensagem (e a menção a essa ausência na obra de Saramago)?

É uma resposta que me obriga a fazer um julgamento um pouco negativo de Fernando Pessoa. Eu acho que ele sempre experimentou no seu íntimo – ele preferia não revelar abertamente, mas de vez em quando deixava escapar uma deixa – um sentimento de ser menor do que Camões. Quando escreveu a primeira vez sobre a nova poesia portuguesa, estava escrevendo sobre a sua poesia, sobre o que estava fazendo naquele momento – uma excelente poesia inovadora, superando as escolas anteriores –, mas por outro lado diz, que é o momento de surgir na língua portuguesa aquele que será o “super Camões”, dizendo adiante “o supra Camões”. Vejam bem que ele vai escolher as duas preposições que significam posição superior – o super e o supra. Há nele, eu acho, aquilo que se chama popularmente de “dor de cotovelo”. Ele sentia que acima dele, Fernando Pessoa, grandíssimo poeta, há outro que lhe faz ou pode fazer sombra: é um tal de Luís Vaz de Camões, que viveu no século XVI, cuja biografia se conhece muito mal, sabe-se dele apenas uma informaçãozinha aqui, outra ali. Há um dado que é absolutamente verídico, o de que ele foi preso pelo rei e degredado para a Índia porque tinha ferido “no cabelo do toutiço” – a expressão é essa, está lá escrita no documento do rei [“nuca, cabeça”] – a Gonçalo Vaz, escudeiro do rei; portanto, este Luís Vaz de Camões tem aí um dado biográfico com data e com indiscutível assinatura real. Na Índia ele permaneceu uma longa parte da sua vida e lá escreveu Os Lusíadas, lá sofreu, lá comeu tão mal que se diz, em determinado momento, que era tão pobre que “comia de amigos”, ou seja, comia aquilo que os amigos lhe davam ou lhe pagavam. É este o Luís Vaz de Camões triste, solitário, dolorosamente marcado pelo desprezo e pela falta de atenção do próprio rei para com o poeta que seria o maior do seu reinado, o maior poeta de Portugal até que apareceu, no século XX, um tal Fernando Pessoa, cuja biografia é muito mais conhecida, ainda que não seja clara nem transparente. Fernando Pessoa é, portanto, um poeta do século XX, que sentiu pesar sobre si a sombra de Camões, que continua ainda a ser, este, o maior poeta da língua portuguesa, apesar de, digamos, à distância, competir com Fernando Pessoa.

 

Helena Martins: Em certa entrevista, Guimarães Rosa afirma que “a língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o”. Acha que isso se aproxima de algum modo da famosa passagem do Livro do desassossego, “minha pátria é a língua portuguesa”?

Sinceramente acho que não. Em primeiro lugar não é uma frase de Fernando Pessoa em seu próprio nome, é uma frase, neste caso, de um semi-heterônimo, pois nem chega a ser um heterônimo. Ele diz que Bernardo Soares é um semi-heterônimo que surge quando ele está um pouco sonolento e, portanto, não está dominando completamente sua inteligência e sua expressão. “Minha pátria é a língua portuguesa”, apesar de ser uma expressão já muito explorada, parece-me uma bonita frase, gosto dela, mas – guardada a qualidade literária de Pessoa diante de minha interpretação – acho que significa tudo aquilo que se escreve em português, é todo e qualquer território em que se fala esta língua, onde há uma ligação muito íntima com o espaço da língua portuguesa no mundo.

 

Maurício Matos: Em 1953, a senhora publicou o volume “Cantigas de Trovadores Medievais em Português Moderno”. Como foi a experiência da tradução? Reeditaria o livro, hoje? Traduziria outras cantigas?

Sim, eu digo que é uma tentação que de vez em quando me aparece, mas agora eu estou sempre tão ocupada… Talvez mais adiante… Foi um trabalho que me deu imenso gosto fazer, traduzir tantas Cantigas.

 

Bete: Você fez sozinha?

Sozinha, sozinha; eu não tinha ninguém, não tinha secretária, nada. Eu sou da primeira geração de professores formados em Letras, então, quando eu passei a ser professora da faculdade, eu sabia mais do que o meu catedrático.

 

Bete: E quando você se meteu a traduzir, você tinha convicção de que conseguiria fazer bem? Qual foi a motivação desse trabalho?

Ah, é uma história até bonitinha. O Thiers Martins Moreira, catedrático de quem eu era assistente, um dia lendo cantigas trovadorescas para os alunos e traduzindo – lendo e explicando –, disse assim: “Pois é, elas são muito bonitas, o que é preciso é compreendê-las bem”. Eis que ele sugeriu uma ideia aos alunos: “Vocês são jovens, gostam de poesia, deve haver aí uns poetas pelo meio da sala; vamos combinar: na próxima aula, cada um vai fazer uma tradução de uma cantiga, vai trazer e ler aqui para todos nós ouvirmos, e eu e a Cleonice vamos julgar a qualidade do que vocês fizeram”. Na aula seguinte, alguns trouxeram, mas muito pobrezinhas as traduções, eles não tinham prática de trabalhar com poesia. Eu, por minha vez, manejava desde sempre os versos com muita facilidade porque tinha um bom ouvido, isto é, a métrica e o ritmo precisam do ouvido, você ouve e já sente uma primeira aprovação ou não sente nada, vê que está bom ou não. Fui então para casa e me pus a traduzir umas cantigas, acho que as primeiras foram de Amor, as mais difíceis. O Thiers, quando viu, encantou-se e me disse: “Cleonice, vou mostrar a Manuel Bandeira!” Eu respondi: “Ah, não faça isso, eu vou morrer de vergonha”. Disso tudo resultou um livrinho, uma versão pirata que eu fiz para mim mesma, mandei botar capinha azul com letrinhas douradas – Cantigas de Trovadores Medievais em Português Moderno – dedicado a meus pais, editado em 1953, com o apoio das Organizações Simões, uma editora pequenina e pobre, cujo dono era amigo do Thiers.

 

Bete: Traduzir, então, foi uma experiência agradável?

Muito. Era uma descoberta a cada momento, eu ia pegando macetes, maneiras de não repetir, usar um advérbio a mais, um advérbio a menos, aumentar uma sílaba daqui, outra de lá, acabou saindo bem bonzinho.

 

Maurício Matos: “Como foi preparar sem orientador a primeira tese de livre docência sobre Fernando Pessoa em 1958?”

Acho que foi uma coisa extremamente difícil, eu nunca tinha visto uma tese na vida, nem sabia bem o que significava, o que era uma tese. Sabia que era uma coisa que se escrevia em muitas folhas, quanto mais folhas melhor, ela seria mais importante, mais sonora, mais significante, mas não sabia mais nada. Haveria regras para escrevê-la? Não encontrei ninguém que me quisesse orientar; o meu catedrático, Thiers Martins Moreira, me disse que seria muito estranho para ele orientar-me e depois ser o presidente da banca que me examinaria, eu também achei que seria meio constrangedor para nós ambos. Naquela época ainda não havia cursos de pós-graduação, mas acabei descobrindo que podia fazer um concurso de Livre Docência, com cuja tese eu levaria não só o título de Livre Docente, como ganharia o título de Doutora. Eu havia recebido uma tese de Doutorado de Jacinto do Prado Coelho, professor de Literatura Portuguesa da Universidade de Lisboa, poucos anos mais novo do que eu, sobre Fernando Pessoa; foi a primeira no mundo, a minha foi a primeira no Brasil. Fiz a minha dividida em duas partes: uma se chama “Poesia” e a outra “Poética”. A “Poesia” era a substância poética que a poesia de Fernando Pessoa contém, e o que eu chamo de “Poética” eram todos os processos literários que ele utilizou para exprimir essa poesia. Eu estava impregnada de Estilística, que era a grande ciência defendida pelos professores linguistas Dámaso Alonso, Amado Alonso, espanhóis, e o alemão Leo Spitzer, isto é, procurava-se no texto o que o poeta dizia, a substância, e, depois, como dizia, como se exprimia esta substância, ou seja, matéria e forma. Quando eu acabei, mandei uma cópia para o professor Jacinto, que me fez elogios, mas discordava de alguns pontos de vista meus. Mostrei também ao professor José Carlos Lisboa, professor de Língua e Literatura Espanhola da Universidade de Minas Gerais, um homem extremamente inteligente e muito sensível e, por último, a Celso Cunha.

 

Bete: E como foi a sua defesa?

Encarniçada. A banca era composta por Thiers, Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Roberto Alvim Correia e Casais Monteiro. Em pleno dezembro, dia 23, um calor do tamanho do mundo, sem ar condicionado, vestida de beca com colarinho branco e duro que, ao fim das perguntas e respostas, era mole e flexível, podendo ser enrolado.

 

Lucas Viriato: Brincando de faz de conta, como a senhora imagina que teria sido sua vida se tivesse fugido com o circo e seguido carreira no teatro?

A pergunta do Lucas é uma delícia, parecida com ele. É claro que eu nunca pensei em ir para o circo, nunca fui convidada a trabalhar no circo, mas, quando em São Paulo eu estava no primeiro ano da USP fazendo o meu curso de Letras Neolatinas, em que o francês era uma tônica e tínhamos um professor de literatura francesa excepcional que se chamava Pierre Hourcade, um pessoano avant la lettre, e outro professor, também francês, Georges Raeders, este nos perguntou: “Vocês gostariam de fazer um espetáculo de teatro universitário?” Naturalmente que aceitamos e ele quis então montar uma das primeiras peças de Molière, uma farsa chamada Les précieuses ridicules, uma peça pequenina para também ser mais fácil de decorar.

 

Bete: Então isso foi encenado na USP?

Não, encenamos no Teatro Municipal de São Paulo, cheio até o teto e dirigidos pelo professor Raeders.

 

Bete: Seus pais viram?

Viram e ficaram orgulhosos da filha.

 

Bete: Eles teriam deixado você ser uma atriz?

Não. Deixar-me ser uma atriz, sair de casa sozinha com gente estranha, nem morta; eu sou do tempo em que os filhos obedeciam aos pais, não tinham a menor independência.

 

Bete: Esta foi sua única experiência no palco de teatro?

Não, fiz outro espetáculo no Teatro Municipal de São Paulo; quando era menina de dez anos, representei uma peça de Paulo Setúbal, escrita para celebrar o centenário de Dona Leopoldina, nossa imperatriz; eu era sua filha, Maria da Glória, que depois seria rainha de Portugal e protetora de Garrett. Adorei fazer esse papel. Essa é a apresentação mais antiga, sem contar com pequenas apresentações bobinhas no colégio.

 

Bete: E depois no Rio de Janeiro, já professora, quando você se consagrou no palco como O Anjo, no Auto da Alma, de Gil Vicente.

Dirigida por Sadi Cabral, no auditório da faculdade, que era uma beleza, na Casa de Itália, com palco muito grande. Gostaram tanto, que acharam que devíamos fazer outra representação. Fizemos então, o Auto da Feira, um auto extremamente satírico e muito forte, onde tudo se troca, não há nada para vender ou comprar, onde, a despeito da religiosidade de Gil Vicente, há críticas severas à igreja católica como instituição, representada pela personagem Roma, que, em diálogo com o Diabo, diz: “Eu venho à feira dereita / comprar paz, verdade e fé”. Em oposição a Roma, no Auto da Alma aparece a Santa Madre Igreja, esta, sim, representando a pureza da religião católica, o que constitui o seu cerne.

 

Esse texto foi publicado no plástico bolha nº35

 

Redação

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