sexta, 19 de abril de 2024

Filólogo revisita “Dia Triunfal” de Fernando Pessoa

 

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Nova edição de O Guardador de Rebanhos, editada pelo filólogo português Ivo Castro, desmistifica o “Dia Triunfal” descrito por Fernando Pessoa em sua correspondência e resgata versos e palavras descartados por outras edições

Por Edgard Murano, de Lisboa

Na casa onde viveu Fernando Pessoa durante seus últimos quinze anos de vida, no centro histórico da capital portuguesa, hoje funciona um museu dedicado ao poeta. Ali, sobre a escrivaninha do quarto reconstituído com documentos e objetos pessoais, chama a atenção em meio aos papéis a reprodução de um trecho da famosa carta, enviada ao crítico Adolfo Casais Monteiro, em que relata a gênese de um de seus heterônimos mais populares. Sobre o chamado “Dia Triunfal” — supostamente o dia 8 de março de 1914 — Pessoa se gaba de como, em frente a uma cômoda alta, de pé, compôs de uma só tacada “trinta e tantos poemas a fio”, como se estivesse sob uma espécie de transe. O episódio acabou entrando para a história das letras portuguesas como a explicação oficial da origem de O Guardador de Rebanhos, ciclo de poemas atribuído ao heterônimo Alberto Caeiro que acaba de ganhar uma nova edição, a cargo do filólogo português Ivo Castro.

“O Guardador de Rebanhos foi usado por Pessoa como prova de que tinha havido um aparecimento quase milagroso não só do texto mas também do autor, do heterônimo Alberto Caeiro. O exame minucioso dos papéis demonstra que nada do que ele contou pode ter sido verdade”, afirma Castro em entrevista ao Valor.

Ivo Castro

Professor emérito da Universidade de Lisboa, há décadas Castro dirige a “Equipa Pessoa”, uma força-tarefa designada pelo governo português em 1986 — ano em que a obra do poeta caiu em domínio público — cuja missão tem sido editar os originais do autor arquivados na Biblioteca Nacional de Lisboa. Uma iniciativa, diga-se de passagem, que o governo nunca tinha tomado em relação a nenhum outro escritor do país, com exceção de Camões em 1880, o ano do seu centenário. Foi à porta da BNL, aliás, que uma amiga e antiga professora de Castro, Maria Aliete Galhoz, chamou-lhe a atenção para a existência desses originais.

“Ela disse, ‘olha, tu já viste por acaso os rascunho dele?’ Eu pensei, como é que pode ter rascunho um manuscrito que é criado de repente naquelas condições quase mediúnicas descritas por Fernando Pessoa a Casais Monteiro? ‘Mas há rascunhos’, ela disse, e estavam na Biblioteca Nacional. De certa maneira a história desses rascunhos é que ocupa meia parte desta minha edição do Caeiro”, conta o filólogo.

Para sua surpresa, ao entrar em contato com esse material, Castro descobriu que não havia nenhum poema datado depois de 8 de março de 1914. Mas havia poemas datados de alguns dias antes e alguns dias depois. Assim, concluiu, “era verdade que durante o mês de março e o mês de abril de 1914 Pessoa andou muito ocupado a escrever poemas que viriam a ser reunidos num ciclo, que viria a receber o título de O Guardador de Rebanhos e ser atribuído a um poeta que viria a chamar-se Alberto Caeiro. Mas quando esses poemas iniciais foram escritos, eram peças soltas, dois ou três numa folha de papel, do ortônimo”.

De acordo com o filólogo, só posteriormente Pessoa reuniu, enumerou e pôs numa ordem esses poemas soltos que, mais tarde, ainda alterou diversas vezes, com várias tentativas abortadas de passá-los a limpo. “À medida que vai fazendo essa cópia, vai percebendo que lhe faltam poemas pelo meio, que aquilo ainda estava a mexer e ainda estava a crescer. E para, interrompe essas tentativas, continua a escrever em papéis soltos, e a certa altura percebe-se que já está a fazer a escrita de poemas para ocupar espaços no conjunto, portanto já não é o papel solto a fabricar o conjunto, já é um conjunto semi-solidificado que solicita novos poemas”. É justamente a atitude do poeta em relação aos seus textos — essa zona cinzenta difícil de detectar em obras cujo processo criativo encontra-se documentado — que Castro destaca de maneira perspicaz em sua edição crítica: “Perto do fim, já é o ciclo que está a mandar no poeta”.

Outro grande mérito desse trabalho é apresentar ao leitor um Pessoa mais complexo do ponto de vista das escolhas poéticas. Para tanto, a nova edição se vale de um amplo aparato crítico capaz de mostrar o quanto as primeiras as edições de sua poesia, publicadas nos anos 1940 pela Ática, evitaram problematizar as variantes autógrafas apresentadas pelos manuscritos.

“Os editores da Ática leram os mesmos textos que nós lemos. Mas eles selecionaram, dentro dos papéis do espólio, os poemas que tinham uma aparência mais finalizada, numa letra mais legível, que estavam batidos à máquina, que tinham poucas emendas, que estavam completos. E deduziram que estes eram os poemas em que Pessoa mais tinha trabalhado, e publicaram estes. Foi esse texto, sanitizado, cosmetizado, selecionado, que durante vários anos foi conhecido como o texto de Fernando Pessoa. E a imagem cresceu em torno de textos bem escolhidos, bem escritos, bem apresentados, mas que deixavam de fora muitos aspectos e muitas dificuldades da obra dele”, afirma.

Para dar conta dessas dificuldades apresentadas pelo texto pessoano, a edição conta com uma seção chamada “Variantes das edições”, em que, para cada variante, são apresentadas as versões que outras edições já publicaram. Para se ter uma ideia das discrepâncias, enquanto uma edição de Caeiro diz “O dourado sol seca a vontade de lágrimas”, outra edição traz “O dourado sol seca as lágrimas pequenas”, ao passo que nesta edição mais recente lê-se “O grande sol queima a vontade de lágrimas”. No que diz respeito a versões diferentes de um mesmo verso ou palavra, deixadas em aberto pelo autor no original, Castro, na impossibilidade de identificar qual foi a primeira ou a segunda, publica as duas. É o caso dos versos a seguir, completamente diferentes entre si: “Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.” Enquanto lê-se na outra versão: “Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei: Nada me importa.”

O que a edição crítica de O Guardador de Rebanhos fornece de novo, afinal, é o recurso de todos os materiais manuscritos tratados em pé de igualdade, método que tem sido a tônica dos trabalhos da Equipa Pessoa. É a sua colocação em uma perspectiva cronológica que fornece uma linha de evolução criativa de cada poema, além de uma releitura da escrita difícil de Pessoa com ganhos consideráveis em termos de decifração, entre eles a determinação de qual é a versão mais recente, em caso de conflito, e a apresentação de cada um dos lugares em que há emendas. De modo que o leitor saiba não só o que o Fernando Pessoa escreveu pela última vez, mas também, nas palavras de Castro, “que coisas esteve a escrever, que arrependimentos teve, o que o texto poderia ter sido se tivesse parado ou se tivesse morrido mais cedo, o que nos faz suspeitar que, caso ele tivesse vivido mais vinte anos, o texto viria a ser, substancialmente, diferente no futuro.”

Matéria publicada no jornal Valor Econômico
suplemento EU & Fim de Semana (28/08/2015)

 

 

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