Maria D’Apparecida – Um registro de família, por Paulo de Azambuja Rodrigues

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Maria D’Apparecida – Um registro de família

Por seu sobrinho mais velho: Paulo de Azambuja Rodrigues

Na década de 20 do século passado uma jovem negra paulista empregada doméstica, na casa de uma família tradicional, foi engravidada pelo filho do patrão.

Diante desse grave e incômodo imprevisto a família paulistana providenciou a “extradição” da jovem para o Rio de Janeiro procurando-lhe um emprego e pagando-lhe a passagem. Foi dessa forma que a jovem Dulce foi trabalhar como doméstica na casa de meus avós, Germano e Lucília, na Tijuca.

Germano de Azambuja era um próspero advogado e Lucília, sua esposa, uma dedicada dona de casa, católica praticante e mãe de três filhos: Maria Zélia, Gilda e Aloísio. Foi nessa família que nasceu e cresceu Maria de Aparecida Marques.

Lucília, a “Dinda” de Maria de Aparecida, como boa católica levou sempre muito a sério sua relação como madrinha da menina.

Ainda criança morre Dulce sua mãe passando então Lucília a exercer completamente sua função de mãe-madrinha. 

Maria de Aparecida cresceu como mais uma filha de Lucília com todas as prerrogativas dos demais irmãos.
As irmãs dormiam num mesmo quarto, estudaram nos mesmos colégios. Maria de Aparecida, assim como Gilda, também estudou piano; e assim a família ia crescendo.

Germano morre prematuramente ficando a viúva Lucília com os recursos mais limitados. Alugou sua casa original na Rua Dr. Satamini e foi morar numa simpática casa de vila nos fundos da Rua Conde de Bonfim. Com a diferença de aluguel e com a venda de alguns terrenos Lucília ia educando seus filhos.

Primeiro Gilda (12 anos mais velha) e depois Aparecida concluíram seus estudos médios no “Instituto de Educação do Rio de Janeiro” uma excelente escola pública que preparava as moças para serem professoras primárias.

Mas Aparecida, com seu temperamento e suas ambições, não poderia ser confinada na tarefa de uma professorinha primária.

Nessa época para minha alegria em toda atividade cultural infantil lá ia eu nos meus 8, 9 anos orgulhosamente acompanhado pela minha belíssima e radiante tia (abaixo está o retrato dela nessa época) : Circo Sarrazani com três picadeiros na “ponta do Calabouço”, teatros de marionetes, matinês de piano na Escola de música, patinação no gelo…

Aparecida sempre procurou um espaço mais largo de manifestação que seu temperamento, beleza e inteligência lhe impunham. Chegou a se inscrever num concurso de miss que, quando sua vitória foi divulgada na imprensa, fez com que recebesse um sério esculacho da “dinda” no que foi apoiada contra essa bronca pela sua irmã Gilda.

Embora tivesse formação de piano ficava claro que dali não sairia uma destacada concertista. Trabalhou na Rádio Globo como locutora e radio atriz mas também isso não lhe bastava.

Durante uma discussão casual Aparecida soltou aquele vozeirão todo e minha mãe, Gilda, retrucou: “Porque que ao invés de ficar com essa gritaria toda pra cima de mim você não vai gastar essa garganta numa aula de canto?”

Pois bem, aquela frase solta foi levada muito a sério e assim procurou e achou, com o canto, sua verdadeira vocação e talento que foram se mostrando ao nível de suas pretensões.

Nasce assim em uma bela moça uma bela voz com um timbre incomum e encorpado de meio soprano.
Foi premiada num concurso na Itália, veio ao Rio e providenciou sua ida definitiva para a Europa onde já apareciam seus primeiros contratos.

Mas seu ápice como uma artista destacada se deu na Ópera de Paris com uma Carmem incomparável. Não era só uma cantora cantando Carmem, era toda “A Carmem”: corpo, rosto, voz, sensualidade, dança, interpretação e domínio absoluto de cena, “baixando” nos palcos do mundo diretamente de Bizet.

Todo ano Aparecida ficava mais ou menos um mês aqui no Rio visitando a Dinda e tratando de alguns compromissos tendo inclusive encenado a Carmem no Municipal (foi quando eu a pude assistir) além de outras audiências de câmara.

Com a morte da Dinda minha mãe Gilda também já viúva reservou um quarto de seu apartamento com os móveis da Aparecida que em suas vindas anuais passou a ficar com sua irmã Gilda com quem tinha particular afinidade.

Minha mãe morreu com toda a costumeira lucidez e inteligência aos 93 anos e até então, anualmente, Aparecida fazia com minha mãe, para seu deleite, um “tour de force” cultural, por todas as peças teatrais, e gastronômico, pelos melhores restaurantes do Rio. E no dia seguinte a noite, no lanche na mesinha da cozinha, ficavam horas analisando as peças como severas “Bárbaras Eliodoras”.

Nas últimas vindas antes do ano da morte de minha mãe já notamos uma Aparecida, embora sempre altiva, mais introvertida e em alguns momentos, de mais difícil convívio (exceto com a minha mãe).
Certamente, como acontece com frequência nesses casos o natural declínio da carreira que a idade impõe, não era absolutamente bem absorvido.

Veio para assistir a morte de minha mãe quando se dedicou totalmente ao acontecimento. Mas a consumação desse fato cortou-lhe mais um elo existencial. Assim tanto, um pouco antes, Maria D’App, como agora, Maria de Aparecida Marques, sofreram um profundo golpe de perda.

Reagiu de uma forma que viria a dificultar-lhe e dificultar-nos o convívio e o apoio, que poderia e deveria aceitar exatamente quando depois dos 80 anos mais precisaria.

Mostrou-nos que seus vínculos aqui estavam encerrados com a morte da Gilda, e ao responder nossas apreensões quanto a assistência que lá sozinha teria que enfrentar nos disse para que não nos preocupássemos pois tinha pessoas que estariam orientadas para todas essas eventualidades.

Assim, daí em diante, todas as cartas de sobrinhos não foram mais respondidas.

Porisso, nessas tristes circunstâncias de sua morte o que muito nos surpreende, pois que era contrário ao espirito prático e objetivo que ela sempre demonstrou, foi seu completo abandono, sem que o tal “encarregado de tudo”, que ela tanto nos garantiu, tivesse se apresentado.

Paulo de Azambuja Rodrigues

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Muito oportuno o relato desse

    Muito oportuno o relato desse sobrinho, depois do que lemos aqui sobre a morte da soprano no Exterior, considerada indigente, etc. Na ocasião, me perguntei por que isso. Como podia uma brasileira com sucesso na música até na Europa morrer só, e tida como indigente por falta de amigos e família. 

    São coisas que muito fazemos contra nós mesmos. Faltou à Cantora entender a necessidade de manter por perto amigos e parentes. Tudo pode ser discutível, claro, mas, com certeza, ninguém age certo em se isolar de todos, ainda mais quando a velhice aparece. 

    Casos como esses, eu, que já vivi um bocado, conheço às pencas. 

    Imagino a tristeza do sobrinho Paulo Azambuja em ter lido a outra matéria, afinal, pelo que narra agora, as informações sobre d’Aparecida são muito fortes, ditadas pelas boas lembranças da família em geral, que, muito generosamente, acolheu a filha da empregada num momento tão difícil. 

  2. Cara Maria Rodrigues!!!

    Não posso e nem quero tecer qualquer juizo de valor, porém a introspecção e afastamento da artista Maria d’Apparecida não devem ser creditados à vontade dela e sim a circunstâncias de saúde.

    Uma pessoa na idade dela, que foi boa e afetiva com sua família de criação, não agiria assim por capricho e sim por motivos de doença.

    De todo modo, como a família já tomou conhecimento de seu falecimento, espera-se que, juntamente com as autoridades ligadas ao caso, seja providenciado um sepultamento condigno para a grande artista brasileira, “comme il faut”.

    A propósito, envio o vídeo abaixo!

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=O12YT3yRvV4%5D

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