Mário de Andrade, 70 anos ausente, hoje.

Em 2015, Mário de Andrade será o homenageado da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty. Para lembrar os 70 de morte do escritor, o sítio da Festa relata as reações dos amigos escritores Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinícius de Morais à morte inesperada de Mário.

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Imagem do arquivo Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (IEB USP) – Fundo Mário de Andrade, documento: MA-F-1873c

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70 anos hoje

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Há setenta anos, num domingo, morria em seu quarto na rua Lopes Chaves, 546, em São Paulo, o poeta Mário de Andrade. Às 22h40, Mário pediu ao amigo Luís Saia que segurasse sua xícara de chá. “Não estou me sentindo muito bem”, disse, e vergou-se para frente. Quem conta é Marcos Antonio de Moraes em seu Orgulho de jamais aconselhar, estudo sobre a correspondência de Mário de Andrade, autor homenageado da Flip 2015.

Perto da meia-noite, a casa já começava a ficar apinhada de amigos e parentes. O escritor carioca Luis Martins foi buscar Gilda de Mello e Souza, sobrinha do escritor, e o marido, Antonio Candido – o casal de professores teria papel central na consagração póstuma do autor de Macunaíma. O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, o maestro Camargo Guarnieri e a pintora Tarsila do Amaral também estavam lá para velar o amigo. Os frades da Ordem Terceira do Carmo cuidaram de cobrir o corpo conforme as tradições da irmandade. O enterrou seguiu-se no dia seguinte, às 17h, no cemitério da Consolação.

Embora o clima fosse de perplexidade, o próprio escritor era dado a fazer previsões sobre a data de sua morte. A Moacir Werneck de Castro, afirmou que “aconteceria por volta de 1949”. Depois, o prazo foi encurtando: “Em conversa com amigos […] baixou para 1943 (quando faria 50 anos), pois se sentia péssimo de saúde. Então adiou o fim para os 51 anos de idade. Era tudo meio brincadeira, mas acabou acertando. Morreu com 51 anos e quatro meses”.

“Esta morte é estúpida, mais do que qualquer outra” – escreveu Carlos Drummond de Andrade, ainda no calor da hora, numa crônica doída. Era uma das primeiras homenagens em verso e prosa que pipocariam nos próximos dias, semanas e meses. Em dezembro, Drummond incluiu em seu livro A rosa do povo o poema “Mário de Andrade desce aos infernos”.

Manuel Bandeira também evocou o amigo em “A Mário de Andrade ausente”, poema compilado no livro Belo belo: “Anunciaram que você morreu/ Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:/ A alma profunda, não/ Por isso não sinto agora a sua falta”. Vinicius de Moraes relembrou o momento em que recebeu a notícia no poema “A manhã do morto”: “Ergo-me com dificuldade/ Sentindo a presença dele/ Do morto Mário de Andrade/ Que muito maior do que eu/ Mal cabe na minha pele”.

Rubem Braga, que nunca tivera amizade com Mário devido a um desentendimento político, resolveu “lhe render uma limpa e fervorosa homenagem” dez anos depois de sua morte em crônica no jornal Correio da Manhã. Encerrou com uma previsão acertada: “A qualquer momento a obra de Mário voltará a ser admirada, estudada e discutida com um interesse e uma paixão que talvez só encontre paralelo na obra de Machado de Assis”.

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MÁRIO DE ANDRADE DESCE AOS INFERNOS

Carlos Drummond de Andrade

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I

Daqui a vinte anos farei teu poema
e te cantarei com tal suspiro
que as flores pasmarão, e as abelhas,
confundidas, esvairão seu mel.

Daqui a vinte anos: poderei

tanto esperar o preço da poesia?

É preciso tirar da boca urgente

o canto rápido, ziguezagueante, rouco,

feito da impureza do minuto

e de vozes em febre, que golpeiam

esta viola desatinada

no chão, no chão.

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II 

No chão me deito à maneira dos desesperados.

Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio,
esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho,
preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se,
mas preciso, preciso, preciso.

Rastejando, entre cacos, me aproximo.
Não quero, mas preciso tocar pele de homem,
avaliar o frio, ver a cor, ver o silêncio,
conhecer um novo amigo e nele me derramar.

Porque é outro amigo. A explosiva descoberta

ainda me atordoa. Estou cego e vejo. Arranco os olhos e

[vejo.
Furo as paredes e vejo. Através do mar sangüíneo vejo.
Minucioso, implacável, sereno, pulverizado,
é outro amigo. São outros dentes. Outro sorriso.
Outra palavra, que goteja.

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III 

O meu amigo era tão
de tal modo extraordinário,
cabia numa só carta,
esperava-me na esquina,
e já um poste depois

ia descendo o Amazonas,
tinha coletes de música,
entre cantares de amigo
pairava na renda fina
dos Sete Saltos,
na serrania mineira,
no mangue, no seringal,
nos mais diversos brasis,
e para além dos brasis,
nas regiões inventadas,
países a que aspiramos,
fantásticos,

mas certos, inelutáveis,
terra de João invencível,
a rosa do povo aberta…

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IV

A rosa do povo despetala-se,

ou ainda conserva o pudor da alva?

É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil,

[pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista

[que incha,
e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,
o poeta, nas trevas, anunciou.

Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros,

quadros. Portinari aqui esteve, deixou

sua garra. Aqui Cézanne e Picasso,

os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão,

a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões,

os bichos… Aqui tudo se acumulou,

esta é a Rua Lopes Chaves, 546,

outrora 108. Para aqui muitas vezes voou

meu pensamento. Daqui vinha a palavra

esperada na dúvida e no cacto.

Aqui nunca pisei. Mas como o chão

sabe a forma dos pés e é liso e beija!

Todas as brisas da saudade balançam a casa,

empurram a casa,

navio de São Paulo no céu nacional

vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul,

gente de Pernambuco e Pará, todos os apertos de mão,

todas as confidencias a casa recolhe,

embala, pastoreia.

Os que entram e os que saem se cruzam na imensidão

[dos corredores,
paz nas escadas,
calma nos vidros,
e ela viaja como um lento pássaro, uma notícia postal, uma

[nuvem pejada.
Casas ancoradas saúdam-na fraternas:
Vai, amiga!
Não te vás, amiga…

(Um homem se dá no Brasil mas conserva-se intato,
preso a uma casa e dócil a seus companheiros
esparsos.)

Súbito a barba deixou de crescer. Telegramas
irrompem. Telefones
retinem. Silêncio
em Lopes Chaves.

Agora percebo que estamos amputados e frios.

Não tenho voz de queixa pessoal, não sou

um homem destroçado vagueando na praia.

Muitos procuram São Paulo no ar e se concentram,

aura secreta na respiração da cidade.

É um retrato, somente um retrato,

algo nos jornais, na lembrança,

o dia estragado como uma fruta,

um véu baixando, um ríctus

o desejo de não conversar. É sobretudo uma pausa oca

e além de todo vinagre.

Mas tua sombra robusta desprende-se e avança.

Desce o rio, penetra os túneis seculares

onde o amigo marcou seus traços funerários,

desliza na água salobra, e ficam tuas palavras

(superamos a morte, e a palma triunfa)

tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes.

 

(E também saudades dela que se foi, e de outras coisas que se foram…)

 

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A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE

Manuel Bandeira

 

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá (Pela fôrça persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguem perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você,
Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.

É sempre assim quando o ausente Partiu sem se despedir:
(Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que êle não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá no meu hotel.

Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se.
Para outra vida?
A vida é uma só. A sua vida continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora sua falta.”

 

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A MANHÃ DO MORTO

 

 

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Vinícius de Morais, rio de Janeiro , 1954

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O poeta, na noite de 25 de fevereiro de 1945, sonha que vários amigos seus perderam a vida num desastre de avião, em meio a uma inexplicável viagem para São Paulo.


Noite de angústia: que sonho
Que debater-se, que treva…

…é um grande avião que leva amigos meus no seu bojo…
…depois, a horrível notícia:
FOI UM DESASTRE MEDONHO!

A mulher do poeta dá-lhe a dolorosa nova às oito da manhã, depois de uma telefonada de Rodrigo M. F. de Andrade.

Me acordam numa carícia… 
O que foi que aconteceu? Rodrigo telefonou:

MÁRIO DE ANDRADE MORREU.

Ao se levantar, o poeta sente incorporar-se a ele o amigo morto.

Ergo-me com dificuldade
Sentindo a presença dele
Do morto Mário de Andrade
Que muito maior do que eu
Mal cabe na minha pele.

Escovo os dentes na saudade
Do amigo que se perdeu
Olho o espelho: não sou eu
É o morto Mário de Andrade
Me olhando daquele espelho
Tomo o café da manhã:
Café, de Mário de Andrade.

A necessidade de falar com o amigo denominador comum, e o eco de Manuel Bandeira.

Não, meu caro, que eu me digo
Pensa com serenidade
Busca o consolo do amigo
Rodrigo M. F. de Andrade

Telefono para Rodrigo
Ouço-o; mas na realidade
A voz que me chega ao ouvido
É a voz de Mário de Andrade.

O passeio com o morto
Remate de males


E saio para a cidade
Na canícula do dia
Lembro o nome de Maria
Também de Mário de Andrade
Do poeta Mário de Andrade.

Gesto familiar

Com grande dignidade
A dignidade de um morto
Anda a meu lado, absorto
O poeta Mário de Andrade
Com a manopla no meu ombro.

Goza a delícia de ver
Em seus menores resquícios.
Seus olhos refletem assombro.
Depois me fala: Vinicius
Que ma-ra-vilha é viver!

A cara do morto

Olho o grande morto enorme
Sua cara colossal
Nessa cara lábios roxos
E a palidez sepulcral
Específica dos mortos.

Essa cara me comove
De beatitude tamanha.
Chamo-o: Mário! ele não ouve
Perdido no puro êxtase
Da beleza da manhã.

Mas caminha com hombridade
Seus ombros suportam o mundo
Como no verso inquebrável
De Carlos Drummond de Andrade
E o meu verga-se ao defunto…

O eco de Pedro Nava

Assim passeio com ele
Vou ao dentista com ele
Vou ao trabalho com ele
Como bife ao lado dele
O gigantesco defunto
Com a sua gravata brique
E a sua infantilidade.

À tarde o morto abandona subitamente o poeta para ir enterrar-se.

Somente às cinco da tarde
Senti a pressão amiga
Desfazer-se do meu ombro…
Ia o morto se enterrar
No seu caixão de dois metros.

Não pude seguir o féretro
Por circunstâncias alheias
À minha e à sua vontade
(De fato, é grande a distância
Entre uma e outra cidade…
Aliás, teria medo
Porque nunca sei se um sonho
Não pode ser realidade).
Mas sofri na minha carne
O grande enterro da carne
Do poeta Mário de Andrade
Que morreu de angina pectoris:

Vivo na imortalidade.
Redação

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