Mário de Andrade escreve sobre Cecília Meireles

Viagem

(26-XI-1939)

      

 

Mário de Andrade

Por todas as tão diversas conceituações e experiências de poesia que apareceram no movimento literário brasileiro do Modernismo pra cá, Cecília Meireles tem passado, não exatamente incólume, mas demonstrando firme resistência a qualquer adesão passiva. Ela é desses artistas que tiram seu ouro onde o encontram, escolhendo por si, com rara independência. E seria este o maior traço da sua personalidade, o ecletismo, si ainda não fosse maior o misterioso acerto, dom raro, com que ela se conserva sempre dentro da mais íntima e verdadeira poesia.

“Viagem”, guardando poemas que abrangem quase uma década de vida criadora, apresenta enorme variedade e é boa prova desse ecletismo sábio, que escolhe de todas as tendências apenas o que enriquece ou facilita a expressão do ser. Creio porém que a poetisa devia ter datado seus poemas pra que milhor a gente pudesse lhe apreciar a evolução e as viagens exteriores. Não o quis fazer e misturou tudo num bordado búlgaro que nem sempre me pareceu feliz. Há um bocado de tudo no livro, talvez com exceção única dos processos parnasianos. Salva-se apenas a poesia, é certo, mas não salva-se o estado de graça do leitor, jogado a todo instante pra mundos bem distintos uns dos outros. Se escute este “Assovio”:

 

Ninguém abra a sua porta
Para ver que aconteceu:
Saímos de braço dado,
A noite escura mais eu.

(……………………………..)

Vou pelo braço da noite,
Levando tudo que é meu:
A dor que os homens me deram,
E a canção que Deus me deu.

 

Já o poema que segue a esta simplicidade popularesca, tem requintes de pensamento refinado, que nem este:

 

Para pensar em ti me basta
O próprio amor que por ti sinto:
És a idéia serena e casta,
Nutrida no enigma do instinto.

 

Aliás, este requinte, às vezes se exagera um pouco. O raro da expressão parece então buscado por si mesmo, como em certa qualificação à Guilherme de Almeida, de “Anunciação”, e especialmente o poema “Estrela”…)

Mais eis que no admirável poema anterior a “Assovio”, nem sutilezas requintadas de pensamento, nem simplicidades popularescas, porém, vaguezas muito sensíveis poderosamente intensas mas tênues, quase obscuras, em que a palavra se esgarça em seu sentido intelectual, readquirindo todo o seu poder sugestivo:

 

Com esta boca sem pedidos
E esperanças tão ausentes,
E esta névoa nos ouvidos complacentes
– Oh mãos, por que sois ardentes? –
Tudo são sonhos dormidos
Ou dormentes!

 

Pois macacos me mordam si não temos aqui três terras de poesia e três datas estéticas distintas. Não é porém com poemas como “Assovio” que Cecília Meireles prova ser o poeta notável que é. Coisas assim, eu temo que outros poetas possam fazer, desque verdadeiros. É poesia mas ainda não é exclusivamente a poesia de Cecília Meireles.

Onde a poetisa se torna extraordinária e admirável é nos poemas que eu diria de poesia pura:

 

Asa da luta
Quase parada,
Mostra-me a sua
Sombra escondida
Que continua
A minha vida
Num chão profundo
–  Raiz prendida
A um outro mundo?

 

Ninguém entre nós pra captar assim momentos de sensibilidade, quase livres, de rápida fixação consciente, em que o assunto como que parece totalmente sem assunto. Um prurido, um aflar leve mas grave de sensibilidade que apenas se define. Este o encanto excepcional, a adivinhação magnífica de muitas líricas metrificadas da atual Cecília Meireles.

Poucas vezes, aliás, tenho sentido metrificação e rima tão justificáveis como nestes poemas da poetisa. Me parece que o seu princípio estético, em última análise, é o mesmo que leva o povo a metrificar e rimar. O metro é apenas um elemento de garantia formalística que permite à gente se isentar de preocupações construtivas. Para a poetisa, como para o povo, o metro não é uma prisão, mas liberdade. Fixada numa fórmula embalante (ela só emprega normalmente os esquemas métricos mais musicais) a poetisa está livre, e o movimento lírico se expande em sua delicadeza maravilhosa. Jamais a poesia nacional alcançou tamnha evanescência tanto verbal quanto psíquica. E surgem poemas como “Grilo”, “Som”, a magistral “Medida de Significação” (em metro livre, este), a “Serenata”. A todo instante brotam estrofes como esta:

 

A primavera foi tão clara
Que se viram novas estrelas,
E soaram no cristal dos mares
Lábios azuis de outras sereias.

 

Citaria ainda o “Luar”, como esta quadra, aparentemente tão claro e compreensível, mas de um poder sugestionador quase miraculoso – essa faculdade que Cecília Meireles agora adquiriu de inventar as palavras precisas pra, dentro da claridade, guardar um mundo riquíssimo de miragens e milagres sensíveis. Neste sentido, ainda o poema “Terra” é das coisas mais esplêndidas da poesia: definição forte, cheia de drama, lírica, rija e volúvel como o que há de milhor em Paul Valéry. E nessa volubilidade lírica, em que fragmentos paisagísticos se entrelaçam a dados de pensamento ou mesmo os substituem, como símbolos, abundam necessariamente os temas psicológicos que perseguem a poetisa: o mar que é a sua grande obsessão, a música. E, femininamente, além das lágrimas, a angustiada volúpia de ter um nome, o que para a mulher é sempre uma preocupação. Uma das vezes ela confessa:

 

Surgi do meio dos túmulos
Para aprender o meu nome.

 

Apesar dos versos livres belíssimos como “Pausa”, prefiro Cecília Meireles nos seus poemas medidos. Com ela é visível que a fórmula estrófica nasce espontaneamente do moto lírico, formando o corte formal da primeira estância:

 

Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

 

A sua grande técnica é depois repetir essa fórmula (de algum jeito livre, pois nascida sem predeterminação) nas estâncias seguintes, sempre num perfeito equilíbrio entre o sentimento e a sua expressão, sem palavra a mais:

 

Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
Não sei, não sei. Não sei se fico
Ou passo.

 

E dentro de sua grande técnica, eclética e energicamente adequada, se move a alma principal de Cecília Meireles. Alma grave e modesta, bastante desencantada, simples e estranha ao mesmo tempo, profundamente vivida. E silenciosa. Porque é extraordinária a faculdade com que a poetisa sabe encher de silêncio as suas palavras.

Cecília Meireles está numa grande plenitude da sua arte. Com “Viagem” ela se firma entre os maiores poetas nacionais.

 

…………………………………………………………………………………………….

ANDRADE, Mário de. Sobre Viagem. In: O empalhador de passarinho. São Paulo, Livraria Martins Editora, s/d [26 de novembro de 1939].

Redação

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