O “esquadrão de austericidas” e o ataque indecente aos mais pobres, por Lauro Veiga Filho

As análises desconsideram decisões tomadas para reforçar os recursos destinados a políticas sociais e programas de apoio aos mais pobres

O “esquadrão de austericidas” e o ataque indecente aos mais pobres

por Lauro Veiga Filho

O “esquadrão austericida” nem esperou o ano engrenar de vez para expor todas as suas garras, mirando desde sempre as artérias que abastecem as políticas públicas destinadas aos mais pobres e miseráveis. Desde janeiro, as manchetes nos jornalões e sites pretensamente noticiosos destacam premeditadamente números negativos sobre o desempenho das contas do setor público, com ataques a tudo que possa ser identificado como parte do Estado brasileiro – sim, porque a condenação de práticas supostamente intervencionistas e “estatizantes” não se estende a políticas e práticas do mesmo tipo adotadas pelas economias centrais, aqui entendidas como as nações do Ocidente desenvolvido.

As manchetes, sempre em tom catastrófico, seguem acompanhadas por editoriais no mesmo estilo “arrasa-quarteirão”, apontando o desastre iminente caso não sobrevenham correções de rumo na política econômica, o que significa invariavelmente cortes drásticos de despesas para reverter o déficit e conter o avanço da dívida pública. O resultado primário do governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência), que leva em conta a diferença entre receitas e despesas, excluindo os gastos com juros, destaca a grande mídia, foi o maior de todos os tempos no ano passado, se descontado o rombo de quase R$ 940,0 bilhões observado em 2020 por conta das despesas geradas para enfrentar os efeitos da pandemia.

Os textos até se “esforçam” para detalhar os fatores que levaram àquele rombo, destacando principalmente o impacto gerado pela decisão da equipe econômica de acertar R$ 92,388 bilhões em precatórios que o governo anterior havia decidido não pagar, aplicando um verdadeiro calote a aposentados e pensionistas da Previdência, a servidores públicos, a pessoas deficientes e a famílias favorecidas pela incipiente rede de proteção social desenvolvida nas últimas décadas pelo Estado brasileiro. Mas associam aqueles resultados a uma suposta “ineficiência” do setor público no gerenciamento de suas despesas, numa retórica estrategicamente pensada para esvaziar políticas públicas relevantes e abrir espaços para “negócios privados”, que favoreceriam especialmente o mercado financeiro e seus operadores.

As análises em geral desconsideram decisões tomadas para reforçar os recursos destinados a políticas sociais e programas de apoio aos mais pobres, além de colocar em plano secundário as perdas de receitas não administradas pela Receita Federal, que haviam subido estratosfericamente no ano anterior por conta de políticas liberalizantes destinadas a promover o desmonte de empresas estatais estratégicas e bancos federais, a exemplo respectivamente da Petrobrás e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

O que os números mostram

Em valores atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) apontam um avanço real de 12,45% para as despesas primárias totais entre 2022 e 2023, saindo de R$ 1,923 trilhão para quase R$ 2,163 trilhões, num incremento de R$ 239,435 bilhões. O aumento dos gastos com abono salarial e seguro desemprego, benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) e do programa Renda Mensal Vitalícia (RMV), assistência social, saúde e educação respondeu por 55,95% da variação observada para as despesas totais, numa conta que já inclui os precatórios pagos principalmente em dezembro do ano passado. Na soma daqueles cinco grupos, os gastos foram elevados de R$ 426,878 bilhões, perto de 22,20% da despesa primária total, para R$ 560,854 bilhões, num acréscimo de pouco mais do que R$ 133,975 bilhões, ou seja, 31,38% a mais, o que elevou a participação no total para 25,93%.

Com a inclusão dos benefícios previdenciários, urbanos e rurais, a contribuição para a variação geral das despesas avança para 83,72%, considerando que os desembolsos em favor de aposentados e pensionistas da Previdência cresceram de R$ 846,913 bilhões para R$ 913,404 bilhões em valores aproximados, avançando 7,85% em termos reais (mais R$ 66,491 bilhões). Mais claramente, os programas mais essenciais para a população brasileira foram responsáveis por quase R$ 84 a cada R$ 100 gastos a mais pelo governo central no ano passado, refletindo não apenas o acerto de precatórios caloteados pela equipe econômica anterior, mas ainda a recomposição de despesas socialmente relevantes e também os investimentos federais.

O programa Bolsa Família, depois de reorganizado e turbinado, com a ajuda da chamada PEC da Transição, recebeu recursos na faixa de R$ 169,096 bilhões nos 12 meses do ano passado, o que se compara com R$ 93,723 bilhões em 2022. A despesa nesta área aumentou nada menos do que 80,42% já descontada a inflação, correspondendo a um acréscimo de R$ 75,373 bilhões – numa contribuição próxima de 31,5% para o crescimento da despesa primária total. Na mesma linha, os investimentos experimentaram um salto de 72,52% na mesma comparação, avançando de R$ 47,663 bilhões para R$ 82,227 bilhões (perto de R$ 34,564 bilhões investidos adicionalmente). Os valores destinados ao programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), que haviam murchado para apenas R$ 791,910 milhões no último ano do inelegível, cresceram praticamente 11 vezes em 2023, superando R$ 9,438 bilhões.

Perdas de receitas

A receita primária líquida recuou 2,18% entre aqueles dois anos, encolhendo de alguma coisa abaixo de R$ 1,975 trilhão para pouco menos de R$ 1,932 trilhão, numa perda de R$ 43,034 bilhões. Em larga medida, as perdas estiveram relacionadas a uma “normalização” das receitas com dividendos e participações, concessões e permissões e com exploração de recursos naturais, que voltaram a se aproximar de seus níveis históricos. Descontadas transferências de receitas a Estados e prefeituras pela exploração de minérios e petróleo, a soma daqueles três itens atingiu R$ 107,60 bilhões no ano passado, num tombo de 47,42% frente a R$ 204,651 bilhões em 2022 – um ponto nitidamente fora da curva. Apenas nesta área, o Tesouro deixou de arrecadar qualquer coisa ao redor de R$ 97,051 bilhões.

Para se ter uma dimensão das distorções produzidas pela política liberalizante de Guedes e sua equipe, o pagamento de dividendos pelas estatais havia rendido ao governo, apenas em 2022, algo como R$ 91,937 bilhões, equivalente a 89,2% de todos os dividendos distribuídos ao governo entre 2017 e 2021, que somaram R$ 103,063 bilhões.

Superávit enganoso

No balanço final de 2023, as despesas superaram as receitas em R$ 230,870 bilhões, diante de um superávit enganoso de praticamente R$ 51,60 bilhões em 2022. Numa estimativa própria, considerando a média dos cinco anos entre 2017 e 2021 para a arrecadação de dividendos, concessões e exploração de recursos naturais, a receita líquida ajustada teria atingido perto de R$ 1,870 trilhão em 2022, a valores de dezembro passado, diante de uma despesa primária geral de R$ 1,923 trilhão, o transformaria o superávit daquele ano num déficit de R$ 53,415 bilhões, próximo de 0,53% do Produto Interno Bruto (PIB).

A receita líquida ajustada do Tesouro em 2023, conforme os mesmos critérios, teria crescido 3,3%, chegando a R$ 1,932 trilhão. Caso o gasto com precatórios tivesse se mantido próximo dos valores médios registrados entre 2017 e 2021, a despesa primária teria avançado até R$ 2,065 trilhões, resultando num déficit quase 42,2% mais baixo do que aquele efetivamente realizado em 2023, mais próximo de R$ 133,525 bilhões, em torno de 1,23% do PIB.

Numa comparação internacional, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projetava, até novembro do ano passado, um rombo de 4,32% do PIB para os países do G20 ao longo de 2023, diante de 1,15% em 2017, quer dizer, quase três vezes maior ou 3,17 pontos percentuais a mais. No mesmo intervalo, o déficit primário no Brasil elevou-se de 1,89% para 2,12% do PIB, conforme registrado no boletim da STN, numa evolução de 0,23 pontos. Vale dizer, a “deterioração” das contas públicas foi muitas vezes mais relevante nas 20 maiores economias planetárias do que o retrocesso observado no País.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador