Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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O mundo de Charles Michel às três e meia da manhã, por Gilberto Lopes

Michel repete declarações que ouvimos frequentemente hoje: “A Rússia não irá parar na Ucrânia, tal como não parou há dez anos na Crimeia”.

O mundo de Charles Michel às três e meia da manhã

por Gilberto Lopes, em São José

Eram três e meia da manhã quando foi acordado por um telefonema do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, anunciando a invasão do seu país. Ao ouvir a sua voz sombria, o presidente do Conselho Europeu (órgão que reúne os chefes de Estado e de governo dos 27 Estados-membros), o belga Charles Michel, compreendeu que a ordem internacional surgida da Segunda Guerra Mundial tinha mudado para sempre. .

Michel, um conservador que chefiou um governo de coligação no seu país entre 2014 e 2019 antes de assumir a presidência do Conselho Europeu, conta-o num artigo que publicou a 19 de março no jornal espanhol El País.

Na sua visão do mundo, dadas as novas ameaças que a Europa enfrenta, “é necessário reforçar a nossa capacidade de defender o mundo democrático, tanto para a Ucrânia como para a Europa”.

Hoje, na Europa, esta defesa é entendida quase exclusivamente como um desafio militar. Michel resume tudo com um velho cliché: “Se queremos a paz, temos de nos preparar para a guerra”.

São frases poderosas, cujo principal efeito é nos isentar de pensar. De que guerra Michel está nos contando? Da OTAN contra a Rússia?

Michel repete declarações que ouvimos frequentemente hoje: “A Rússia não irá parar na Ucrânia, tal como não parou há dez anos na Crimeia”.

“A Rússia constitui uma grave ameaça militar ao nosso continente europeu e à segurança global.” Continua as suas tácticas de desestabilização em todo o mundo, na Moldávia, na Geórgia, no Sul do Cáucaso, nos Balcãs Ocidentais e até no continente africano.”

Nenhum analista sério, nem político nem militar, confirma a ideia de que a Rússia, uma vez terminada a guerra na Ucrânia, se prepara para avançar sobre os seus vizinhos europeus. Estaríamos a falar de uma guerra contra a NATO, de um conflito nuclear. Isto não faz sentido e é precisamente a natureza nuclear dessa guerra que retira todo o sentido à frase de Michel. A menos que estejamos todos preparados para a tragédia que isso significaria.

Mas Michel não tem dúvidas: – Enfrentamos a maior ameaça à nossa segurança desde a Segunda Guerra Mundial, garante.

Outras visões do mundo

David Milband, antigo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido (2007-2010), publicou, há um ano, um artigo com o título “The World Beyond Ukraine.” Foreign Affairs, Abril de 2023).

Aí diz que a invasão da Ucrânia produziu uma notável unidade de ação entre as democracias liberais do mundo. Mas – acrescentou – esta unidade do Ocidente não foi apoiada pelo resto do mundo. Dois terços da população mundial, diz Miliband, vivem em países oficialmente neutros ou apoiam a Rússia neste conflito, incluindo democracias notáveis ​​como o Brasil, a Índia, a Indonésia ou a África do Sul.

Esta distância entre o Ocidente e o resto do mundo – acrescenta o político inglês – “é o resultado de uma profunda frustração – raiva, na verdade – pela forma como o Ocidente conduziu a globalização desde o fim da Guerra Fria”.

O presidente russo, Vladimir Putin, disse algo semelhante. É uma das razões pelas quais ele explica a sua decisão de irromper na cena internacional de tal forma que fez Michel dizer que a ordem internacional, herdada da Segunda Guerra Mundial, “havia mudado para sempre”.

A verdade é que uma guerra com a NATO é vista como improvável por muitos analistas diferentes. Embora, naturalmente, dada a natureza da guerra na Ucrânia, esta não possa ser excluída, incluindo a possibilidade de que possa ser desencadeada por erro de cálculo ou mesmo por acidente.

Em 24 de Março, por exemplo, a Polônia afirmou que um projétil russo lançado contra uma base ucraniana perto da fronteira polaca tinha sobrevoado o seu espaço aéreo durante cerca de 40 segundos. E pediu explicações ao governo russo, que acabou por decidir não as dar, porque a Polônia não apresentou qualquer prova do que afirmava.

Dois dias antes, um antigo oficial americano, Stanislav Krapivnik, disse ao meio de comunicação russo RT que o governo polaco estava a preparar a sua população para uma guerra com a Rússia. Ele lembrou as afirmações do Chefe do Estado-Maior polaco, General Wieslaw Kukula, de que a Rússia “estava a preparar-se para um conflito com a NATO” na próxima década. O que, para Krapivnik, faz parte da preparação psicológica do povo para a guerra. Também não excluiu que a Polônia pudesse lançar um ataque preventivo contra a Rússia, com o apoio de países como a República Checa ou os países bálticos, o que desencadearia um conflito inevitável com a NATO.

De qualquer forma, um estudo feito para a Rand Co. por Samuel Charap e Miranda Priebe, publicado em janeiro do ano passado, com o título “Evite uma longa guerra”, conclui que, para os Estados Unidos, é mais importante evitar tanto uma guerra entre a OTAN e a Rússia, como uma guerra de longa data entre a Rússia e a Ucrânia.

Todo mundo se sente ameaçado

A mesma visão alarmista predomina entre vários políticos europeus. Joschka Fischer, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão e líder dos Verdes, insistiu que “não se trata apenas da liberdade da Ucrânia. “Trata-se de todo o continente europeu.” A Rússia quer apagar o seu vizinho do mapa, diz ele.

Como podemos imaginar uma guerra russa para conquistar o continente europeu? Fischer se sente ameaçado. Michel também. Não foi a Rússia que se aproximou das fronteiras da NATO. Foram as fronteiras da OTAN que se aproximaram da Rússia durante 40 anos. Mas essa é uma reflexão que não está no raciocínio desses políticos europeus.

Como diz o Ministro dos Negócios Estrangeiros sueco (o último país a aderir à NATO), Tobias Billstrom, “armar a Ucrânia é uma forma de enfrentar os apetites de Moscovo”. Parece-me que Moscou poderá pensar que esta é uma forma de alimentar os apetites da NATO contra si.

Para o ministro sueco, em todo o caso, não é o seu país, nem a NATO, que constituem um problema; É o comportamento irresponsável e imprudente da Rússia, que procura reconstruir o seu antigo império no Báltico.

Não lhe ocorre que a Rússia também se sente ameaçada e que antes de invadir a Ucrânia alertou muitas vezes para o risco que o avanço sistemático da NATO em direcção às suas fronteiras representava para eles?

Um vislumbre do bom senso

O tom belicoso ocupa cada vez mais o espaço do debate. A cúpula da União Europeia, de 22 de março, “foi precedida por um ambiente belicoso que há muitos anos não era lembrado em Bruxelas”, afirmaram os correspondentes do El País.

A UE apelou à sociedade civil para que se prepare para “todos os perigos”. Michel pediu à Europa que passasse “para um regime de economia de guerra”. Na Alemanha, um ministro sugeriu a introdução de cursos de preparação para conflitos nas escolas.

Está a ser criada uma atmosfera de histeria de guerra que acabou por assustar alguns dos próprios líderes europeus. “Não me sinto reconhecido quando se fala em transformar a Europa numa economia de guerra, nem com expressões como a terceira guerra mundial”, disse o chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, em Bruxelas.

Não é que eu discorde da sugestão de Michel de nos prepararmos para a guerra, embora não partilhe o tom que o debate adotou. Mas a sua própria ministra da Defesa, Margarita Robles, recordou há poucos dias, numa entrevista, que “um míssil balístico pode perfeitamente atingir Espanha a partir da Rússia”.

O mesmo representante da política externa da UE, Josep Borrell, que tem frequentemente alimentado esta atmosfera bélica, preferiu agora alertar contra a tendência de assustar os cidadãos europeus com uma guerra, exagerando a ameaça de um conflito direto com a Rússia.

“Ouvi vozes que falam de uma guerra iminente. Graças a Deus a guerra não é iminente. Vivemos em paz. “Apoiamos a Ucrânia, mas não fazemos parte dessa guerra.” Para Borrell, não se trata de soldados europeus “morrem no Donbass”.

Um risco que o presidente de França e de outros países, especialmente os países bálticos e a Polônia, parecem dispostos a correr. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dimitry Kuleba, em entrevista ao Politico em 25 de março, não descartou que os países europeus decidam enviar tropas para a Ucrânia para conter os avanços russos. “Se a Ucrânia perder”, disse ele, “Putin não irá parar”.

É evidente que a declaração de Borrell está cheia de contradições. É difícil compreender que vivam em paz enquanto aumenta a participação da NATO numa guerra para a qual desviaram recursos que multiplicam muitas vezes os atribuídos a qualquer outro dos seus projetos no mundo.

Fascismo como extrema direita

“Os políticos europeus estão a perder a cabeça. A voz da paz está a recuar completamente. Muitos líderes políticos europeus estão a sofrer de uma psicose de guerra”, disse o ministro húngaro dos Negócios Estrangeiros, Peter Szijjarto, no domingo passado, dia 24.

A Hungria – que é frequentemente acusada na Europa de ser “populista” e de “extrema direita” – é um país que se opõe aos planos de enviar armas para a Ucrânia.

O “populismo”, conceito que tem alimentado milhares de páginas acadêmicas muito variadas, tem a vantagem de evitar muitas complicações para os jornalistas. O adjetivo, inútil para explicar o cenário político, serve para passar sem necessidade de maiores elaborações. Isso poupa muitos jornalistas de pensar.

Na Alemanha, prestam especial atenção ao papel de um partido que colocam na “extrema direita”: Alternativa para a Alemanha, AfD, na sua sigla alemã.

O Grande Continente (publicação do Groupe d’études géopolitiques, centro de investigação independente sediado na École Supérieure de Paris, fundado em maio de 2019), decidiu acompanhar os abundantes processos eleitorais previstos para este ano com uma série de entrevistas. Para o caso alemão, entrevistou o historiador Johann Chapoutot (a entrevista pode ser vista aqui)

Chapoutot falou sobre o que a AfD significa para a Alemanha. “A AfD passou de um foco em questões monetárias para uma postura populista mais pronunciada”, diz ele. “Como muitos partidos de extrema direita, propõe um discurso populista que promete devolver o poder ao povo face a uma elite que é supostamente rápida em oprimi-lo.”

Mas o próprio Chapoutot – que aqui utiliza o conceito de “populismo” – fornece elementos para uma análise mais profunda dessa direita alemã, extrema, certamente, mas representada nas mais diversas formações políticas do país, não apenas na AfD.

Na Baviera, onde os muito conservadores Socialistas Cristãos da CSU dominam o cenário eleitoral, a AfD encontra “pouco ou quase nenhum espaço” para se desenvolver. O forte particularismo bávaro parece limitar o seu avanço numa região onde o domínio de uma direita bastante radical (CSU e Freie Wähler) é “esmagador”, diz Chapoutot.

Após a reunificação da Alemanha em 1990 – insiste Chapoutot – os jovens do Leste voltaram-se para o nacionalismo, em resposta ao que consideraram um roubo de identidade face à dominação ocidental, após a queda da RDA.

O desemprego de 30%, a liquidação da indústria e do artesanato da Alemanha Oriental, a violência da “tomada do poder” (Übernahme) ou da “anexação” (Anschluss) pelas empresas da Alemanha Ocidental causaram um trauma social “cuja intensidade é difícil para nós medir , e cujas consequências culturais e políticas ainda estão bem vivas 35 anos depois”, acrescenta.

Helmut Kohl, chanceler democrata-cristão que liderou o processo de unificação, e o seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble (o mesmo que, anos mais tarde, imporia condições leoninas na renegociação da dívida grega, para salvar os bancos alemães comprometidos com esses empréstimos. ) permitiu que as empresas renunciassem à legislação laboral em troca de se estabelecerem no Leste. E tornaram-se um laboratório de “políticas sociais”, posteriormente impostas no Ocidente pelos sociais-democratas Gerhard Schröder e Peter Hartz, com as suas ofertas de “mini-empregos” para alemães desempregados.

Chapoutot recorda-nos a aproximação dos Verdes à CDU, os mesmos Verdes que constituem a atual coligação governamental com os Sociais Democratas e Liberais, e defendem uma política agressiva contra a Rússia.

Os liberais (FDP), cada vez mais extremistas nas suas posições conservadoras, assumem as propostas mais duras da AfD, diz Chapoutot. Tal como a extrema direita, o FDP é anti-ecologista, pró-negócios, anti-impostos, anti-normas… O corolário da proposta de redução de impostos é a destruição dos serviços públicos e o abandono das infra-estruturas.

É a extrema-direita alemã e europeia que, segundo as mais diversas estimativas, não só se consolidará na cena política europeia (no Parlamento, na Comissão e no Conselho) nas eleições do próximo mês de Junho, mas também se apoiará mais à direita, sem que seja necessário, para perceber o que está em causa, recorrer a “populismos”, ou à procura de posições mais extremas, porque não existem (mesmo que haja divergências sobre migração e alguma outra questão) .

As mesmas pessoas que lutam contra a Rússia, apoiam a Ucrânia e Israel, e pensam que para alcançar a paz devemos preparar-nos para a guerra, em vez de negociar uma paz que ofereça aos europeus (e ao resto do mundo) segurança e garantias de um desenvolvimento comum.

Não é necessário reforçar a capacidade europeia “para defender o mundo democrático, tanto para a Ucrânia como para a Europa”, como afirma Michel. O problema, desta vez, é que uma nova guerra europeia irá arrastar-nos a todos para baixo, pondo fim à humanidade tal como a conhecemos. Numa guerra como esta não haverá espectadores. Todos seremos vítimas.

Gilberto Lopes – Jornalista (Rio de Janeiro, 1948), com um mestrado em Ciências Políticas e um doutorado em Estudos da Sociedade e da Cultura, Universidad de Costa Rica. Seu livro mais recente é Crisis Política del Mundo Moderno (Uruk ed. CR)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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1 Comentário

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  1. O bicho-papão russo é claramente alimentado pelos gananciosos fabricantes de armas europeus e pelos amigos deles na imprensa. Os oficiais militares esfregam as mãos porque compras maiores de armas significam bons subornos. Todos marcharam felizes para uma guerra alimentada pela ganância, pela má-fé e por uma forte dose de desinformação. Isto aconteceu antes da Primeira Guerra Mundial, mas agora há um fator complicador: a guerra entre a OTAN e a Rússia será inevitavelmente nuclear. Mas os europeus parecem acreditar que não sofrerão as consequências desta catástrofe, coitados.

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