Sobre a patrulhagem ideológica no caso da rejeição por parecerista da CAPES a projeto de pesquisa da UnB, da UFRN e da UERJ

Sobre a patrulhagem ideológica no caso da rejeição por parecerista da CAPES a projeto de pesquisa da UnB, da UFRN e da UERJ

Na última semana, a comunidade científica brasileira se deparou com um lamentável caso de patrulhamento ideológico institucional. Um parecerista em serviço para a CAPES (Coordenação para o Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior) – órgão voltado, dentre outras competências, à análise e aprovação de solicitações de bolsas de estudo e pesquisa em nível universitário – negou sumariamente a concessão de suporte financeiro governamental ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa por considerar, reiteradamente, que o método materialista-dialético nele proposto não seria científico e que, subsequentemente, a pesquisa possuiria pouca relevância. Por fim, o parecerista ainda apelou ao que chamou de “bom senso” e, em texto conciso e eivado de equívocos de digitação e ortográficos, rejeitou a proposta em questão, argumentando ainda que os bolsistas já haviam recebido auxílio anteriormente.

A pesquisa em questão conta com professores e pesquisadores de três universidades públicas: a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No total, conta com 19 docentes, 9 doutorandos, 15 mestrandos e 27 graduados, e solicita o aporte de cerca de R$ 437 mil reais para desenvolver estudos com relação ao tema “Crise do Capital e Fundo Público: Implicações para o Trabalho, os Direitos e as Políticas Sociais”. De fato, alguns dos proponentes contaram com o apoio do chamado PROCAD entre 2006 e 2010, mas desde então não usufruíram dessa subvenção, ao contrário do postulado pelo parecerista. Mais ainda, cabe dizer que o edital de convocação nada dizia a respeito, do ponto de vista dos critérios de seleção, acerca da circunstância de a existência de apoio governamental a candidatos bolsistas no passado funcionar como aspecto favorável ou não à determinação da concessão de suporte nesse contexto. Simbolicamente, inclusive, vale notar que, dos 62 projetos aprovados, mais de 90% são das áreas de exatas e biomédicas – nenhum diz respeito, por exemplo, à área de Serviço Social.

O caso traz à tona uma coleção expressiva de impropérios ao pensamento científico, à seriedade acadêmica, à autonomia reflexiva e permite questionamentos – independentemente de constituírem este edital e este parecerista casos isolados – a respeito das eventuais escolhas que o governo acaba por fazer com relação às prioridades de investimento no interior da pesquisa universitária, bem como com relação ao grau de profissionalização dos próprios processos de contratação de analistas e pareceristas. Primeiramente, é evidente que a caracterização da postura do parecerista em questão muito dificilmente poderia ser compreendida de outra forma que não como a de um patrulhador ideológico, uma maneira de atuação que jamais poderia ter espaço em uma sociedade que se pretende democrática, plural e favorável ao conhecimento científico. Realizar qualquer questionamento com relação a um paradigma de interpretação da realidade que possui, no mínimo, quase dois séculos de existência por meio de uma crítica ensimesmada (vazia, como um dado ou um fato, sem desenvolvimento razoável, pelo parecerista, de uma réplica capaz de ser contestada) constitui um esforço pré-científico de desqualificação do dissenso e de promoção de um pensamento único, hegemônico e acrítico.

Trata-se exatamente do oposto do que se poderia ter como expectativa com relação à práxis científica. Não é preciso acreditar em visões mais heterodoxas a respeito da epistemologia da ciência (como a defesa, por exemplo, de Boaventura de Sousa Santos com relação à necessidade de reconhecimento dos saberes populares para a efetivação real de uma “ecologia de saberes” que transcenda os limites do conhecimento puramente científico) para se reconhecer a validade da reflexão materialista. Não é preciso, tampouco, admitir que as contribuições de pensadores como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Ruy Fausto, Michael Löwy e Leandro Konder – autores, dentre tantos outros na tradição brasileira, que se utilizaram largamente do materialismo histórico como encaminhamento metodológico para suas reflexões, como maneira de interpretarem a realidade e de buscarem transformá-la – sejam as mais adequadas ou axiologicamente superiores a de outros intelectuais em suas áreas. Basta apenas reconhecer a válida e aparentemente contraditória pretensão da ciência, a saber, a sua busca constante pela verdade e a consciência de que não há, ao mesmo tempo, uma verdade ou narrativa absoluta ou imutável. É da disputa entre interpretações que o conhecimento, em qualquer área, tem o potencial de ampliar sua capacidade compreensiva dos fenômenos observados. Com efeito, a negação desse postulado ainda dentro desse campo hermenêutico produz uma compreensão extremamente frágil de ciência.

Curiosamente, uma das minoritárias linhagens que questionou, historicamente, a validade científica do paradigma marxista foi o popperianismo, defensor de uma concepção altamente dedutivista sobre o fazer da ciência. Karl Popper argumentaria que uma teoria científica precisaria ser falsificável para que pudesse ser considerada como ciência, e diria, então, que o materialismo histórico não poderia ser falsificado, isto é, testado. No entanto, a pressuposição desse autor exporia a limitação de sua compreensão sobre o fazer científico como empirismo necessário e intrínseco, ao passo em que elaborações científicas fundamentais como as de Darwin e Einstein partiriam de construções lógicas para edificarem suas imensas contribuições ao conhecimento – o mesmo fundamento, grosso modo, do próprio marxismo, que lhe adicionaria o elemento histórico como fator analítico. Por sinal, em que pese a pretensão de neutralidade normativa das noções popperianas, suas ideias foram base para a constituição ou aperfeiçoamento de visões políticas de peso e consideradas extremadas por parte da própria academia, como foi o caso da chamada Escola Austríaca – que, curiosamente, elegeu o marxismo e o comunismo como seus grandes inimigos teóricos e políticos. O próprio Popper fundou, juntamente com Milton Friedman, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek a conhecida “Mont Pelerin Society”, marcada pela defesa do ultra (neo?) liberalismo.

Apesar de todas essas ponderações, não é possível a alguém que defenda minimamente os alicerces científicos dizer que mesmo as proposições popperianas não constituam um esforço científico, mesmo que delas se discorde profundamente. A circunstância de estarem baseadas em pressuposições ontológicas e assunções epistemológicas, ainda que possivelmente frágeis, as colocam como tópico a ser debatido (inclusive sobre o grau de fragilidade de seus postulados) e, portanto, como visões científicas em disputa, com grau de legitimidade próprio. É dessa não negação que se pode construir um fazer científico com pretensão de seriedade, o que não foi feito, obviamente, pelo parecerista em questão.

Cabe questionarmos, ainda que de forma introdutória, a respeito da consistência do projeto governamental (ou da CAPES, em particular) no que se refere às escolhas que levam ao desenvolvimento dos saberes científicos em território nacional. Mesmo que seja este um caso isolado, vale perguntarmos a respeito da qualidade dos profissionais contratados para analisar propostas de pesquisa, considerando-se o primarismo da argumentação trazida pelo dito parecerista. Aliás, em certo ponto do curto parecer – dentro do tópico sobre “Importância do projeto em níveis institucional, regional e nacional” –, ele comenta: “o consenso sobre a importância científica do projeto não é consensual”. Em outro trecho – sobre a relevância e originalidade da proposta –, escreve: “considerando a metodologia a ser empregada – cujos requisitos científicos não tem unanimidade – a proposta pode ser considerada pouco relevante”. Se em um argumento apela à tautologia, em outro apresenta uma noção absolutista de ciência e ainda expõe um entendimento falacioso, associando premissas não equivalentes como necessárias (a unanimidade e a relevância, o que é conhecido como “argumentum ad populum”). Diante de tanta pobreza discursiva, valeria questionar como ainda poderiam existir, com tamanha proeminência (e capacidade de rejeitar sólidas propostas de pesquisa acadêmica, como essa em questão), avaliadores com tamanho despreparo. Não há, é óbvio, reparo a se fazer sobre as sensibilidades ideológicas de cada um – ainda que, é claro, não seja possível, nem interessante, separar totalmente a visão de ciência e de conhecimento de um sujeito, todavia se espera que haja a capacidade de um servidor público ou de um contratado para atuar na esfera pública de se respeitar o dissenso – mas a leitura expressa pelo avalista não é apenas reacionária, mas pré-científica, uma postura que expressa entrave prático à produção científica.

Enfim, quando vemos que a esmagadora maioria dos projetos aprovados no âmbito desse edital diz respeito a temas que estão fora das chamadas ciências humanas, vale deixar o questionamento a respeito de qual é a pretensão do Governo Federal com essa escolha. Se o erro do parecerista pode eventualmente ser relativizado como um caso isolado (e até é importante termos a consciência de que a gestão pública, talvez diferentemente da natureza, não é infalível – muito pelo contrário –, esperando-se, é claro, que seja capaz de sanar seus equívocos), o absoluto predomínio na concessão de bolsas para pesquisadores das ciências naturais (em que pese a eventual qualidade de iniciativas propostas em outras áreas, bem como a expertise e o currículo de seus coordenadores) nos dá indícios, ao menos, da existência de uma certa predominância de uma visão tecnicizante e produtivista de fazer acadêmico em detrimento de uma práxis mais questionadora, mas não menos relevante em seu sentido de produzir o desenvolvimento brasileiro – estando aquele ancorado, necessariamente, contudo, na reflexão dos seus sentidos para seus destinatários, das suas finalidades e dos caminhos que precisa percorrer para que não ocorra como um fim em si mesmo, mas sim como uma estratégia para a emancipação social.

Esse constrangedor evento, então, pode ser uma oportunidade para que se acenda uma luz na crítica social a respeito dos encaminhamentos que a gestão pública federal está empreendendo com relação à produção de uma certa visão de país a partir daquilo que prioriza como fazer científico. Também é uma chance para melhor questionarmos a respeito do grau de profissionalização desses processos de seleção de projetos, bem como dos seus impactos sobre a própria configuração das universidades – que podem tender a direcionar cada vez mais seus esforços (e, até mesmo, as suas produções intelectuais em sentido ideológico) para atenderem aos critérios de financiamento, sejam eles sólidos ou não. É obvio, enfim, que a fragilidade desses mecanismos ou seu caráter indutivo terão efeito mais do que significativo – dada a evidente necessidade dos grupos de pesquisa de captarem recursos para a realização de seus trabalhos – no direcionamento dos projetos, do que se fazer, do que for visto como mais ou menos adequado e, em última instância, do que é certo ou errado. Trata-se de um poder de agenda intrínseco de uma agência de fomento. Uma concepção fechada de ciência, por conseguinte, pouco mais poderá produzir do que conhecimentos voltados à produção tecnológica (que podem ser úteis a uma certa leitura sobre o processo de desenvolvimento nacional, mas também enlatados ou acríticos, exatamente o contrário do que o Brasil precisa).

Considerando-se toda a repercussão que o caso relatado já possui, deixo aqui o link para o abaixo assinado, elaborado pelos coordenadores do projeto, para que os apoiadores venham a dar suporte à demanda de que a CAPES apresente esclarecimentos muito mais significativos sobre o acontecido, bem como, é claro, passe a efetivamente adotar uma política de promoção intransigente das liberdades teórico-metodológicas e de pesquisa (o que, convenhamos, constituiria uma requisição historicamente adequada para nosso período autoritário – e não para nosso momento democrático –, tamanho o descompasso epistemológico contido na avaliação de mérito supracitada): https://secure.avaaz.org/po/petition/Presidente_da_CAPES_Jorge_Guimaraes_Assegurar_a_liberdade_de_escolhas_teoricas_teoricometodologicas/?launch

 

 

Redação

4 Comentários

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  1. triste!
    Enquanto nao for reformulado ou extinto estes mostros, capes, finep e tantos mil como as fundacoes para resurgirem das cinzas e realmentes ficaremos refens dos abusos e covardia no mundo academico brasileiro.
    Muito boa a defesa.
    Me lembrou aquele caso do professor e pesquisador negro, tambem da area social que foi recusado pela banca para a Bahia.
    Isto eh que continua, como podemos ter inovacao, reformulacao de pensamentos, reforma politica, economica, social se avaliacao e parece sao dados por acasos ou grupos conservadores estabelecido junto com uma ditadura. A cara das nossas autoridade nestas areas, ciencias exatas e social, tem o perfil da ditadura, quer ou nao a maioria sao os phd filhos da exception. Todas as universidades federais e org de fomento.

  2. Pergunta aos pesquisadores

    Pergunta aos pesquisadores marxistas quantas pesquisas eles já rejeitaram por considerarem positivistas. Ninguém é mais especialista em patrulhamento ideológico na academia do que os marxistas. Mas agora o feitiço virou contra o feiticeiro. É bom saber que alguns marxistas hoje defendem a pluralidade do conhecimento.

    Querer implicar o governo nisso não passa de má fé. Pareceristas são acadêmicos tanto quanto os solicitantes; enquanto as pesquisas são aceitas e aprovadas, ninguém fala do governo. Basta ouvir um não e começa a gritaria. Ou seja, a negação faz parte do ritual tanto quanto a aprovação; se houvesse verbas para todos, não haveria edital.

    O próprio texto já diz muito da forma como alguns pesquisadores marxistas generalizam conclusões a partir de um ou poucos casos.Se o Serviço Social está se sentindo desprestigiado como área de produção de conhecimento, deveria dar mais consistência à denúncia. A rejeição de um único projeto de pesquisa não pode ser utilizada como parâmetro para isso. Não vejo nada demais que um dos muitos editais de financiamento priorizem áreas de pesquisa que o país esteja demandando mais no momento. Isso não significa que foram cortados todos os recursos para as demais áreas. Ou será que todos os pesquisadores de Serviço Social tivera seus projetos recusados? Não existem bolsas para alunos de pós-graduação em Serviço Social?

    Acredito que no caso em questão, os solicitantes devem recorrer da avaliação do mérito, a fim de garantir a pluralidade na produção do conhecimento. Mas a aprovação no mérito não garante a aprovação dos recursos, e isso é mais velho na CAPES e no CNPQ do que andar para frente.

    1. Lamentavelmente, seu

      Lamentavelmente, seu comentário contém uma série de falácias. Aliás, você comete exatamente o equívoco que imputa a mim, que é a generalização equivocada, ao dizer que “ninguém é mais especialista em patrulhamento ideológico na academia do que os marxistas”. Sério? Baseado em quê diz isso? Há pesquisas que subsidiam a sua afirmação? Você vivenciou ou observou um rol expressivo de experiências nesse sentido? Se não, sugiro não fazer tal colocação, sob o risco de cair em contradição com relação ao aspecto central de seu próprio argumento.

      Eu disse 3 (três) vezes no texto que não caberia julgar o governo lato sensu a respeito desse equívoco, mas sim que o caso em questão permitiria um questionamento sobre a política de fomento desenvolvida. Um questionamento, e não uma afirmação peremptória, conclusória. Será que posso fazer esse questionamento e estimular o debate? Será que o tom da sua crítica não contribui para tolher a discussão, tal qual a dita “patrulha marxista”? Não há generalização alguma no meu texto, nem disse que todos os recursos para uma ou outra área foram cortados de forma ampla, mas sim neste edital – que é relevante e representativo. Colocar dessa forma é como erguer um grande espantalho na frente dos meus argumentos e derrubá-lo. Não dialoga com o que efetivamente escrevi.

      É evidente que não há recursos para todos, por isso mesmo é necessário que haja critérios claros, sólidos e pactuados para a realização das análises das propostas. O fulcro do meu texto é exatamente esse, o questionamento sobre a validade dos critérios adotados pelo parecerista. A falta de consistência argumentativa do avalista observada fragiliza, sim, a lisura do processo, e é preciso pensar (podemos pensar?) em como aperfeiçoar esses mecanismos de seleção, profissionalizando de forma mais adequada os agentes que neles atuam. Sua acusação, alicerçada em falso argumento (o espantalho do parágrafo anterior) e subsumida no argumento de que ajo com má fé é um ad hominem bastante inadequado ao nível dos debates que espero encontrar neste espaço.

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