Um roteiro para a reconversão da indústria brasileira, pelo IEDI

Carta IEDI

Edição 995

Publicado em: 08/05/2020

Sumário

A indústria é um dos mais importantes motores do crescimento econômico, pelas inúmeras relações que estabelece com outros setores e entre seus próprios departamentos, e destacada fonte de novos produtos, novas tecnologias e novas formas de produzir, de maneira a alavancar a produtividade total da economia. É isso que indica boa parte das pesquisas que se debruçam sobre a economia real, isto é, sobre as atividades produtivas.

Por todos estes fatores, as grandes potências econômicas do mundo nunca abriram mão de estimular o desenvolvimento de suas competências industriais, por meio de um conjunto de ações e políticas que, inclusive, ganharam força nos últimos anos. Países desenvolvidos, como EUA, Alemanha e Japão, e os principais emergentes, como a China e a Índia, traçaram estratégias para fortalecer o setor industrial e tornar a indústria 4.0 uma realidade, como o IEDI enfatizou em vários de seus estudos.

No contexto atual de pandemia do coronavírus, a indústria, no mundo todo, vem dando mais uma mostra de sua importância estratégica para os países. Frente à interrupção de elos das cadeias globais de valor e, sobretudo, à dificuldade de obtenção de equipamentos e materiais médico-hospitalares, fundamentais para o tratamento dos sintomas da covid-19, a reconversão de linhas industriais de produção tem ajudado muitos países a atender o forte aumento de demanda de muitos produtos anteriormente importados.

A Carta IEDI de hoje mostra que, para não ficarem dependendo apenas da disputa de um lugar na fila de espera para a compra de suprimentos de saúde produzidos pela China, países como Alemanha, França, EUA, Japão, China e Reino Unido, somente para citar alguns exemplos, estão reunindo empresas e atores de seus sistemas de inovação para reconverter linhas de produção e fabricarem respiradores, ventiladores e equipamentos de proteção individual (EPI) para seus agentes de saúde. 

Algumas das medidas que estão sendo adotadas:

     •  Remoção de restrições regulatórias;

     •  Favorecimento da formação de consórcios voluntários;

     •  Estímulos a soluções inovadoras, como oo “Desafio do Ventilador” no Reino Unido;

     •  Nos EUA, por meio da Lei de Produção de Defesa, o governo impôs a reconversão compulsória a algumas empresas;

     •  Na China e no Japão, há apoio financeiro e fiscal para a reconversão.

No Brasil, empresas de diferentes setores, como máquinas e equipamentos, automóveis e autopeças, têxteis, química, higiene e limpeza, entre outros, também estão agindo nesta mesma direção. O movimento poderia ser mais robusto se políticas públicas ajudassem na coordenação, assegurando financiamento para cobrir os custos da reconversão, utilizando o pode de compra estatal e impulsionando o desenvolvimento de soluções inovadoras e eficazes.

Não se trata de voltar ao passado e tentar tudo produzir internamente, mas de aproveitar uma oportunidade para ocupar capacidade ociosa das empresas, em um momento em que seus mercados tradicionais praticamente desapareceram ou se reduziram muito, e ao mesmo tempo responder às necessidades da sociedade. 

A reconversão de linhas de produção certamente não evitará perdas intensas da indústria em 2020 no Brasil ou em qualquer outro país, mas pode trazer aprendizados importantes para as empresas e respostas inovadoras, cujos efeitos não se exaurem no curto prazo nem com o fim da pandemia do coronavírus. Aspectos positivos duradouros podem emergir deste movimento.

Três exemplos. No Japão, a empresa de cosmético de luxo a Shiseido, não apenas passou a produzir como desenvolveu uma fórmula para peles sensíveis. No Brasil, a Klabin em parceria com o Instituto Senai desenvolveu um espessante a base de madeira em substituição à matéria-prima derivada de petróleo utilizada para transformar o álcool líquido em gel. Na Alemanha, a Bosch em parceria com o laboratório britânico Randox, desenvolveu um teste ultrarrápido para covid-19, confiável em 95%, cujo resultado fica pronto em duas horas e meia.

Entretanto, como ressaltam os pesquisadores da Unido, na indústria manufatureira moderna, os processos de produção são altamente especializados na buscar por maximização da eficiência. Abordagens como a fabricação enxuta, que ajudam os fabricantes a eliminar o desperdício em toda a cadeia de suprimentos e a melhorar continuamente a produtividade, dificultam muito a criação de uma nova linha de produtos.

A rápida expansão da produção impõe, assim, não apenas um desafio tecnológico, mas também organizacional – do design e fabricação do produto à governança da cadeia de suprimentos, à regulamentação e aos testes. 

Além disso, as empresas ainda enfrentam riscos de superprodução ou desperdício, se aparecerem muitos novos participantes. Por meio de políticas de compras públicas em massa e coordenadas, segundo a Unido, os governos podem fornecer visibilidade de pedidos e garantia de que itens produzidos em excesso farão parte dos estoques nacionais.

Coronavírus e a insuficiência de equipamentos e materiais de saúde

O espraiamento da pandemia da covid-19 revelou uma realidade sombria: a maior parte dos países não estavam preparados para enfrentar uma emergência sanitária em larga escala. Além de os hospitais não estarem equipados com número suficientes de ventiladores e respiradores, máquinas essenciais para salvar vidas nos casos mais graves da Covid-19, os parques industriais domésticos não possuíam capacidade instalada necessária para atender rapidamente a ampliação da demanda. A grande maioria dos países se descobriu altamente dependente da importação desses equipamentos e/ou dos seus componentes.

Nos Estados Unidos, por exemplo, onde, em meados de março, havia 160 mil ventiladores instalados em unidades de terapia intensiva nos hospitais, aproximadamente metade foi fabricado por empresas estrangeiras. A outra metade foi fabricado por menos de uma dúzia de empresas americanas, incluindo gigantes como General Electric. Além disso, esse país contava com mais de 12.700 do Estoque Estratégico Nacional, um estoque de suprimentos médicos mantidos pelo governo federal para responder a emergências nacionais. 

O avanço da pandemia mostrou, contudo, que o número de ventiladores nos EUA não era suficiente, levando os governadores dos estados mais afetadas a pressionar o governo federal por ações com vistas à ampliação da produção doméstica, dado que as necessidades atuais do sistema de saúde do país excedem a capacidade de produção anual global que é de 40 mil a 50 mil máquinas1

Também se constatou insuficiência crítica de equipamentos de proteção individual (EPI) para as equipes de saúde, tais como aventais médicos descartáveis, viseiras e escudos de proteção facial, luvas, máscaras cirúrgicas, desinfetantes, bem como gel hidroalcoólico e máscaras para a população em geral. Outro gargalo no combate a pandemia é a insuficiência de kits de teste diagnóstico do Coronavírus. Em resposta à escassez, vários países zeraram a alíquota de IVA incidente sobre esses produtos e flexibilizaram as regras de importações. 

Alguns países proibiram as exportações desses itens, como no caso do Brasil e dos Estados Unidos, enquanto outros passaram a exigir autorização prévia de exportação, caso dos países da União Europeia. A Comissão Europeia estabeleceu, no dia 14 de março, exigência de autorização prévia, até 25 de abril, para exportações de certos EPI, tais como óculos e viseiras de proteção, protetores faciais, equipamentos de proteção bucal, roupas e luvas de proteção2. Todavia, coibiu os Estados-membros de vetar ou restringir severamente as exportações de dispositivos médicos3.  

A reconversão das linhas de produção

Inúmeros governos lançaram apelo para que as empresas ajudassem a suprir a escassez dos suprimentos críticos ao combate da pandemia. Para aumentar a oferta desses produtos, em alguns países, como Reino Unido e Estados Unidos, as autoridades de saúde removeram restrições regulatórias para permitir que os fabricantes de dispositivos médicos pudessem fazer alterações com mais facilidade nos produtos já existentes e para possibilitar que outras empresas industriais redirecionem mais facilmente as suas linhas de produção.  

Enquanto países, como a Alemanha e Reino Unido, favoreceram mecanismos como a formação de consórcios voluntários de empresas, os Estados Unidos invocaram a Lei de Produção de Defesa (DPA), instituída em 1950 na época da Guerra da Coreia, que concede ao governo federal poderes para requisitar fábricas e/ou exigir que as empresas aceitem e priorizem contratos governamentais. Em contraste, países como a China e o Japão, forneceram apoio financeiro e fiscal para ajudar os fabricantes a aumentar sua capacidade existente e redirecionar as linhas de produção. 

Segundo os pesquisadores do Instituto da Indústria (IfM) da Universidade de Cambridge4, o Japão forneceu subvenção financeira da ordem de ¥ 30,6 milhões (aproximadamente US$ 287 mil) por linha de produção para redirecionar as capacidades de fabricação existentes para a produção de máscaras essenciais relacionados à proteção e contenção do COVID-19. 

A China, além de conceder empréstimos a empresas que produzem suprimentos essenciais relacionados à proteção e contenção do COVID-19, como máscaras, roupas médicas, máquinas de desinfecção, soluções desinfetantes e termômetros infravermelhos, fornece financiamento para pedidos de patentes e marcas comerciais relacionadas às tecnologias usadas na prevenção e controle da epidemia, e criou uma plataforma de informações para empresas de alta tecnologia que desenvolvem esse tipo de tecnologia. Ademais, permitiu dedução no imposto renda corporativo de 100% dos gastos com investimentos em equipamentos para expandir a capacidade de produção5

No Reino Unido, além de reforçar a importação, o Primeiro Ministro Boris Johnson fez um apelo, em 16 de março de 2020, às empresas para que ajudassem a fabricar, projetar e construir milhares de ventiladores para auxiliar o Sistema Nacional de Saúde (NHS) na luta contra o COVID-196. Com o “Desafio do Ventilador”, o governo recebeu mais de 5 mil ofertas, incluindo projetos de novos modelos de ventiladores. Com base nos requisitos mínimos definidos pela Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde (MHRA), o governo selecionou algumas propostas de empresas e consórcios para a fabricação acelerada de diferentes modelos de ventiladores, sujeitos a aprovação nos testes e ensaios clínicos. 

A partir desses esforços, o NHS já conta com 6.745 ventiladores adicionais, entre ventiladores invasivos e não invasivos. Em 28 de abril de 2020, o número de ventiladores disponíveis no Reino Unido totalizava 15.300. Mas o governo mantém a estratégia de aumentar a disponibilidade meio de sua estratégia de três pilares: adquirir mais ventiladores do exterior, aumentar a produção de modelos existentes e/ou modificados e trabalhar para projetar e fabricar novos dispositivos7.

Nos Estados Unidos, o governo federal solicitou às empresas que aumentassem a produção de EPI, de ventiladores e outros dispositivos médico-hospitalar. Porém, incomodado com a demora das empresas em ampliar rapidamente a produção, o presidente Trump, invocando a Lei de Produção de Defesa (DPA), anunciou, no dia 27 de março, que o governo federal usará de toda a sua autoridade para requisitar as fábricas e cadeias de suprimentos da General Motors, para produzir ventiladores. 

Trump também utilizou o DPA para obrigar, no dia 2 de abril, a General Electric, Hill-Rom, Medtronic, ResMed, Royal Philips, Vyaire Medical, 3M a ampliarem e/ou redirecionarem a produção para itens escassos necessários no combate da Covid-198. No caso específico da 3M, o presidente norte-americano determinou que a empresa interrompa suas exportações para o Canadá e América Latina de respiradores fabricados em suas instalações nos Estados Unidos. 

O anedótico é que todas essas empresas ou já estavam ampliando suas produções ou se consorciando com outras para produzir os suprimentos críticos. Por exemplo, a divisão de equipamentos hospitalares GE Healthcare já havia se unido à Ford para produzir 50 mil ventiladores até 4 de julho (12 mil até o final de maio), enquanto a GM havia recém-anunciado planos de fabricar ventiladores de terapia intensiva, em parceria com a Ventec Life Systems, nas suas fábricas de componentes automotivos no estado de Indiana. 

Alguns exemplos de redirecionamento da produção

Para atender à necessidade urgente de produtos para combater a disseminação da Covid-19, inúmeras empresas industriais em todo mundo estão se mobilizando e, em alguns casos, estão reorientando temporariamente, e de modo voluntário, sua produção para atender às necessidades urgentes de produtos críticos vinculados à pandemia. 

Como destacam os analistas do Fórum Econômico Mundial9, as motivações são variadas, incluindo garantir a continuidade dos negócios, melhorar a resiliência de sua cadeia de suprimentos ou dinamizar formas inovadoras de gerar receitas. Esse fenômeno está ocorrendo nos mais variados setores industriais, desde o setor de bebidas aos setores automotivo e aeroespacial, passando por indústrias de cosméticos de luxo, têxteis, eletroeletrônica, farmacêuticas e químicas.

No Reino Unido, em resposta ao desafio lançado pelo governo para a fabricação ventiladores médicos, foi formado um consórcio sob a coordenação da Catapulta High Value Manufacturing, uma organização pública de pesquisa e tecnologia. Integram esse consórcio importantes empresas industriais, de tecnologia e engenharia do Reino Unido dos setores aeroespacial, automotivo e médico, tais Airbus, Ford, Siemens Healthineers, Siemens UK, Rolls-Royce, entre outros, bem como as equipes de Fórmula 1 baseados no Reino Unido, Haas F1, McLaren, Mercedes, Red Bull Racing, Racing Point, Renault Sport Racing, Williams. Atuam como facilitadores-chaves do consórcio, as multinacionais de informática Microsoft, Accenture, entre outras. 

De acordo com informações disponíveis no site do consórcio, em 16 de abril de 2020, as empresas já haviam recebido pedidos formais do governo britânico acima de 15.000 unidades e trabalhavam com a meta de produzir 1.500 unidades semanais de dois modelos de ventiladores10. Outros consórcios como o KCL, Oxford University and Smith+Nephew não tiveram os seus designs aprovados pelo Painel Clínico, criado pelo governo britânico11

Também na França, foi criado um consórcio entre as empresas Air Liquide, o grupo PSA, que reúne as empresas automotivas Peugeot e Citroën, Schneider e Valéo para produzir 10 mil respiradores artificiais entre 1º de abril e meados de maio. A Air Liquide já produz respiradores artificiais, mas sua capacidade de produção atingiu, desde o início da pandemia, o seu limite que é de mil respiradores por mês.

Nos Estados Unidos, como já mencionado, não obstante iniciativas voluntárias de empresas industriais para ampliar a produção de suprimentos críticos, o governo usou o DPA para forçar ou apressar a colaboração. Assim, nos dias 8 e 16 de abril, o Departamento de Saúde e Serviço Humano (DPHHS) anunciou, sob a égide do DPA, três contratos de produção de ventiladores, em um total 125.500 unidades no valor total de US$ 1,47 bilhão, que serão destinados ao Estoque Nacional Estratégico12

O primeiro contrato, com a montadora GM, estabelece a produção de 30.000 ventiladores, a um preço total de US$ 489,4 milhões, que serão entregues até o final de agosto de 2020, com entrega parcial de 6.132 ventiladores até 1º de junho de 2020. O segundo contrato foi estabelecido com a empresa Philips, a um preço total de US$ 646,7 milhões, para produção de 45.500 ventiladores, com entrega escalonada de 2.500 ventiladores ao até o final de maio de 2020 e um total de 43 mil ventiladores a serem entregues até o final de dezembro de 2020. O terceiro contrato, anunciado no dia 16, foi com a General Eletric para a produção de 50 mil ventiladores até 13 de julho, a um preço total de US$ 336 milhões.

No Brasil, Associação Brasileira dos Fabricantes de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) criou um grupo com 50 empresas associadas para a produção de peças, partes e equipamentos médicos. As empresas irão produzir desde ventiladores pulmonares a escudos de proteção facial, bem como peças, insumos e componentes, auxílios em sistemas de montagem, serviços de usinagem, corte a laser de peças e testes de validação. A multinacional alemã Thyssenkrupp Autômata, que fabrica peças para a indústria aeronáutica em Taubaté (SP), irá produzir um total de 120 mil máscaras do tipo “face shield13

A forte demanda por álcool e gel desinfetante levou, por exemplo, empresas de vários setores industriais, como perfumaria, artigos de beleza, bebidas, produtos farmacêuticos e químicos, a reorganizarem parte de sua produção para atender a necessidade de hospitais, clínicas, asilos e do setor de distribuição de alimentos. É o caso, por exemplo, da Kablin, do setor de papel e celulose, que, em parceria com o Instituto Senai, desenvolveu um espessante a partir de madeira para substituir matéria prima derivada de petróleo para transformar álcool líquido em álcool em gel14.

No Japão, a empresa de cosmético de luxo a Shiseido, além de ter passado a produzir de gel hidroalcoólico tanto no mercado doméstico como na França e nos Estados Unidos, desenvolveu uma fórmula para peles sensíveis, já aprovada pelo Ministério da Saúde do Japão. A produção mensal de 100 mil litros será iniciada em maio em quatro fábricas domésticas e será vendida exclusivamente para hospitais japoneses por intermédio do governo15.

De igual modo, em diversos países, inúmeras empresas do setor têxtil reorientaram suas linhas de produção para fabricar máscaras e aventais cirúrgicos. No Brasil, por exemplo, pelo menos 50 grandes empresas do setor têxtil redirecionaram suas linhas de produção para fabricar máscaras de pano, de uso para a população geral. O mesmo está ocorrendo com empresas de menor porte, como as do polo têxtil da região de Nova Friburgo no estado do Rio de Janeiro, onde cerca de 260 fábricas realizaram conversão das suas linhas de produção de roupa íntima para a confecção de EPI16

Nos Estados Unidos, também empresas de material esportivo, como a Nike e a Fanatics, converteram suas fábricas para a produção, respectivamente, de protetores faciais e respiradores que purificam o ar, e aventais médicos e máscaras descartáveis17.

Na Alemanha, a existência de fabricantes nacionais de reagentes e dispositivos permitiu que o país adotasse desde o dia 27 de janeiro de 2020, quando o primeiro caso foi identificado, a estratégia de teste de diagnóstico da Covid-19 em massa. Desde então, foram feitos 500 mil testes diários do tipo RT-PCR, com base na sequência de RNA desenvolvida pelo Charity Hospital de Berlim. 

O laboratório TIB Molbiol de Berlim foi um dos primeiros a comercializar testes na Alemanha e no mundo. Porém, para aumentar ainda mais o ritmo e a capacidade de teste disponível, a divisão Healthcare Solutions da Bosch, em parceria com o laboratório britânico Randox Laboratories, anunciou no 26 de março, ter desenvolvido em apenas seis semanas um teste ultrarrápido, confiável em 95%, cujo resultado fica pronto em duas horas e meia18

Não obstante os esforços de produção do setor industrial, diversos países, inclusive desenvolvidos, ainda enfrentam severa escassez de equipamentos de proteção, de ventiladores e respiradores, kit para testes e outros suprimentos médicos críticos. Como ressaltam os pesquisadores da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido)19, embora a reorientação das linhas de produção seja uma solução de resposta rápida para atender à escassez global de itens críticos do COVID-19 que podem salvar vidas aproveitando a capacidade ociosa da indústria, essa estratégia temporária pode ser cara e cheia de desafios, o que explica os resultados limitados até o momento. 

Dificuldades e desafios da reconversão industrial

A capacidade de resposta das empresas industriais aos apelos dos governos esbarra, não só na dependência de insumos importados, como na súbita e gigantesca demanda. Um dos maiores fabricantes de ventiladores do mundo, a empresa suíça Hamilton Medical, declarou ao jornal New York Times20, que, mesmo tendo contratado novos funcionários, de uma encomenda de 7 mil ventiladores feita pela Itália, a empresa só pode entregar 400. O aumento substancial da produção em um curto período de tempo de máquinas complexas, compostas por centenas de peças menores produzidas por empresas em todo o mundo, é extremamente difícil. 

Como ressaltam os pesquisadores da Unido, na indústria manufatureira moderna, os processos de produção são altamente especializados e as empresas buscam maximizar a eficiência. Abordagens como a fabricação enxuta, que ajudam os fabricantes a eliminar o desperdício em toda a cadeia de suprimentos e a melhorar continuamente a produtividade, dificultam muito a criação de uma nova linha de produtos.

Ademais, os graus de dificuldade enfrentados pelas empresas para a ampliação da produção ou para reconversão das linhas de produção para a fabricação dos produtos necessários ao combate do Coronavírus variam com a complexidade do produto a ser fabricado. 

É mais fácil para empresas do setor de bebida fabricar álcool ou para os setores químico e de perfumaria e cosmético reconverterem suas fábricas para produzir desinfetante e álcool gel, do que para empresas automotivas, metalúrgicas e de eletrodomésticos modificarem suas linhas de produção para fabricar escudos protetores, ventiladores e respiradores etc., que exigem conformidade com as normas das autoridades de saúde e são, como no caso dos ventiladores, de média a alta complexidade. O tempo necessário para executar a conversão das linhas de produção aumenta com a complexidade do produto. 

Outro desafio importante nesse contexto da pandemia e explosão da demanda é encontrar e qualificar rapidamente os fornecedores. Nem sempre a base de fornecedores existente pode ser aproveitada para evitar processos de integração prolongados. Ademais, no caso de empresas que não são produtoras de tecnologia médica, redirecionar as linhas de produção para fabricar ventiladores para as unidades de terapia intensiva é bastante complexo, exigindo, portanto, não só parceria com empresas fabricantes desse tipo de equipamento como compartilhamento de propriedade intelectual. 

Além disso, as empresas fabricantes de dispositivos médicos precisam ser registradas nos reguladores relevantes. Mesmo que algumas regulamentações tenham sido flexibilizadas, dispositivos médicos complexos, como ventiladores, ainda devem cumprir padrões rigorosos. O cumprimento desses padrões requer um ensaio clínico completo, que é demorado e caro. 

De acordo com os pesquisadores da Unido, estabelecer um sistema de controle de qualidade para produção em massa é outro obstáculo para aumentar a produção. Podem ser necessárias várias novas execuções de teste, o que exigirá recursos significativos para produzir documentação do processo, estabelecer controles de segurança e verificar a qualidade dos suprimentos.

Porém, segundo eles, a rápida expansão da produção não é apenas um desafio tecnológico, mas requer novas capacidades organizacionais – do design e fabricação do produto, à governança da cadeia de suprimentos, à regulamentação e aos testes. Por esse motivo, o redirecionamento das linhas de produção continua sendo um desafio, mesmo para itens tecnologicamente menos complexos, como máscaras. 

Os pesquisadores da Unido destacam ainda que, embora seja crucial no enfrentamento da escassez global de itens críticos da Covid-19, o redirecionamento de linhas de produção não é uma estratégia de longo prazo e os governos precisam apoiar as empresas na eventual transição para tempos “normais”. 

Segundo eles, entre as empresas incumbentes há preocupações legítimas sobre superprodução ou desperdício, se aparecerem muitos novos participantes. Por meio de políticas de compras públicas em massa e coordenadas, os governos podem fornecer visibilidade de pedidos e garantia de que itens produzidos em excesso farão parte dos estoques nacionais.

Notas

1  Nicholas Mulder. How the Coronavirus War Economy Will Change the United States and the World Forever, Foreign Office, March 26, 2020. Disponível em https://foreignpolicy.com/2020/03/26/the-coronavirus-war-economy-will-change-the-world/.

2  KPMG. European Union – Government and institution measures in response to COVID-19, 24 April 2020. Disponível em https://home.kpmg/xx/en/home/insights/2020/04/european-union-government-and-institution-measures-inresponse-to-covid.html.

3  European Commission, COVID-19: Commission sets out European coordinated response to counter the economic impact of the Coronavirus. Brussels: European Commission Press Release, 13 March 2020.

4  Jennifer Castaneda-Navarrete, David Leal-Ayala, Carlos López-Gómez, e Michele Palladino. COVID-19: International manufacturing policy responses. Institute for Manufacturing (IfM), University of Cambridge, 07 April 2020. Disponível em https://www.ifm.eng.cam.ac.uk/uploads/ECS/Policy_Links/2020-04-07-COVID19A.pdf.

5  OCDE – Tax and Fiscal Policy in Response to the Coronavirus Crisis, Paris: OCDE, 15 April 2020. Disponível em https://www.oecd.org/tax/tax-policy/tax-and-fiscal-policy-in-response-to-the-coronavirus-crisis-strengthening-confidence-and-resilience.htm.

6  UK Government. UK Government Ventilator Challenge. Disponível em: https://www.gov.uk/government/topical-events/coronavirus-uk-government-ventilator-challenge.

7  UK Government. Update on the Ventilator Challenge, 28 April 2020. https://www.gov.uk/government/news/update-on-the-ventilator-challenge .

8  Yelena Dzhanova. Trump compelled these companies to make critical supplies, but most of them were already doing it, CNBC, APR 3 2020. Disponível em https://www.cnbc.com/2020/04/03/coronavirus-trump-used-defense-production-act-on-these-companies-so-far.html.

9  Francisco Betti Thierry Heinzmann. From perfume to hand sanitiser, TVs to face masks: how companies are changing track to fight COVID-19. World Economic Forum, 24 Mar 2020 up dated on 13 April 2020. Disponível em https://www.weforum.org/agenda/2020/03/from-perfume-to-hand-sanitiser-tvs-to-face-masks-how-companies-are-changing-track-to-fight-covid-19/.

10  Ventilator Challenge UK Consortium. https://www.ventilatorchallengeuk.com/.

11  UK Government. Update on the Ventilator Challenge, 28 April 2020. Disponível em https://www.gov.uk/government/news/update-on-the-ventilator-challenge.

12  Department of Health and Human Services. Informações disponíveis em https://www.hhs.gov/news .

13  Ana Paula Machado. Abimaq cria grupo para produzir produtos médicos. Valor Econômico, 23/04/2020. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/23/abimaq-cria-grupo-para-produzir-produtos-medicos.ghtml.

14  O Estado de S. Paulo (05/05/2020) “Produção local de componentes cresce”..

15  Nana Shibata. Japan’s cosmetics makers and distillers rush to make sanitizers, Nikkei Asian Review, April 23, 2020. Disponível em https://asia.nikkei.com/Spotlight/Coronavirus/Japan-s-cosmetics-makers-and-distillers-rush-to-make-sanitizers.

16  Ítalo Nogueira. Fábricas de roupa íntima passam a produzir máscara contra Covid-19 no Rio. Folha de S. Paulo, Cotidiano, 22/04/2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/fabricas-de-roupa-intima-passam-a-produzir-mascara-contra-covid-19-no-rio.shtml.

17  Samuel Stebbins e Grant Suneson. Coronavirus relief: 30 companies helping Americans fight COVID-19, USA Today, April 21, 2020. Disponível em https://www.usatoday.com/story/money/2020/04/21/companies-that-are-helping-americans-fight-covid-19/111565368/.

18  Gwénaëlle Deboutte. Le secret de l’Allemagne pour réaliser 500 000 tests du Covid-19 par semaine, Usine Nouvelle, 27/03/2020. Disponível https://www.usinenouvelle.com/editorial/le-secret-de-l-allemagne-pour-realiser-500-000-tests-du-covid-19-par-semaine.N946526.

19  Carlos López-Gómez, Lucia Corsini, David Leal-Ayala and Smeeta Fokeer. COVID-19 critical supplies: the manufacturing repurposing challenge. Unido, April 20. Disponível em https://www.unido.org/news/covid-19-critical-supplies-manufacturing-repurposing-challenge.

20  Sarah Kliff, Adam Satariano, Jessica Silver-Greenberg e Nicholas Kulish. There aren’t enough ventilators to cope with the Coronavirus. New York Times, March 18, 2020. Disponível em https://www.nytimes.com/2020/03/18/business/coronavirus-ventilator-shortage.html.

 

Luis Nassif

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  1. Isso exige, de um lado, Lula, JK ou Getúlio; e outro, Roberto Simonsen. Nenhum deles está disponível, em especial no lado Roberto Simonsen

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