A inteligência política de Lula regida pela pragmática tem seu preço, por Maria Betânia Silva

Ficou bem claro que Lula adota um modelo de desenvolvimento focado na conquista de bens materiais e baseado apenas no sucesso individual.

Ricardo Stuckert

do Coletivo Transforma MP

A inteligência política de Lula regida pela pragmática tem seu preço

por Maria Betânia Silva

Na semana passada Lula fez  um discurso na Fiesp para acalmar os corações e o ambiente. Mais precisamente, os corações dos defensores do meio ambiente.

Lançou a ideia de carro popular mais barato, menos poluente que é um projeto para impulsionar a economia, considerando a cadeia produtiva que envolve a fabricação de automóveis.

Ou seja, ele reedita uma política  baseada na indústria automotiva, como já fizera no passado, a isso agregando como se fosse acessório necessário, um carro menos poluente.

A preocupação com o ambiente natural no caso é contemplada na compra do veículo com um item  obrigatório vindo de fábrica: um dispositivo menos poluente.

Nessa esteira, Lula se alinha à lógica vigente nos países ditos desenvolvidos que incorporam a preocupação ambiental a uma sociedade cada vez mais tecnologizada no domínio da autonomia individual, sem que isso implique necessariamente redução de resíduos poluentes e um real compromisso com o planeta ou com as gerações futuras.

O carro continua a ser destaque e o seu  uso não tão poluente, uma conquista. A sua fabricação, contudo, não o é.  Mas isso é mero detalhe.

A diferença  entre o que pode ser feito no BR nesse aspecto e os países ditos desenvolvidos é que, nesses países, o transporte coletivo ainda resiste em condições razoáveis, como um legado do estado de bem estar social que tiveram e que o BR quase conheceu somente nos 13 anos dos governos do PT, como algo transitório e solúvel como um nescafé.

Para mim, ficou bem claro que Lula adota um modelo de desenvolvimento focado na conquista de bens materiais e baseado apenas no sucesso individual.

Não me surpreende que o faça, mas receio que esteja perdendo o bonde da História. O que seria uma grande pena dada a sua envergadura como líder humanista que é. A rigor, parece perder o bonde para  a História instauradora de um novo paradigma. Mas, seria muito esperar isso dele, né? Ele é o próprio sucesso individual a ser projetado em cada um de nós. E embora não haja  nada de errado nisso, trata- se de algo insuficiente.

Não há, no caso, uma concepção de desenvolvimento focada no coletivo como “a alma do negócio”.

O coletivo dependerá da felicidade individual de ter um carro na garagem enquanto o MST – se sobreviver à CPI e acho que vai – produz a comida orgânica em concorrência com a toxicidade do agro, importante peça na balança comercial do país. Estaremos, assim, na trilha de fazer com que nosso povo adquira o “padrão de vida europeu”. Essa é a aposta.

Só resta saber quanto tempo os recursos naturais do BR poderão sustentar esse modelo para o povo brasileiro e para as empresas européias que terão algum interesse em explorar/comprar matéria-prima e/ou exportar peças automotivas, para garantir sua manutenção nos seus próprios países.

Mais do que isso, o discurso de Lula revelou algo que talvez nem tenha chamado a atenção de  muita gente… Lula delegou  a Alckmin papel de empreendedor, ao dizer que caberia a ele, no próximo ano, sair pelo mundo “vendendo” “nossos  projetos”.

Particularmente, eu acho que Lula deixou claro qual é o lugar que a proteção ambiental ocupa no seu governo: uma proteção secundária, não é a prioridade. É uma agenda necessária, mas torná- la prioridade é coisa para o futuro. Ele poderá, assim, concluir seu mandato glorificado pela direita e por uma esquerda menos esquerdista.

Lula se mostra cada vez mais perspicaz com o seu pragmatismo político, evitando assumir que trilha o rastro do neoliberalismo, talvez porque esse sistema tenha chegado ao ponto de não retorno no mundo atual e nesse ponto permanecerá por décadas.

É como se a única saída para o Brasil fosse se tornar a Europa das Américas e não algo diferente daquele continente.

Não diria que Lula está totalmente errado. Não! Ele trilha o caminho que enxerga como o único possível.

Problema meu não ficar alegre com essa trilha.

Boa parte da sociedade, acredito, ficará realizada e feliz quando começar a adquirir  o seu carrinho ” verde”. Não importa que venha a se irritar com o tempo perdido  no engarrafamento ou com os alagamentos, ou com o aumento da temperatura, ou, ainda, com a perda da safra de uvas.

A irritação é passageira, o sentimento de sucesso material, não! Isso é o que dá a certeza de que a vida de trabalho individual vale e valeu a pena. O indivíduo é o cara como o Sujeito universal e potente.

Fico com a impressão de que o sonho de mudança para um mundo cuja construção coletiva possa ter, por exemplo, inspiração nas experiências de vida mais duradoura como aquelas de resistentes comunidades indígenas ou mesmo africanas, alimentadas na perspectiva decolonial, não é mais sustentável a médio prazo. Esse sonho não tem mais como prosperar.

As condições objetivas do mundo estão dadas: enquanto houver recursos naturais a serem explorados que os exploremos. Devo, por isso, me  resignar a essa realidade que não coincide com os meus sonhos e oscila entre eles e o pesadelo.

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada e integrante do Coletivo Transforma MP.

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Redação

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