Até onde vai o ativismo judicial?, por Gustavo Roberto Costa

A independência do Judiciário (no sentido de não ser suscetível a pressões) é essencial. Mas será que a independência do povo também o é?

5.0.2

do Coletivo Transforma MP

Até onde vai o ativismo judicial?

por Gustavo Roberto Costa

Diz a Constituição Federal de 1988, já no parágrafo único de seu artigo 1º, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (…)”. As formas de exercício do poder, portanto, são duas: (i) por representantes eleitos ou (ii) diretamente. Não há uma terceira forma.

Como o Brasil é um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), por democrático só pode ser entendido o que fortalece o exercício do poder pelo povo (ainda que indiretamente, por representantes eleitos). Se decisões estatais são tomadas à margem da vontade popular, não se poderá falar em democracia.

Atualmente, trava-se uma verdadeira batalha das instituições nacionais em nome da defesa da democracia. Nessa seara, tem ganhado relevância a atuação heterodoxa dos tribunais superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Decisões – muitas das quais monocráticas e sem provocação – são dirigidas aos supostos detratores da democracia: aqueles que atacam as instituições, que atentam contra regime democrático e até a aqueles que questionam a validade do processo eleitoral.

Os exemplos são muitos: inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, processamento e julgamento de pessoas sem foro por prerrogativa de função na mais alta corte do país, cassação de parlamentares (como nos casos dos deputados Francischini e Deltan Dallagnol) e, mais recentemente, a declaração de inelegibilidade do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (só para citar alguns casos).

Não se pretende adentrar o detalhe de cada decisão – o que, infelizmente, envolve paixões e fanatismos. O debate jurídico, em ambos os lados, está totalmente interditado. O comportamento de torcida organizada tomou conta dos juristas e operadores do direito. Mas abordar ao menos a questão principiológica deste tipo de atuação parece-me de pertinência relevante.

Não é demais lembrar que o Poder Judiciário não é composto por membros eleitos. A esmagadora maioria dos juízes ingressa na magistratura por meio de concurso público, nos tribunais há indicações de advogados e membros do Ministério Público e nos tribunais superiores prevalece a indicação pelo chefe do Poder Executivo, com uma posterior sabatina pelo Senado Federal. Ainda que esta última forma possa conter uma certa legitimidade democrática (em razão da participação dos poderes executivo e legislativo), não se pode negar que não se trata de cargos exercidos por pessoas eleitas.

O Poder Judiciário, nesta linha de ideias, é o mais antidemocrático dos poderes. Trata-se de uma burocracia tecnicista, na maior parte das vezes muito distante da realidade da maioria do povo (os rendimentos dos magistrados e membros do Ministério Público são provas cabais disto). Por serem cargos exercidos com a garantia da vitaliciedade, suas funções não estão sujeitas a escrutínio público.

Em outras palavras: o Judiciário não presta contas de sua atuação a ninguém. O povo (verdadeiro detentor do poder) não tem meios para se manifestar sobre sua concordância ou discordância a respeito das decisões tomadas por este poder. A independência do Judiciário (no sentido de não ser suscetível a pressões indevidas) é essencial. Mas será que a independência do povo também o é?

Eis que, por uma manobra retórica (a defesa da democracia e das instituições democráticas) o Poder Judiciário arvorou-se na qualidade de salvador da pátria. Com argumentos jurídicos mais ou menos sofisticados, juízes dos tribunais superiores têm decidido sobre o destino dos rumos eleitorais do país. Suas decisões têm sido responsáveis pela cassação não só de deputados, mas dos milhares de eleitores que os escolheram para representá-los.

No caso do ex-presidente Bolsonaro, a decisão de cinco juízes que não foram eleitos está valendo mais que 58 milhões de pessoas que votaram nele nas últimas eleições. Esse é um fato objetivo. Pode o ordenamento jurídico brasileiro admitir tal excrescência? Se o poder emana do povo, como que 58 milhões de pessoas podem ter sua escolha política (por pior e mais errada que seja) ignorada dessa forma?

Se juízes (não escolhidos por ninguém) podem suplantar a vontade de parte significativa da população, não estamos falando de algo democrático. Não parece convincente o argumento de que há necessidade da adoção de atos extraordinários para defender a democracia. Se é necessária a instauração de um estado de exceção para defender a democracia é porque ela já não tem mais salvação. É porque seus meios de autodefesa já não funcionam.

Além do mais, depois que o pitbull é solto não tem mais como prendê-lo novamente. Foi dada ao Poder Judiciário a prerrogativa de ser o poder moderador da república, e o problema tende a se agravar. Enxurradas de ações judiciais entupirão, no futuro, o sistema de justiça, a fim de questionar candidaturas e diplomações, fazendo com o que o protagonismo do Judiciário aumente cada vez mais, até o ponto em que o voto popular já não valha mais nada. Hoje é um político que eu não gosto, mas e amanhã?

Quem enche a boca para falar em defesa da democracia deveria se preocupar em aumentar os mecanismos de participação popular no funcionamento do regime jurídico. Toda e qualquer decisão que retire poder do eleitorado e passe-o ao Judiciário é uma decisão, por princípio, antidemocrática. A não ser que entendamos – como os reacionários repetem à exaustão – “que o povo não sabe votar”, e, portanto, precisa de cidadãos iluminados para apontar os rumos corretos da nação.

Melhor é que o povo decida, ainda que decida erroneamente. Faz parte da luta política. O sistema eleitoral permite que eventuais erros sejam revistos e corrigidos no futuro. Mas, se as decisões couberem ao Judiciário (com seus cargos vitalícios), erros dificilmente serão revistos, e corre-se o risco de injustiças se protraírem no tempo. Nas eleições, ao menos a cada quatro anos o candidato precisa se reapresentar e prestar contas de sua atuação. E os juízes?

A juristocracia já demonstrou mais de uma vez que age conforme as circunstâncias. Já mudou entendimentos sedimentados por pressões políticas. Já influenciou decisiva e negativamente em eleições gerais. Já avalizou golpes de estado e já decidiu inúmeras vezes em desfavor do povo trabalhador.

A democracia, sem que o poder emane do povo, não passa de retórica vazia.

Ou então, proponhamos uma emenda ao parágrafo único do artigo 1º da Constituição, a fim de que fique assim redigido:

“Todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos, desde que tudo seja avalizado e confirmado posteriormente pelo Poder Judiciário”.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

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