Quanto será que já venderam do nosso Brasil em “tenebrosas transações”?, por Rute Bevilaqua

Note-se que não perdemos soberania só com a venda de terras para estrangeiros. Com a terra entregue frequentemente, também, vai o subsolo e a água.

Quanto será que já venderam do nosso Brasil em “tenebrosas transações”? 

por Rute Bevilaqua 

Era uma foto, apenas uma foto de um buracão escuro cercado de gravetos numa avenida movimentada. Mas foi a foto dessa “cratera imensa que se apossou do centro de Manaus”, que me fez fazer esta viagenzinha ao passado.

De repente, estava em 1967-1968, quando, numa ditadura nada transparente, “comunistas” protestavam, também, contra a entrega da Amazônia, representada pelo Projeto Jari.  Este era visto, por muitos brasileiros, como indesejável ao país, uma ameaça à soberania nacional. O grande sociólogo Otávio Ianni chegou a considerá-lo como “um enclave estrangeiro criado com a proteção econômica e política da ditadura”.

Os militares tinham autorizado o investidor bilionário norte-americano, Daniel Ludwig, a realizar seu ambicioso sonho de exploração da floresta amazônica às margens do Rio Jari, onde ele tinha comprado uma área comparável à do estado de Sergipe. Ali, ele pretendia instalar uma fábrica de celulose, trabalhar com reflorestamento, agropecuária, mineração etc. Seu sonho começou a virar realidade com um desmatamento de 1400 km² de floresta nativa à beira do rio num dos lugares mais bonitos da Amazônia. 

Mesmo com o apoio do BNDES, Ludwig acabou por desistir do seu projeto, já com sua fábrica importada do Japão funcionando, em 1982. A floresta isolada exigia muito investimento, ele dizia já ter gasto quase um bilhão de dólares e pedia mais apoio ao governo brasileiro. Não sei quais foram os arranjos entre os militares, o dono do sonho e alguns investidores brasileiros chamados para encontrar uma solução. Não sei; quem sabe os militares daquela época levassem mais a sério a soberania do que os de hoje. Fato é: noticiou-se que o empreendimento passava às mãos de empresários brasileiros, que acontecia uma “nacionalização do Jari”. Foi bom esquecer do “Jari-enclave estrangeiro”, durante décadas. 

Hoje, o Google me contou que um grande investidor brasileiro, um vencedor nos negócios, está à frente desse projeto que continua a produzir celulose e vende madeira certificada para a Europa, gastando com a saúde e educação dos pobres do Brasil o 1% do lucro assim obtido. O investidor garante não separar negócios de projetos sociais. Mais de meio século depois do Jari eu fico me perguntando até quando a maioria dos brasileiros, sempre perdedores, terão que depender da caridade dos pouquíssimos vencedores, sempre gente “do bem”, claro.

Depois de Ludwig apareceram outros bilionários estrangeiros, com excelentes intenções querendo comprar e salvar a Amazônia do desmatamento ilegal por brasileiros destruidores da floresta. Alguns até já se declaravam proprietários de grandes áreas de terra na região. Mas a constituição de 1988 tornava difícil a propriedade legal de terras para estrangeiros. Por isso, só em 2020, com novas leis, Ludwig, já morto, teria conseguido documentos legais de metade de suas terras no Jari, que teria área maior do que o estado de Alagoas, que já é maior do que o estado de Sergipe (Google).

Desde que o governo Temer fez uma Medida Provisória, que foi aprovada no Congresso e sancionada por ele, a que permitiu o lançamento do Programa Nacional de Regularização Fundiária de terras da União na Amazônia Legal, feito para  facilitar a regularização de terras da União ocupadas irregularmente, o jurista Dalmo Dallari (morto recentemente) advertia que a venda de terras para estrangeiros, mesmo que a terra fosse pouca, implicaria em perda da soberania brasileira e até contou como isso poderia acontecer (vale ler o link abaixo):

https://www.migalhas.com.br/depeso/258477/venda-de-terras-a-estrangeiros–vendendo-a-soberania-brasileira

Em 2020, o Senado brasileiro confirmou aprovação da venda de até 25% da área de cada município brasileiro para estrangeiros e facilidades de legalização. Os estrangeiros pressionam sempre por mais e mais facilidades para compra de terras no Brasil e parte dos ruralistas brasileiros se veem prejudicados por essa entrega. Como o Brasil é todo dividido em municípios e os da Amazônia são gigantescos, já dá pra perguntar que porcentagens da Amazônia e do Brasil não são mais brasileiras. O povo não sabe quantas destas terras foram vendidas  e legalizadas depois dessa aprovação. Bolsonaro prometeu vetar essas vendas. Não sei se ele vetou alguma. Vocês sabem? Também não sei se venderam mais áreas do tamanho de países, nem para quem. De todo jeito, mesmo com vendas não aprovadas há enclave estrangeiro na Amazônia, com área de quase 20 vezes a de Sergipe e desmatamentos gigantescos, como mostra o site Brasil de Fato:

https://www.brasildefato.com.br/2021/06/21/venda-de-terras-nacionais-para-produtores-estrangeiros-divide-ruralistas-brasileiros

Agora já se diz que a Amazônia não é mais brasileira e que está entregue ao crime organizado, que desmata e toca fogo. No pais de maior desigualdade social do mundo isso não seria propriamente uma novidade.  Mas depois do assassinato dos indigenistas Dom e Bruno não dá muito pra duvidar de que ela esteja mesmo por conta de bandidos especializados em todas as ilegalidades. Se até parte do Rio de Janeiro virou território de milicianos, imaginem a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta, importante para o Brasil e para um mundo todo conectado em termos do clima, num governo que nega a ciência e resultados de desmatamento por satélite como se fosse um especialista enquanto sucateia a fiscalização local e que nem plano pra valer de combate a desmatamento apresentou, apesar de toda a pressão internacional. 

As perguntas agora são muitas e os documentos com sigilos de 100 anos também. Imagino que um novo governo terá que começar avaliando que Brasil terá sobrado para os brasileiros depois deste desgoverno. Será hora de verificar até se o Brasil ainda tem seus 8 milhões de km², ou já diminuiu “legalmente” neste governo onde aprovações de medidas provisórias polemicas acontecem na calada da noite. 

Vergonhoso será constatar uma diminuição  do nosso território perdido para estrangeiros sem nunca termos feito uma reforma agrária e com nossos muitos milhões de miseráveis buscando comida no lixo! Quantos serão os enclaves estrangeiros na Amazônia e a quem pertencem é pergunta que não poderá ficar sem resposta. Fiscalização de madeireiras, mineradoras, ongs “do Bem” e “do Mal”parece prioridade. 

Note-se que não perdemos soberania só com a venda de terras para estrangeiros. Com a terra entregue frequentemente, também, vai o subsolo e a água. A  perda de soberania ocorre em privatizações que nunca deveriam ter sido feitas. Quando entregam ao comprador o que transformaram em “mercadoria” roubada do povo, proprietário que nunca é consultado na venda de suas riquezas teóricas, os desastres podem ser imensos. 

Dá para imaginar o quanto a venda ou qualquer outro tipo de entrega de terras a estrangeiros, especialmente na Amazônia, poderá fugir do controle brasileiro, e afetar negativamente, via mudanças climáticas, os moradores desta área  e do mundo?

Minha viagem no tempo, que começou olhando a foto de uma cratera que persistia há meses na Avenida 7 de Setembro de  Manaus, termina aqui.  Ainda vejo ônibus e mais ônibus lotados de brasileiros, passando por cima da cerquinha de gravetos e despencando naquele abismo sem volta! O buracão continua lá, com seu túnel escuro, triturador de gente, uma maquina usando a energia das próprias vítimas para seu funcionamento! Só sei que não dá pra acreditar que esse pesadelo terá fim se não fizermos da luta pela democracia e transparência uma luta permanente.  Senão, como escreveu e cantou Chico Buarque seguiremos com “nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era (e é) subtraída em tenebrosas transações”.

Rute Bevilaqua é Física pela Universidade de São Paulo (USP).

Outro artigo da autora já publicado pelo GGN

Redação

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