Violência, Instituições e Desenvolvimento, por Cintia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella

Pode-se afirmar por um lado que não é fácil entender o Brasil. Não é fácil interpretar a nós mesmos, "nosso livro não sabemos de fato ler".

Marcelo Camargo – Agência Brasil

Violência, Instituições e Desenvolvimento.

por Cintia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella

            Razão, Modernidade, Progresso, Desenvolvimento, Competitividade, são expressões que ao longo do tempo são cunhadas, forjadas ou apropriadas com intuito de fomentar e, sobretudo justificar a batalha de ideias, a violência, a depredação, a rapinagem de riquezas e bens naturais que envolve a história dos encontros entre povos europeus e do novo mundo, baseado em relações de opressão, de controle, e de divisão de classes sociais, do trabalho, e de poder.

            Esta batalha de ideias não findou e conforme aumentam os fluxos de toda a ordem estas se complexificam, e ao mesmo tempo não altera a natureza violenta dos encontros que agregam novos povos e tornam os Estados Unidos e Europa, novo agente colonialista, ou imperialista e explorador. Formas de violência se transformam e surgem fenômenos e desdobramentos para manutenção das relações de poder.

            O fascismo, por exemplo, se apresenta como tal. Já é velho conhecido. Manifestou-se política e publicamente na Itália entre os anos 20, 30 e 40 do século XX, sob liderança de Benito Mussolini, entre outras personalidades italianas. Entre as características do fascismo é preciso destacar: a) é financiado por grandes empresários da indústria, da agricultura, de novas tecnologias para manutenção e afirmação do regime de acumulação de capital; b) o objetivo é retirar direitos trabalhistas, açambarcar bens públicos para os interesses privados; c) para alcançar êxito em seus interesses privados promovem desestabilização social e institucional; d) promovem uma guerra civil dividindo a sociedade e incitando o ódio de classes e o desprezo à política e as instituições; e) promove a xenofobia, o racismo, a intolerância; f) promove a mentira diuturnamente como modus operandi da sua política; g) incita ao nacionalismo, ao fervor religioso, a violência generalizada contra quem pensa e age de forma diferente, entre outras características.

            Nesta direção, as ações terroristas de grupos bolsonaristas atentando contra as instituições, contra o estado de direito caracterizam-se como ações fascistas, apontam agravamento do cenário político, social e econômico, bem com demonstram a existência inconteste deste fenômeno no país.

            Mas, com tantas transformações ocorridas ao longo do tempo, com a batalha de ideias que permeia a formação de nossas sociedades podemos questionar: a modernidade, a civilização, as instituições como um todo estão a serviço de algo além de violência?

            Sim, trata-se de um questionamento radical. E, ao longo de breves anos de estudo sobre desenvolvimento esta se coloca como uma questão pertinente. Pois, estudar desenvolvimento exige atentar para a batalha de ideias e sua trajetória histórica e a construção das instituições que se estruturam a partir deste emaranhado de construções que nos apontam sempre direções a seguir, obedecendo estruturas sociais, organizadas, institucionalizadas.

            A invasão das instituições do poder político do Estado brasileiro, sob influência dos atos realizados nos Estados Unidos nos apresenta que não só países do Sul tem tentado alcançar razão, modernidade, progresso, desenvolvimento, competitividade com reprodução de instituições, receitas, manuais, cartilhas, como também parecem desejar alcançar as benesses da acumulação de riqueza do capital, especialmente as benesses advindas dos privilégios e da manutenção de classes sociais profundamente díspares. Ao mesmo tempo parecem também querer alcançar e manter tais privilégios com reprodução de estratégias de desestabilização dos poderes institucionais sempre que povos, partidos ou elites do Sul apresentarem tendência para intensificação de justiça social e, promoção das classes populares, diminuindo privilégios de grupos abastados, que não querem comprometer seus interesses estratégicos de acumulação de capital com nenhuma das experiências de mazela, de pobreza, de violência e injustiça social a que grande parte da população está submetida. Chama a atenção a reprodução de interesses das elites em classes de trabalhadores que embora não se considerem pobres, considerem que não entrariam na fila dos ossos para dispor de alimentos, ainda sim consideram aterrorizante perder a chance de vivenciar experiências homeopáticas de acesso às benesses do capitalismo, e ainda, consideram aterrorizante que as pessoas nas filas de ossos possam um dia acessar miseravelmente direitos sociais, ou migalhas de experiências, como comprar um perfume, fazer uma viagem, degustar determinado tipo de alimento, ou acessar determinado local de lazer.

            Pode-se afirmar por um lado que não é fácil entender o Brasil. Não é fácil interpretar a nós mesmos, “nosso livro não sabemos de fato ler”. Mas, também se pode afirmar que é fácil compreender o Brasil. Somos um país que não conseguiu superar a violência do ethos escravocrata que nos fundou como colônia de exploração. Donos de Capitanias hereditárias, Senhores do Engenho, Barões do Café, Coronéis, Oligarquias rurais e Urbanas estão entre nós. Reclamam a ferro e fogo seus privilégios em detrimento do conjunto da população escravizada da nação. Não hesitam em lançar mão de preconceitos e da violência (fazendo uso de instituições, inclusive) para manter seu status quo. Educação apenas para seus filhos. Para a população em geral analfabetismo funcional. Educação disciplinar, militarizada para os mais pobres, libertária e estimulando lideranças para os ricos. Patrimonialistas, corporativistas, odeiam de morte iniciativas políticas que visam instaurar as condições básicas de justiça social. Compreender essa violência visceral passa necessariamente por levar em consideração os anos de escravagismo, os milhões de corpos e mentes deportados da África e,  lançados na condição de escravizados à condição de abandonados pela sociedade, a continuidade e aprofundamento do racismo, a continuidade das relações oligárquicas que ainda hoje estão enraizadas nas elites e em todas as instituições do poder público, que continuam a não considerar gente os trabalhadores, que não aceitam negros, índios e, pobres nas universidades, nos shoppings, nos aeroportos, e que consideram serem superiores em sua condição de  pessoas brancas, “bem nascidas, bem estudadas, privilegiadas”.

            O colonialismo não findou com a independência das colônias, mas se transformou, aprofundou e, avançou nas instituições instauradas a partir das independências que transformam as relações de poder politicamente, institucionalmente, mas mantendo continuidade de relações de poder e controle para com as populações dos países do Sul global.

            As elites do Sul global, ainda com forte característica oligárquica, se colocam como elites de novos tempos, mantendo velhas práticas de dominação sob novas roupagens no que concerne à subjugação da sociedade a seu serviço. Desprezo histórico e cotidiano pelos seres humanos que podem ser descartados, violentados simplesmente por serem pobres, trabalhadores, analfabetos funcionais, negros, índios, mulheres, ou mesmo crianças. Elites ilustradas no que concerne a garantia dos direitos dos animais e, grotesca, pavorosa no que concerne a agressividade com que tratam a população brasileira retirando-lhes direitos sociais, trabalhistas, previdenciários, entre outros tantos direitos.

            Os aparatos institucionais se colocam, portanto vinculados aos interesses destes grupos, pontas de linha de elites globais, garantidoras de seus privilégios. Não é à toa que quando se esperou que as Forças Armadas protegessem a República estas aturam em favor de grupos específicos. Não foi à toa que quando se esperava que Polícia Militar, resquício do Regime Militar, atuasse em favor do cuidado e proteção dos setores desfavorecidos da sociedade brasileira, esta atuou em favor de grupos minoritários. Não foi à toa que as forças jurídicas do país quando deveriam atuar em defesa da dimensão republicana burguesa, condenando um parlamentar que fez apologia a um inominável e abominável torturador – nada fez. Não é à toa que nada foi feito diante de um presidente de orientação fascista que estimulou pessoas à arriscarem e perderem suas vidas em uma conjuntura de pandemia enquanto tornava suas informações sobre vacinação sigilosas. Ou dito de outro modo, não é à toa que nada foi feito diante de governante ventríloquo do grande capital, que em nome da preservação do regime de acumulação do capital, que se nomeia como “economia”, insistisse que os pobres deste miserável país entregassem suas vidas ao vírus. Onde estão as instituições? Onde estiveram? Não por acaso estas pessoas acampadas em assentamentos considerados manifestação explícita de sentimentos e atos de terrorismo ensejaram as condições dos atos praticados nos últimos dias contra os interesses republicanos da maioria da população,  puderam ficar tanto tempo, ameaçando todas as instituições nacionais, e nada ocorria com elas.

            Tudo em nome de um tempo que virá de um porvir apresentado insistentemente como futuramente melhor, se as instituições privilegiam elites é apenas em função de uma sociedade em construção. Se as instituições não dão conta das demandas e direitos sociais, é porque estão em construção. Se as instituições violentam os pobres, são racistas, machistas é porque estão se adequando, buscando melhorias. Melhorias estas que nunca vem. Mas é preciso confiar. Fé no futuro. E fé neste modo de vida ocidental, eurocentrista, católico, judaico, cristão, agora também estadunidense, evangélico neopentecostal. Fé na ordem, nas instituições, que o progresso ou o desenvolvimento virá. É isso, acreditar em algo que não tem fundamento algum e que permite violência apenas contra oprimidos. A toda esta barbárie também se pode nomear de desdobramento do progresso, da modernidade, e de desenvolvimento na medida em que contém em si o conjunto de falácias, de preconceitos, de racismos, de xenofobia, com que o capital controla e conduz a vida e os corpos de milhões de seres humanos destinados a serem consumidos em sua lógica de acumulação.

Drª Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia

Dr. Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

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Redação

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