Apesar do governo federal, debate público sobre aborto avança, diz Gabriela Rondon

Para co-diretora do Instituto Anis, "o debate público está avançando em outro sentido, de conseguir compreender que o que está em jogo são questões de saúde, do próprio aborto legal”

Do Sul 21

Sul21 recebeu, na live desta semana, Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética. A editora Ana Ávila e a jornalista convidada Débora Fogliatto conversaram por cerca de uma hora com Gabriela acerca da situação do aborto legal no país e do andamento da pauta no Supremo Tribunal Federal (STF). A questão da interrupção voluntária da gravidez até as 12 semana tramita no STF desde 2017, a partir de ação do PSOL com o Anis.

O Instituto que Gabriela co-dirige atua, há 21 anos, em diversas frentes, dentre as quais a pesquisa, tanto em saúde pública quanto em ciências sociais, produzindo evidências sobre violações de direitos humanos. Ainda, trabalham com ações de litígio, reparação e também comunicação. A organização foi uma das especialistas nomeadas pelo STF a se pronunciar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, a partir da qual foi legalizado o aborto em caso de anencefalia, em 2012.

A ação que tramita atualmente e prevê a interrupção voluntária da gravidez já está sendo debatida no Supremo, explica Gabriela. Em 2018, a temática atingiu número recorde de pedidos de ingresso como amicus curi, [‘amigos da corte’], ou seja, associações da sociedade civil que pedem para participar no processo. “Isso mostra que a sociedade civil está interessada em discutir o assunto e faz um clamor para o Supremo de que de fato atenda essa demanda de no mínimo debater publicamente esse tema. Em 2018 mesmo, logo depois desse momento de recorde dos pedidos de ingresso, a ministra Rosa Weber chamou audiência pública sobre o caso. Então essa ação já produz efeito por estar sendo debatida”, colocou a advogada durante a live.

Opinião pública e a luta de uma menina pelo aborto legal

Um dos exemplos de casos mais emblemáticos atualmente no Brasil referentes a essa temática foi o da menina de 10 anos que, violentada pelo tio, precisou mudar de estado para conseguir ter acesso ao aborto previsto em lei. No país, é permitida a interrupção da gravidez em casos de estupro (e presume-se que menores de 14 anos nunca podem consentir), em casos de risco de vida para a mulher e no caso de fetos anencefálicos.

O caso da menina, moradora de Espírito Santo, chamou atenção e causou polêmica quando a extremista de direita Sara Giromini, que trabalhou no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, divulgou o nome da vítima e o hospital em que ela estava internada. Na ocasião, militantes religiosos contrários à interrupção da gravidez foram até o local, assim como manifestantes em defesa da criança. A menina conseguiu realizar o aborto previsto em lei.

Para Gabriela, o saldo foi positivo no sentido de que a opinião pública em geral se posicionou sobre o assunto de forma ampla. “De fato, a gente viu que apesar de ter uma tentativa de polarizar o debate sobre isso, de ter aquelas pessoas que foram na frente do hospital hostilizar a equipe de saúde, a própria menina, com uma narrativa de que aquilo era assassinato, culpabilizar ela, foi possível ver que a maior parte da opinião pública repudiou essas ações e houve uma defesa do aborto legal nesse caso, de defesa dessa menina e identificação dela como vítima”, analisa.

Por isso, a advogada considera que houve um avanço no debate público, inclusive com o interesse da população em entender o caso e saber em quais situações o aborto legal está previsto na legislação. “Temos um cenário bastante ambíguo, não podemos deixar de reconhecer que temos um governo federal que se coloca contrário a esses direitos, vemos que o debate público está avançando em outro sentido, de conseguir compreender que o que está em jogo são questões de saúde, do próprio aborto legal”, coloca Gabriela.

Pouco tempo após o caso da menina ganhar repercussão, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que obriga os profissionais da saúde a avisarem a polícia ao realizar abortos legais em caso de estupro. Após pressão por parte dos movimentos sociais, o texto foi editado, mas Gabriela aponta que ele segue problemático. “O Ministério da Saúde voltou atrás em alguns pontos, mas continua bastante problemática, porque mantém a necessidade de notificação da polícia. É uma quebra de sigilo e de confiança o profissional de saúde precisar fazer isso sem a mulher ou menina querer. Existe uma ação do Supremo ainda pendente de julgamento referente a essa portaria, dizendo como é problemático. Então ainda existe uma evidência de que o Ministério da Saúde tem uma intencionalidade de tornar o acesso ao aborto legal mais complicado”, aponta.

Gabriela avalia então que, mesmo com posições conservadoras do governo federal e de grande parte do Congresso Nacional, em geral existe uma resistência forte que em diversos casos consegue fazer a pauta avançar – ou pelo menos não regredir. “Existe uma resistência intensa dos movimentos sociais e de alguns deputados e senadores. Então nunca passou [no Congresso] por exemplo a reversão dos casos de aborto legal que temos previstos hoje, ou a proteção da vida desde concepção, não passou o Estatuto do Nascituro. Tem sido debates que eles continuamente tentam passar por um caminho mais conservador extremo, mas que tem sido constantemente bloqueadas”, destaca.

Caso Tatielle: reparação 15 anos depois

Outro caso em que a Anis atuou diretamente foi o de Tatielle, que em 2005, aos 19 anos, passou por uma gravidez em que não havia possibilidade de o feto sobreviver. Na ocasião, ela conseguiu o direito judicial de interromper a gestação, mas em seguida um padre desconhecido da jovem e de sua família entrou com um habeas corpus para solicitar que a interrupção da gestação não fosse realizada.

“O padre não tinha relação com a Tatielle, não conhecia ela e a família, mas mesmo assim se sentiu no direito de interferir numa questão tão íntima e delicada. A notificação [do habeas corpus] chegou ao hospital quando o procedimento já havia sido iniciado, então o procedimento foi interrompido no meio, mesmo ela já estando com já dilatação e sangramento. Ela passou 11 dias em processo de trabalho de parto, continuou tendo contrações e sangramentos, sua vida foi colocada em risco”, relata Gabriela.

Após esse período, Tatielle passou por um “parto” no qual o feto foi expelido e não sobreviveu, conforme o previsto. “Ela em seguida quis entrar com uma ação de danos morais por todos essas dias de sofrimento físico e mental e todas as consequências que isso teve na vida dela”, conta a advogada, assinalando que o processo terminou só agora em 2020. O caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde obteve decisão favorável em 2016, mas as possibilidades de recursos por parte do padre foram encerradas somente este ano. “Agora foi dado inicio ao processo de execução judicial, para que o padre cumpra com seu dever de pagar a indenização”, segundo Gabriela.

Apesar da notícia ser uma vitória para a Anis e principalmente para Tatielle, o padre já manifestou que não tem intenção de pagar o que deve. O Instituto, em conjunto com a revista Azmina, lançou então uma campanha de financiamento coletivo em prol de Tatielle, considerando que a indenização, caso seja paga, ainda pode demorar. “Queremos conseguir garantir pelo menos parte dessa reparação a ela já imediatamente, considerando que ela já passou 15 anos esperando por isso e ainda sofre com as consequências desse processo, ela ainda vive com depressão, tem dois filhos, é trabalhadora, e sofre pelo que passou”, explica a advogada. O Fundo também pretende auxiliar outras vítimas de situações semelhantes.

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Redação

1 Comentário

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  1. A luta pelo direito da mulher sobre o seu corpo me faz lembrar da luta pelo direito ao divórcio. Segundo diziam a familia iria acabar, os filhos ficariam sem chance de crescerem normais. Pasmem, as familias continuam existindo e até se ampliaram, e os jovens continuam existindo e se tornando adultos. Portanto o direito ao aborto acontecerá ainda que religiosos e misóginos com poder possam atrasar um pouco essa decisão.

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