Os interesses em torno do primeiro debate nas Eleições 2022 e a emergência do tema da mulher

No debate da Band, Simone Tebet foi a única a questionar diretamente Bolsonaro sobre a temática 'mulheres'

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Os interesses em torno do primeiro debate nas Eleições 2022 e a emergência do tema da mulher

Anna Christina Bentes e Eliara Santana

Tradicionalmente, os debates presidenciais no Brasil são completamente controlados pelos interesses privados da mídia televisiva corporativa brasileira, mesmo que todos os canais de TV sejam concessões públicas. Ao longo de nossa história democrática, essa mídia televisiva esteve comprometida fundamentalmente com interesses não populares.

Em um momento como esse, no qual há riscos enormes para a retomada e consolidação de nossa frágil democracia, a mídia televisiva corporativa brasileira, mais uma vez, interditou o debate político relevante para o Brasil. E fez mais: alavancou os candidatos que tinham menos de 3% de intenção de voto, popularizando suas candidaturas, o que cada um deles não conseguiu com suas campanhas.

A execução dessa complexa operação se deu, principalmente, por meio de alguns expedientes: 1. seleção dos candidatos para participação no debate; 2. tempo igual para todos os candidatos e 3. distribuição estratégica de temas a serem comentados pelos candidatos. Nesse artigo, buscamos analisar brevemente essa operação.

A seleção dos candidatos para a participação no debate

Antes do debate, em pesquisas entre os dias 28 e 29/08, os quatro candidatos que pontuavam de forma relevante, considerando maiorias e minorias numéricas e políticas significativas eram Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Simone Tebet, cujos percentuais somados totalizavam entre 85% a 92% de votos dos eleitores brasileiros, segundo seis pesquisas divulgadas nesses dois dias. Dos candidatos que foram convidados ao debate, Felipe D’Avila e Soraya Thronicke pontuavam 1% cada um nessas últimas pesquisas de agosto.

Um primeiro olhar sobre essa estruturação pode mostrar uma democratização da prática jornalística: afinal, grandes e pequenos na política teriam a mesma chance de se comunicar com a população. No entanto, nem todos os candidatos que representavam 1% da escolha dos eleitores foram convidados. Além disso, todos sabemos que a mídia corporativa brasileira, desde antes do início do processo eleitoral, defende a ideia da Terceira Via: nem Lula, nem Bolsonaro. E por isso tivemos, nesse debate, a participação de dois candidatos (uma mulher e um homem) que defenderam, em rede nacional de televisão, perspectivas conservadoras e neoliberais, um reforço discursivo importante aos candidatos que defendem e praticam essas políticas econômicas e sociais, tais como Jair Bolsonaro e Simone Tebet.

O tempo para cada um dos candidatos à Presidência da República

A cada um dos candidatos presentes no debate foram concedidos 22 minutos. No entanto, esses 22 minutos não consistiam num tempo de exposição, mas num tempo dividido entre perguntas e respostas nos seguintes formatos:

  1. no primeiro bloco, há duas partes: 1) perguntas diretas de três jornalistas para cada dois candidatos, que têm 1min30seg para responder; e 2) confronto direto entre candidatos, com tempos exíguos para pergunta, resposta, réplica e tréplica;
  2. no segundo bloco, seis diferentes jornalistas perguntam para cada candidato, que tem o direito de quatro minutos de resposta, sendo que um outro candidato é também escolhido pelo jornalista para comentar por um minuto a resposta dada;
  3. no terceiro bloco, novamente perguntas de três jornalistas para cada dois candidatos; em seguida, confronto direto entre os candidatos;
  4. por fim, dois minutos para os candidatos fazerem suas considerações finais.

A maneira como o tempo foi dividido nesse debate e o número de candidatos chamados a participar impedem definitivamente um debate de ideias, de propostas, de programas, apesar do anúncio de que isso aconteceria. O que esse tipo de formato permite é uma luta em torno de frases de efeito, de proselitismos, das melhores formas de se repetir um mesmo mote e, também, da desinformação.

Candidatos como Lula e Ciro ficaram bem menos confortáveis e acabaram por apresentar um desempenho abaixo do esperado porque a divisão do tempo não lhes foi favorável: eles estão acostumados a participar de entrevistas em que a atenção sobre eles não é disputada com outro candidato. Além disso, também são políticos acostumados a “palestrar”, ou seja, a serem ouvidos durante um período maior e sem interrupções.

Bolsonaro também não conseguiu ter uma boa performance. Afinal, diferentemente dos dois acima citados, ele está acostumado a fazer falas curtas para um público cativo, não participa de entrevistas e nem faz palestras longas frequentemente. Portanto, sua performance não poderia mesmo ser muito boa.

Já os outros três candidatos – Simone, Felipe e Soraya – conseguiram se sair melhor do que os três primeiros colocados nas pesquisas, Lula, Bolsonaro e Ciro. Atribuímos isso ao fato de que tinham muito menos a perder e, portanto, podiam arriscar em termos de uma performance discursiva mais contundente e, principalmente, aos arranjos formais e temáticos do evento em questão, que notabilizaram seus desempenhos. Debates com formatos engessados sempre favorecem os nanicos.

A questão temática no debate presidencial

Em relação aos temas, segue uma descrição do que aconteceu na primeira parte do primeiro bloco e no segundo e terceiro blocos, nos quais os candidatos respondiam a perguntas de jornalistas. Vejamos a tabela abaixo com os temas das perguntas feitas pelos/as jornalistas:

No segundo bloco, no momento do comentário de Bolsonaro à pergunta feita por Vera Magalhães a Ciro Gomes, marcado na tabela acima em amarelo, houve a ofensa à jornalista por parte de Bolsonaro. A resposta do presidente foi: “Vera, não pude esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro. Não tô atacando mulheres, não. Não venha com essa historinha… De se vitimizar. Vera, você realmente foi fantástica, né? Deu oportunidade para falar um pouco de verdade sobre você”.

Jair Bolsonaro fugiu do tema perguntado – o que é uma prática recorrente em seu discurso – e foi extremamente violento na resposta a Vera, trazendo para sua fala inferências sobre as mulheres que são bastante recorrentes no discurso machista: “você dorme pensando em mim” (uma insinuação sexual,  ou seja, que que ela o interpelou porque dorme pensando nele), “Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro” (diminuição ostensiva da capacidade intelectual das mulheres); “não venha com essa historinha de se vitimizar” (insinuação de que as mulheres se fazem de coitadas e que a pauta feminina não tem importância).

Nesse momento, a candidata Simone Tebet protesta contra a atitude de Bolsonaro em relação à jornalista, e Bolsonaro, ainda aproveitando seu tempo, se dirige à candidata dizendo “Não pedi tua opinião”, acusando-a, em seguida, de ser conivente com a corrupção e de ser uma vergonha para o Senado Federal. Por fim, volta a se dirigir a Vera Magalhães, dizendo que a jornalista lhe deu uma oportunidade de falar verdades sobre ela.  [1] 

Nos confrontos diretos, a estrutura era: cada candidato escolhia o adversário para perguntar e tinha o direito de fazer uma pergunta. Todos perguntaram e todos responderam. O candidato que perguntava tinha direito a 1 minuto para perguntar e 1 minuto para a réplica. O tempo de resposta e da tréplica foi de 4 minutos no total, a ser administrado pelo próprio candidato. Segue abaixo o que aconteceu em relação aos temas nesse contexto de confronto.

Em relação a essa segunda tabela acima, há dois momentos de tensão: o primeiro, em que Simone Tebet pergunta diretamente a Bolsonaro qual a razão da raiva dele por mulheres. Ao dirigir a pergunta ao candidato e presidente da República, Jair Bolsonaro, a candidata Simone Tebet estava serena e tranquila, mas firme e com bastante ênfase nas colocações. A pergunta – bem contextualizada – elencou ações do então deputado em relação à pauta feminina, ações sempre muito negativas à integridade das mulheres: “O candidato Bolsonaro, como deputado, defendeu um assassino de mulheres, de uma mulher, no Senado; defendeu um torturador de mulheres, assim mesmo, no plural; votou contra os direitos das empregadas domésticas; votou contra o contrato de trabalho e o direito trabalhista das mulheres; ameaça jornalistas; comete misoginia; agride as mulheres brasileiras; eu mesma já fui vítima, repito aqui, de violência política de seus ministros. Eu quero, de forma bem objetiva, não voltar na questão do robô, que não me intimida, dos recortes de fake news que são divulgados a todo momento, inclusive sobre a minha candidatura. Mas a pergunta é bem objetiva: candidato Bolsonaro, por que tanta raiva das mulheres?”.

Ao responder, já visivelmente irritado, Bolsonaro fez o que é de costume: negou a acusação e mentiu descaradamente ao se referir a seu governo como aquele que mais fez pelas mulheres. Emendou a resposta tecendo um cumprimento à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no dia do voluntariado, “pelo brilhante trabalho que ela faz” – o que foi um recurso importante em sua argumentação porque é a primeira-dama a responsável por tentar reverter o péssimo desempenho de Bolsonaro entre o eleitorado feminino, como mostram as pesquisas de intenção de voto.

Não estamos entrando no mérito dos posicionamentos político-ideológicos (questionáveis) de Simone Tebet, mas ela, entre todos os candidatos ali presentes no debate, foi a única a de fato questionar diretamente o presidente Bolsonaro e apontar, para o público telespectador no país, a sua misoginia. Ao enumerar ações e elencar atitudes e apoios do então deputado à ações contra o interesse de mulheres trabalhadoras domésticas, por exemplo, Tebet deixou bem claro que a postura antifeminina do presidente já está consolidada e, portanto, não é algo momentâneo ou aleatório, é um conjunto de atitudes que tem efeitos práticos na conduta política e administrativa, impactando várias ações específicas para esse público.

O segundo momento tenso ocorre quando Bolsonaro, ao se dirigir a Ciro Gomes, diz que quer ter “um papo sobre mulheres” ali no debate. Sua pergunta, depois de enumerar ações de seu governo em defesa das mulheres, consiste em tentar saber se Ciro poderia ampliar essas políticas públicas. Em sua resposta, Ciro cita a “fraquejada” que Bolsonaro afirmou ter cometido ao ter uma filha mulher e também a agressão à jornalista Vera Magalhães, defendendo suas propostas para o desenvolvimento de políticas públicas mais gerais. Bolsonaro, em sua resposta, acusa Ciro de ter desrespeitado sua própria mulher anos atrás. E assim, o debate proposto para Ciro por Bolsonaro sobre as políticas públicas para mulheres acaba por trazer acusações mútuas de machismo, misoginia e desrespeito às mulheres de ambas as partes. 

A temática “mulheres” no debate presidencial

Considerando as tabelas acima, não há como não perceber que a questão das “mulheres” foi trazida em vários momentos, marcados em rosa nas tabelas: três vezes nas perguntas de diferentes jornalistas (Tabela 1) e duas vezes nos confrontos diretos entre os candidatos Simone Tebet e Bolsonaro e entre Bolsonaro e Ciro (Tabela 2). A retomada da questão por Bolsonaro, na última parte do debate, parece configurar-se como uma estratégia para tentar minimizar o estrago feito anteriormente por ele ao atacar a jornalista Vera Magalhães.

Também é possível afirmar, considerando as tabelas acima, que o debate trouxe à cena, especialmente por parte das jornalistas e da senadora Simone Tebet, alguns temas caros às mulheres do Brasil: a violência de gênero, o machismo e a misoginia de Bolsonaro e de outros atores de seu governo, em suma, questões importantes para um país que assiste à ampliação da violência contra as mulheres, da perda de direitos e o corte de políticas públicas específicas para esse público.

No início deste artigo, dissemos que o debate, tanto pela forma, como pelas temáticas tratadas, não conseguiu contribuir para o esclarecimento político do público e teria servido sim para alavancar a candidata Simone Tebet e dar voz e corpo a outros candidatos neoliberais. As primeiras avaliações do debate deram “vitória” para Simone Tebet. A nosso ver, essa “vitória” é uma consequência dos arranjos formais e temáticos produzidos pelos organizadores do evento. Em relação aos arranjos formais, a necessidade de um exímio controle sobre o tempo e sobre os diversificados tópicos trazidos favoreceu aquele que tinha a mesma resposta para todas as perguntas: Felipe D’Ávila. 

As tabelas revelam, a um só tempo, tanto a fragmentação de temas mais gerais, como uma espécie de sutil continuidade da questão feminina ao longo do debate. Essa operação discursiva deu certo: houve o apagamento de Lula (que aliás não consegue dar uma boa resposta para a pergunta da jornalista sobre a paridade de gênero na composição dos Ministérios, o que Simone consegue fazer), a revelação ao vivo da misoginia de Bolsonaro em relação a uma importante jornalista (mesmo tentando recuperar terreno ao final), a falta de empatia de Ciro com a questão das mulheres e a consequente ascensão de Simone Tebet ao lugar de defensora das mulheres brasileiras.

Sendo assim, podemos afirmar que o primeiro debate presidencial das eleições de 2022 continua a ser como tantos outros do passado: um espaço-tempo de pouco esclarecimento, mas muito estratégico em relação ao objetivo final: o encurralamento de qualquer candidato do campo progressista. Para tal fim, muitas armas servem. Servem as armas de sempre – encher a casa de candidatos conservadores irrelevantes do ponto de vista eleitoral, mas relevantes do ponto de vista discursivo, de forma que o tempo do debate como um todo seja menor para os candidatos mais relevantes. Servem também as armas de hoje: “Não provoque, é cor de rosa-choque”.


Anna Christina Bentes é professora livre-docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp). Eliara Santana é pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. As duas estão coordenando o curso de extensão “Desinformação, Linguagem e Política no Brasil”, que começa em outubro.

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Redação

1 Comentário

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  1. Sem NUNCA esquecer a tebet votou a FAVOR do impeachment da Dilma, PRIMEIRA MULHER Presidenta do Brasil, uma Presidenta honesta vítima de golpe com a participação da tebet.
    Quer violência maior do que esta contra as mulheres?

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