O amor convertido em voto para curar o ódio bolsonarista, por Márcio Valley

"Amor é um sentimento necessário para a consecução de um projeto político de país? A resposta, sem sombra de dúvida, é sim"

por Marcio Valley*

Ao final da entrevista que concedeu no Programa do Ratinho, no SBT, dia 22 de setembro, Lula pediu aos eleitores que comparecessem às urnas para nelas depositar amor e esperança na forma de voto.

Por que um candidato ao maior cargo eletivo do país se preocuparia em invocar o amor no ato de votar? Amor é um sentimento necessário para a consecução de um projeto político de país? A resposta, sem sombra de dúvida, é sim; o amor é essencial em todas as relações humanas e, em especial, o Brasil necessita e clama desesperadamente pelo retorno do amor ao seio de nossa sociedade.

A invocação do amor se torna necessária nessa eleição porque, na anterior, em 2018, infelizmente a maioria do eleitorado optou pelo candidato do ódio. Eleito, a defesa do ódio e da violência alcançou a principal vitrine política do país, a presidência da república, com todas as condições políticas e técnicas favoráveis que disso decorrem. A partir daí, para surpresa de ninguém, iniciou-se uma escalada na discórdia, na violência e no armamento.

Materialmente, isso se traduziu em naturalização gradual de ocorrências que antes eram consideradas perturbadoras. Ferir e matar o adversário político, ao que parece, tornou-se lugar-comum, não mais uma causa de horror. Grande parte da sociedade brasileira foi acometida de um desvio psicológico coletivo, quase uma histeria, causadora de distorção no espectro ético-moral que orienta opiniões e ações.

Alguém que se inclinava razoavelmente pela paz e pela conciliação viu-se, gradualmente, tornar-se intolerante e violento. Curiosamente, a própria pessoa entra em negação inconsciente do que se tornou, divulgando epítetos elogiosos dirigidos a si mesmo, mas que representam o exato oposto de posicionamentos e ações atuais, tais como cidadão do bem, cristão, defensor da vida e da liberdade e outros quetais. São pessoas que dizem defender a democracia quando invocam a ditadura, parecendo não perceber a gritante contradição nesse discurso, o mesmo ocorrendo quando elegem milicianos, que são criminosos, sob o pálio de combate ao crime.

Esse processo de distorção da natureza do próprio pensamento se iniciou já na campanha de 2018, estimulado pelo discurso extremamente violento de Bolsonaro. Os exemplos de violência extrema cuja origem é a retórica bolsonarista de eliminação do adversário político são incontáveis. Selecionei dez episódios simbólicos.

(1) Durante a campanha de 2018, no Rio Grande do Sul, os ônibus e demais veículos que compunham a caravana de Lula foram alvejados por diversos a tiros dados a esmo. Somente não houve feridos ou mortos por obra do acaso.

(2) Logo no dia seguinte ao 1º turno da eleição de 2018, em Salvador, BA, o mestre de capoeira Moa do Katendê foi morto e um primo dele foi gravemente ferido por um conhecido de ambos, bolsonarista, que discordou da escolha eleitoral por Haddad.

(3) No Rio, durante um comício de Lula, em julho/2022, outro bolsonarista, homem, jogou um artefato explosivo contra o povo reunido. Novamente a sorte ajudou e ninguém se feriu com a explosão, embora muitos tenham sido atingidos pelas fezes e urina que o artefato continha.

(4) Em Foz de Iguaçu, também em julho/2022, um bolsonarista invadiu uma festa realizada em um clube do qual é sócio, e para a qual não foi convidado, para matar o aniversariante a tiros porque soube, através de alguém do clube, que o tema escolhido para decorar a festa foi Lula e o PT.

(5) Em agosto/2022, dia 31, um policial militar, possivelmente, bolsonarista, atirou em um amigo antigo, dentro da Igreja Congregação Cristã no Brasil (CCB), em Goiânia, por discordância política, já que a vítima se opunha à orientação da igreja pelo voto contra os partidos de esquerda.

(6) Em Confresa, no MT, no início de setembro/2022, um bolsonarista esfaqueou até a morte e tentou decapitar, com golpes de faca e machado, um colega de trabalho por discordar da orientação política dele.

(7) Em Salto do Jacuí, RS, 13/09/2022, um bolsonarista que trafegava pela rodovia, incomodado com um veículo à frente decorado com adesivo do PT, jogou a sua pesada caminhonete Hilux contra a traseira do veículo de passeio, cujos passageiros nada sofreram também por capricho do destino. O bolsonarista, no entanto, perseguido por uma viatura policial que testemunhou o crime, bateu com o carro e morreu.

(8) Menos de duas semanas depois do episódio anterior, no mesmo mês de setembro/2022, em Angra dos Reis, RJ, uma menina de 19 anos recebeu uma grave paulada na cabeça desferida por um homem totalmente desconhecido dela, bolsonarista, que, sem ser chamado, se intrometeu na conversa que ela mantinha com a irmã, para discordar da rejeição manifestada por ambas a Bolsonaro.

(9) Ainda em setembro/2022, em Ariranha, SP, dois bolsonaristas, pai e filho, agrediram violentamente um pesquisador do Instituto Datafolha por discordar dos resultados das pesquisas eleitorais, sendo esse apenas um dos dez casos de violência bolsonarista contra pesquisadores registrados pelo Datafolha no Brasil.

(10) Também em setembro/2022, dia 28, um idoso que, na rua, apoiava o PT foi espancado por um bolsonarista que dele era desconhecido, em Areia Branco, RN, com socos e pontapés que não cessaram mesmo após o idoso estar caído no chão, já sem reação.

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Todos esses episódios possuem um traço comum: os agressores são homens, bolsonaristas, não estavam no exercício de legítima defesa e, em grande parte das ocasiões, foram ao local buscar o confronto. Em nada se comparam aos poucos relatos de “violência” atribuídas ao outro lado e utilizados para produzir uma falsa equivalência no uso da violência. Num episódio bastante divulgado, uma pessoa empurra um bolsonarista que se colocou no meio de uma manifestação do PT com o intuito claro de provocar; infelizmente, ao cair por conta do empurrão, foi atropelado sem gravidade por um veículo que trafegava. Foi errado o empurrão? Sim, foi, mas não se compara aos episódios antes elencados, tratando-se de um momento de destempero praticado no instante de uma provocação injusta, sem premeditação do atropelamento. Comparar isso a alguém que, armado, invade uma festa para matar petistas é pura desonestidade.

Os episódios descritos, além de inúmeros outros, fundamentam o pedido de Lula para que, dessa vez, os eleitores votem com amor. A preocupação com o ódio se justifica por se tratar de um sentimento desagregador, disruptivo, completamente incapaz de dar origem ou sustentar uma sociedade civilizada. Dentre muitos inconvenientes, o ódio destrói a base mais importante da sociedade que é o sentimento de pertencimento que todo indivíduo deve sentir em sua alma para se importar com o que ocorre à sua volta. Quem não se importa com o outro certamente fará pouco-caso com os rumos do país, cuja fragmentação passa a ser considerada irrelevante desde que garantido o próprio bem-estar.

O ódio indutor do pouco-caso com o que ocorre à volta é irmão siamês da sensação de impotência individual, aquela sensação incômoda de que nada pode ser feito para alterar a realidade que oprime, muito menos com o voto, já que enxerga todos os políticos como iguais. Ao perceber a política como algo distante dele, inatingível, o indivíduo que aceitou o ódio bolsonarista como possibilidade de modificação do real vê como única opção de influir no processo político o ataque violento a quem está próximo e pensa diferente. É um sentimento bárbaro, orientado exclusivamente pelo instinto animal mais arraigado de autopreservação.

Trata-se de um tipo de sentimento que atua como o fio condutor da desagregação social; se não remediado tende a se apossar de porção cada vez maior de pessoas, dado que a parte violentada, em algum momento, não mais permanecerá passiva e revidará. O resultado inevitável disso é a guerra civil, com possível divisão territorial para que tanto o “nós” como o “eles” possam reconstruir do zero um novo modelo social, cada um de acordo com as próprias convicções. Isso já ocorreu diversas vezes, sendo exemplo a Índia pós-colonial, cujas contradições nas visões de mundo entre hindus e muçulmanos redundou em guerra e mortandade, somente apaziguada com a criação do Paquistão.

O Brasil é lindo em todas as suas regiões, cada um com suas características. De fato, de certo modo somos um milagre social, um imenso mundo de terras sem fronteiras impeditivas ao deslocamento, com um povo que fala a mesma língua, sem grandes problemas religiosos (ao menos por enquanto, embora alguns ministros pentecostais estejam trabalhando muito para destruir a paz religiosa) e que tampouco tinha grandes problemas políticos até que o antipetismo se tornasse uma retórica fácil, manipulada por inescrupulosos para iludir eleitores e retomar fatias perdidas de poder. Seria uma lástima que um carioca tivesse que utilizar passaporte para ir ao nordeste ou vice-versa.

As pessoas precisam entender que a política, com todos os defeitos, é o único meio não violento de conciliar os interesses da coletividade. A opção para a recusa da política institucionalizada é o mar de sangue de uma revolução.

Precisam compreender também que um presidente eleito não pode governar somente para o seu “chiqueirinho”. Após eleito, torna-se presidente de todos os brasileiros e deve esforçar-se para pacificar os divergentes, o que jamais será alcançado por alguém que não perde a oportunidade de afirmar a necessidade de matar um terço dos eleitores, a saber, os “comunistas”, “esquerdalhas” e “petralhas”.

A partir da eleição do candidato do ódio, em 2018, houve um aprofundamento da divisão “nós e eles” provocada pela retórica bolsonarista de que a ausência de apoio ao governo torna a pessoa um inimigo a ser eliminado. Cada uma dessas metades se entrincheirou em suas convicções e passou a viver em bolhas de opinião por não suportar ouvir argumentos contrários ao mundo idealizado que criaram em suas mentes e que somente nelas existe.

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Mas, afinal, quem somos “nós” e quem são “eles”?

Sob a ótica bolsonarista, o “nós” é formado pelos que advogam o armamento das pessoas; que o próprio policial escolha os criminosos que mereçam ser assassinados, sem necessidade de julgamento; que os adversários políticos considerados comunistas possam ser silenciados, torturados e mortos; que a identidade de gênero fique limitada a homens e mulheres cis; que a demonstração de afetividade homossexual, como beijos e abraços, seja impedida ou, minimamente, fique restrita às quatro paredes de um quarto; que o ensino para os pobres seja focado exclusivamente na técnica, com o objetivo de prepará-los para serem bons empregados, e não para a compreensão de seu verdadeiro papel no mundo como seres humanos e muito menos para facilitar a ascensão social; que o Estado seja mínimo, com a iniciativa privada assumindo todas as demandas sociais, inclusive saúde, educação e segurança pública; os que entendem que uma criança de 10 anos, estuprada e grávida, não deve ter o direito de abortar;  que fauna e flora possam ser dizimadas em nome do lucro ou para melhoria da bateria de um celular; que os terreiros de umbanda e candomblé sejam incendiados, se possível com os praticantes dentro; que o miserável que não consegue um terreno para capinar se revela incompetente, não merecendo receber auxílio governamental, ainda que venha a morrer de fome, até porque, se receber, gastará tudo em cachaça ou procriará como coelho para aumentar o auxílio; que existe emprego para todo mundo, os preguiçosos é que não procuram; e outros ideias desse tipo.

Quem estaria do lado do “eles”? São os que se comovem com o discurso considerado de esquerda. Em suma, são pessoas incomodadas com a injustiça social e, de modo geral, com todas as desigualdades na forma de tratamento dos seres humanos, independentemente de nacionalidade, sexo, etnia, religião e qualquer outro modo de categorizar pessoas.

São pessoas convictas de que as chamadas políticas de generosidade seriam capazes de transformar esse planeta num paraíso; que não compreendem por que um casal hetero pode se manifestar romanticamente em público, enquanto um casal homossexual não pode; que aceitam a existência de riqueza até certo ponto, mas consideram inadmissível que existam, simultaneamente, poucos bilionários que concentram em seus cofres metade da riqueza coletiva e bilhões de miseráveis que não tem o que comer; que entendem que a felicidade coletiva depende fortemente da inexistência de pobreza extrema e que a criminalidade, embora reprovável e que deve ser combatida, é um sintoma da desigualdade social; que percebem que o capitalismo chegou a um nível tecnológico que dispensa empregos, tratando-se de um xeque ainda sem solução à vista, de modo que os indivíduos não possuem culpa alguma pelo desemprego estrutural; e que entendem que o planeta não é uma propriedade exclusiva dos seres humanos, mas de todos os seres vivos que integram a criação.

Pense honestamente: se você não tivesse a menor ideia da condição social que lhe seria imposta para viver a partir de amanhã, podendo ser rico ou miserável, preferiria viver no mundo egoísta do bolsonarismo ou no altruísmo social desejado pela esquerda?

A eleição de 2022 é sobre isso. Passa necessariamente pela avaliação do eleitor quanto ao tipo de sociedade em que deseja viver. Uma pautada pelo ódio, pela violência e pela política egocêntrica do cada um por si; ou aquela no qual uma pessoa desempregada consiga sobreviver, sem necessidade, por desespero e tomado pela agressividade da revolta, de ter que roubar para o sustento próprio e da família?

Desde 2018, muitas amizades e relações familiares foram estremecidas por conta da propagação do ódio bolsonarista. Se continuar fragmentado, o destino do Brasil é a continuação e agravamento do retrocesso social, econômico e politico que já vivenciamos. A pacificação do país exige que se deixe de lado o apelo à violência e isso jamais será alcançado se o líder da nação continuar a ser alguém que estimula a agressividade contra o “outro lado”, fazendo arminha com a mão e sugerindo que uma reunião de petistas é a ocasião perfeita para usar uma granada.

A eleição de 2022 novamente será uma escolha entre o amor e o ódio.

Não é uma escolha difícil.

*Marcio Valley é formado em Direito pela UFF, com pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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