Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Família, Políticas Sociais e Desigualdade, por Jorge Alexandre Neves

Família, Políticas Sociais e Desigualdade

por Jorge Alexandre Neves

O artigo de Reginaldo Moraes publicado aqui no GGN [Desigualdade começa bem antes da escola e aumenta a cada passo, por Reginaldo Moraes] me motivou a escrever este texto. Ele traz um importantíssimo debate acerca da relação entre família e desigualdade, bem como resume os principais achados de James Heckman e colaboradores sobre a importância da primeira infância na determinação do nível socioeconômico dos indivíduos na vida adulta.

Gostaria de mostrar que o Brasil vinha dando passos importantes na direção do que os trabalhos de Heckman apontam, mesmo antes de eles terem sido publicados. Talvez por sorte ou talvez porque os trabalhos de Heckman apenas venham reforçar boas hipóteses prévias, o fato é que o eixo central das políticas sociais praticadas no Brasil a partir da CF-88 e intensificadas após o início do primeiro governo Lula produz resultados do tipo esperado por Heckman e seus colaboradores.

Em seus mais importantes livros publicados nos últimos vinte anos, Amartya Sen sempre promoveu um relevante debate com a chamada Teoria da Justiça de John Rawls. No mais recente desses livros, ele de certa forma “encerra” esse debate ao propor sua própria “Teoria da Justiça”. Ali, encontra-se uma proposição crítica da abordagem de Rawls, ao identificá-la com uma tradição contratualista da filosofia (fundada por filósofos como Hobbes, Locke e Rousseau), que apresentaria um caráter fundamentalmente normativo. Para Sen, a tradição contratualista de Rawls levaria a certo “transcendentalismo”, visto que sua abordagem parte de uma situação hipotética de agentes cobertos por um “véu de ignorância” fazendo escolhas sobre princípios básicos de justiça, que seriam o “princípio da liberdade” e o “princípio da diferença e da igualdade”. (Em minhas aulas, tomo a liberdade de propor aos alunos uma metáfora substitutiva ao “véu de ignorância” apresentado por Rawls, que chamo de “cegonha randômica”: imagine que você é um bebê trazido por uma cegonha que irá jogá-lo em um domicílio qualquer com base em uma escolha aleatória, você irá preferir que essa sociedade seja o mais igualitária possível!). Se contrapõe tal visão através da proposição de sua abordagem, a partir da Teoria da Escolha Social, que busca “… a avaliação de combinações de instituições sociais e padrões de comportamento públicos sobre as consequências sociais e realizações que eles produzem”. Ou seja, para Sen, sua abordagem (que seria tributária a outra tradição da velha Filosofia Moral, tradição essa fundada por nomes como Smith, Benthan, Marx e Mill) estaria centrada na análise fundamentalmente do comportamento real dos indivíduos (uma abordagem mais analítica ou positiva, em contraste com a normatividade da tradição continuada por Rawls) e não na busca da proposição basicamente metafísica de instituições perfeitas.

James Coleman, em um artigo publicado em 1974, curiosamente, faz uma crítica a Rawls que, em alguns aspectos (apenas em alguns aspectos) se assemelha à crítica feita por Amartya Sen. Em determinado momento do seu texto, Coleman afirma que uma teoria da justiça “para ser útil, precisa reconhecer que contratos sociais ou constituições são feitos e modificados por pessoas, cada uma das quais tem expectativas sobre suas posições futuras, expectativas que diferem, até certo ponto, das expectativas das outras pessoas”. Como sociólogo empírico que era, Coleman se sentia incomodado com o “transcendentalismo” metafísico de Rawls (para utilizar o termo proposto por Sen). Todavia, sua crítica mais substantiva a Rawls se deu em uma direção bastante oposta à de Sen. Coleman utiliza os resultados empíricos das pesquisas sobre estratificação e desigualdade social (que, nos aspectos ressaltados por ele, de certo modo não se diferenciam do que tem sido produzido desde a época em que escreveu seu artigo) para tentar colocar seu argumento central: liberdade e equidade são princípios totalmente inconciliáveis (note-se que esse argumento é frontalmente contrário à Teoria da Escolha Social de Sen). A impossibilidade de conciliação de tais princípios, para Coleman, se deveria ao fato de que, mesmo na sociedade moderna, a instituição que seria a maior responsável pela geração da desigualdade não teria caráter público, mas sim privado, qual seja, a família. Portanto, para Coleman, por mais que uma instituição de caráter público e universalista como o Estado aja no sentido da geração da equidade, ela não alcançará sucesso sem que se viole de forma aguda o primeiro princípio de Rawls: o princípio da liberdade. Como a família é uma instituição da esfera privada, para Coleman, não haveria como o Estado agir sobre a família sem ferir o princípio da liberdade.

Ocorre que as muitas pesquisas sobre os impactos das políticas sociais no Brasil mostram que o Programa Bolsa Família (PBF) tem o potencial de agir sobre as famílias, transformando preferências observáveis e, assim, gerando capital social familiar (conceito típico da teoria sociológica de Coleman, que diz respeito à quantidade de recursos não pecuniários que as famílias investem em suas crianças e adolescentes), que, por sua vez, produzem, em termos intergeracionais, competências (como definidas por Sen), em particular, através da escolarização e da interação da família com o sistema educacional. Os efeitos positivos observados do PBF sobre o capital social familiar são um indicador de que o programa tem o potencial de transformar preferências familiares, sendo muito relevante notar que o PBF em nenhum momento fere o princípio da liberdade.

É importante lembrar os estudos mais antigos de Sen sobre preferências, quando ele apresentou uma forte crítica aos fundamentos comportamentais da teoria econômica neoclássica (tradicional). Se opondo à concepção ortodoxa, propõe uma visão de que as preferências são variáveis endógenas da análise dos processos socioeconômicos.

Um dos principais exemplos de transferências intergeracionais é o investimento dos pais na formação dos seus filhos. Tal investimento se dá através da transferência de recursos pecuniários e não pecuniários. Entre os recursos não financeiros encontra-se, em particular, o capital social familiar, representado pela dedicação de tempo dos pais na formação dos filhos. De modo geral, os indicadores de capital social familiar apresentam efeitos bastante robustos sobre a realização educacional e ocupacional dos jovens.  Todavia, quando as famílias sofrem com fortes restrições financeiras, há uma tendência a um subinvestimento na formação dos filhos, causando uma situação de ineficiência na transmissão intergeracional de recursos (até pensadores conservadores, como Gary Becker, reconhecem isso). Assim, programas de transferência direta de renda como, por exemplo, o PBF brasileiro, reduzem a ineficiência no processo de transmissão intergeracional de recursos não pecuniários.

A análise dos estudos empíricos sobre os impactos do PBF (inclusive aqueles realizados por mim mesmo) mostram que o programa eleva o estoque de capital social familiar e que esse impacta positivamente o desempenho futuro dos filhos das famílias beneficiárias. Mais especificamente, o PBF – muito provavelmente em função das condicionalidades – transforma as preferências familiares, mais particularmente o uso do tempo dos adultos da família (basicamente das mulheres, infelizmente), influenciando, assim, positivamente as transferências intergeracionais. Portanto, fica bastante claro que o PBF, além de seu impacto sobre a redução da pobreza, é um investimento de longo prazo em capital humano (como é bem conhecido, Coleman já mostrou como o capital social familiar gera capital humano, o PBF entra nessa relação como um fator antecedente, ou seja, gerador de capital social familiar). Como pernambucano que sou, vou concluir dizendo: pense num investimento arretado!

Jorge Alexandre Neves – Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq e articulista do jornal Hoje em Dia. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

3 Comentários

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  1. Precisamente, professor. Bem

    Precisamente, professor. Bem lembrado. O bolsa-família é um desses programas. Está longe de ser “apenas” em redutor da pobreza. Está longe de ser o tal “dar o peixe”. Está longe de ser a “pílula de açúcar” mencionado por um lunático rabugento de Harvard que baixa por aqui nas férias de verão.

  2. Foto nesse artigo

    Bom dia;

    Parabéns, esse artigo é muito esclarecedor.

    Precisamos dessas publicações.

    A foto do garoto dormindo nos braços de outro é magnífica, pois nesses tempos sombrios que vivemos, consegue mostrar a importância da família.

    Att;

    Joaquim Vaz

    ET;

    Onde foi sacada essa foto? qual país?

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