50 anos do golpe no Chile, por Ester Gammardella Rizzi

O Chile é, neste 2023, um país democrático com uma Constituição elaborada na época da ditadura: a “Constituição do Pinochet”

Bombardeio ao Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973; no detalhe, Salvador Allende – Foto: Biblioteca del Congreso Nacional / CC BY 3.0 cl / Wikimedia

do Jornal da USP

50 anos do golpe no Chile

por Ester Gammardella Rizzi

Em 11 de setembro de 1973, há cinquenta anos, o Palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, foi cercado por forças militares. O prédio foi bombardeado, invadido e Salvador Allende morreria antes de acabar o dia. Os militares tomaram o poder e Augusto Pinochet iniciou a ditadura que duraria até 1990.

Em 2023, revelou-se um áudio de 1974 em que Orlando Letelier, chanceler chileno do governo Allende, relata um almoço com o presidente no dia anterior ao golpe. Nesse almoço, Letelier e Allende discutiram a aposentadoria de um grupo de generais militares que ameaçava se insurgir contra o governo e o anúncio de um plebiscito sobre uma nova Constituição para o Chile.  

O áudio reforça a interpretação de que o golpe, que estava em preparação há meses, pode ter sido antecipado ou definido para o dia 11 de setembro para impedir que o anúncio político de Allende sobre uma possível nova Constituição fosse realizado. 

O texto que seria submetido ao plebiscito (veja aqui a proposta elaborada) havia sido elaborado pela Unidade Popular, grupo político de Allende. Constituição e plebiscito faziam parte do que se convencionou chamar de “via chilena ao socialismo”, um socialismo que seria construído respeitando instituições e ritos democráticos.  

Anos mais tarde, em 1980, Pinochet promulgou uma nova Constituição Chilena, em que o regime autoritário estabelecia suas bases. Jaime Guzmán, então senador, foi um dos responsáveis por elaborar uma Constituição que praticamente eliminava a responsabilidade do Estado na promoção de direitos sociais e igualdade social. Além disso, essa mesma Constituição possuía diversos mecanismos de autodefesa, tornando muito difícil transformar as linhas políticas essenciais nela definidas. 

Em 5 de outubro de 1988, Pinochet perdeu um plebiscito que decidiria se ele poderia ou não continuar como presidente da República. A cédula de votação era extremamente simples. Como cabeçalho, apenas “Plebiscito Presidente de la República”. Logo abaixo estava o nome “Augusto Pinochet Ugarte” e, em seguida, duas opções “Sí” ou “No”.  Um total de 3.119.110 eleitores, ou 44% dos votos válidos, responderam “Sí” ao Pinochet. Já 3.967.569 eleitores, ou 55,9% dos votos válidos, responderam “No”. Desde o plebiscito até 1990, o Chile viveu uma transição democrática, sem que para isso fosse elaborada uma nova Constituição. Naquele exato mesmo dia, 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães promulgava a Constituição Brasileira de 1988 e marcava definitivamente o fim da ditadura brasileira. Foi um dia importante para a democracia na América Latina. 

O Chile é, neste 2023, um país democrático com uma Constituição elaborada na época da ditadura. A “Constituição do Pinochet” é considerada uma das causas das mazelas sociais que, a despeito do crescimento econômico das últimas décadas, são amplamente percebidas pela população chilena. Mazelas sociais essas que produziram, em outubro e novembro de 2019, um levante popular de grandes proporções, conhecido como “estallido social”. A saída institucional para o levante de proporções revolucionárias foi prometer a elaboração de uma nova Constituição.  Assim, em 25 de outubro de 2020 a população chilena participou de um novo plebiscito. Para a pergunta “¿Quiere usted una Nueva Constitución?”, 78% dos eleitores chilenos responderam “apruebo” e apenas 22% responderam “rechazo”.  Desde então, o Chile realizou, entre julho de 2021 e julho de 2022, a Convenção Constitucional que produziu um texto rejeitado por mais de 60% dos votantes em 4 de setembro de 2022. Fracassada a primeira tentativa, em dezembro de 2022 um novo itinerário constituinte foi proposto, previsto para se encerrar em um plebiscito ratificatório em 17 de dezembro deste ano.

A história chilena recente, assim, está intrinsecamente ligada à história constitucional do Chile. 

Os 50 anos do golpe de 11 de setembro de 1973 nos fazem lembrar dos “quase 4 mil chilenos mortos e desaparecidos e 38 mil presos e torturados” (fonte neste link) de uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Nos fazem lembrar também que o Brasil faz parte da América Latina. Significativo o dia 5 de outubro de 1988 na história de Brasil e Chile. Significativas as datas próximas das ditaduras na América do Sul: Paraguai (1954-1989); Brasil (1964-1985); Argentina (1966-1973); Peru (1968-1980); Uruguai (1973-1985); Chile (1973-1990). Significativo o movimento de fragilização política e discursiva da democracia como valor por que passa toda a região neste exato momento. 

O Brasil faz parte da América Latina e da América do Sul. Embora o português pareça nos afastar dos fronteiriços países hispano-hablantes, é sempre importante estudar, acompanhar, entender a história dos países da região porque ela nos é próxima e nos diz profundamente respeito. 

Assim, neste 11 de setembro de 2023 envio nossas saudações democráticas desde o Brasil a todas e todos os chilenas/os, que aproveitarão os atos relacionados aos 50 anos do golpe militar para fortalecer a democracia chilena nestes tempos difíceis.

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Ester Gammardella Rizzi acompanhou, no Chile, parte dos trabalhos da Convenção Constitucional encerrada em 4 de julho de 2022, cujo texto foi rejeitado em plebiscito por 62% da população. É professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH) e doutora (2016), mestre (2011) e bacharel (2007) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É assessora da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP.

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