Geni e a bola: o brasileiro e o futebol

Essa dama é a Geni, mas não pode ser Geni,

Ela pode nos salvar, ela vai nos redimir,

Ela dá pra qualquer um, bendita Geni!

Chico Buarque

 

                Meu colega César Queirós, professor de História, gaúcho e colorado, na condição de organizador de nossas peladas semanais me motivou a escrever esta elegia, ao me proporcionar vivenciar um elemento tão importante de nossa brasilidade.

                E, numa apologia ao futebol, poderia até falar de Chico (como fiz na epígrafe), do Politeama e da relação deste artista com a bola, o que já daria pano pra manga, mas ousarei mais, quero chegar ao fundo do poço, às últimas consequências da paixão futebolística e, para isso, invoco o espírito do grande, do inigualável, de nosso maior cronista futebolístico e, mais do que isso, daquele que captou, melhor do que ninguém a alma do brasileiro, aquele que, segundo a atriz Lucélia Santos, foi nosso Shakespeare tupiniquim: o gênio Nelson Rodrigues!

                Foi o velho Rodrigues quem compreendeu que a implicância de parte da nossa elite com o futebol é, tão somente, mais uma expressão daquilo que cunhou e consagrou como “complexo de vira-latas”. As elites, com sentimentos de estrangeirismo, mal percebem o gosto, a idolatria de tantos alemães, espanhóis, italianos, holandeses, de nuestros hermanos argentinos y chilenos pelo futebol, até porque acreditam que só o brasileiro, “subdesenvolvido”, é que pode ter esse tipo de gosto!

                Pão e circo? Sabe de nada inocente! Porque é alguns acreditam que um Fla x Flu, um Gre-Nal ou uma partida entre o Barcelona, de Messi, Neymar, Suarez, Daniel Alves, Piqué e Iniesta; e o Bayern, de Robben, Müller, Ribéry e Neuer são eventos menos sofisticados do que uma apresentação da Filarmônica de Berlim, do Baden Powell, do Pavarotti ou um filme do Godard? Respondo, à la Rodrigues: preconceito puro! São as mesmas pessoas, estrangeiras nascidas no Brasil, que renegam Genival Lacerda ou Reginaldo Rossi pra aparar babas, na primeira fila do show do Frank Sinatra ou mesmo do João Gilberto ou qualquer outro músico com o pedigree estadunidense ou da zona sul do Rio.

                Não! Não é preciso gostar de futebol para ser brasileiro, essa não é a questão! Problema mesmo é deixar de reconhecer o esporte bretão como um dos elementos mais importantes de nossa constituição. O futebol, como parte do modo de ser brasileiro é ilustrado, magnificamente, pela poética rodrigueana, na fala a seguir:

O que nós procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. É o lindo, o sublime na vitória do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico.

                E, ao falar das elites, não poupa as esquerdas:

Fora as esquerdas, que acham o futebol o ópio do povo, todos os outros brasileiros se juntam em torno da seleção.

                Tal crítica às esquerdas, própria daquele que ficou conhecido como um “maldito”, um “reacionário” entre as esquerdas (aliás, reacionário assumido), tem, na Marcha dos Cem Mil a sua apoteose. Ao falar do evento, o cronista tece comentários nada lisonjeiros:

Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites.

 

E prossegue:

E sabem porque e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em Rússia, ou em Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma palavra, nem por acaso, nem por distração, sobre o Brasil. Picharam o nosso Municipal com um nome único: – Cuba. Do Brasil, nada? Nada.

                É claro que, nestas falas, reflete-se também certo provincianismo do autor, uma dose alta de nacionalismo acrítico, um ufanismo! Tal sentimento, se não tomado em seu extremo, é, em sua visão, exatamente o antídoto contra o complexo de vira-latas. E, neste ponto, seu amor passional pelo Brasil fez com que pudesse vislumbrar, melhor do que ninguém, as tantas virtudes do negro futebol brasileiro, como ao dizer:

É de arrepiar a cena. De um lado, quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris, como uma briosa lavadeira.

Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil, (…) o homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem.

Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios.

Molecagem que, para ele, é claramente uma herança africana (aliás, a palavra moleque é originária do idioma quimbundo). Diz, por exemplo, Rodrigues: Numa simples ginga de Didi há toda uma nostalgia de gafieiras eternas.

                Em suas tantas crônicas, publicadas em grandes jornais durante o tricampeonato brasileiro (e em seus intervalos), Nelson Rodrigues ressalta, por um lado, o puxa-saquismo brasileiro em relação aos gringos e, por outro, a feroz autocrítica às atuações da seleção brasileira (nada mais atual). Diz que o brasileiro não gosta do brasileiro, que é muito difícil elogiar o Brasil no Brasil e, de modo mais rude, questiona: que espécie de prazer, que miserável volúpia, que satisfação demoníaca e suicida leva o brasileiro a cuspir na sua própria imagem, como um Narciso às avessas?

                Nosso comentarista de Brasil associa esta autocrítica à falta de autoestima, dizendo, por exemplo, que do nosso lábio sempre pendeu a baba elástica e bovina da humildade. Afirma Nelson que o brasileiro tem vergonha de assumir-se brasileiro, sente-se mal por ser brasileiro, diz ele:

Não sabemos admirar, não gostamos de admirar. Ou por outra: – só admiramos num terreno baldio e na presença apenas de uma cabra vadia. Ai de nós, ai de nós! Somos o povo que berra o insulto e sussurra o elogio.

Apesar disso também compreende que no futebol, a apoteose está a um milímetro da vaia… a multidão não perdoa em Pelé um passe errado. Como numa relação passional, o ódio está a um milímetro do amor, paradoxalmente diz que em 58 ou 62, o mais indigente dos brasileiros pôde tecer a sua fantasia de onipotência.

É certo que Nelson Rodrigues não aprovaria o desempenho da seleção de Neymar e companhia na última copa e criticaria, como sempre criticou, a influência nefasta dos cartolas. Apesar disso, diferente de todo o preconceito de tantos brasileiros (ou seriam estrangeiros?) contra o futebol, nosso Shakespeare jamais associaria a alienação política de nosso povo com sua paixão pelo futebol. Se estivesse vivo, é provável que sua crítica mordaz o deixasse de fora das redações dos principais jornais, mas, mesmo num blog sujo, Nelson Rodrigues não pouparia a geração de Neymar, Pato, Ganso, Júlio César, Daniel Alves, para a qual, os fãs do mais importante cronista do futebol brasileiro associariam com facilidade os 7 x 1 contra a Alemanha e o retorno do velho Complexo de Vira-latas.

Redação

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