Direitos em disputa: modelos de trabalho e de sociedade na regulação das plataformas de digitais

A presença dos entregadores na cena política tem sido crescente desde o início da pandemia de Covid-19

Rawpixel

Direitos em disputa: modelos de trabalho e de sociedade na regulação das plataformas de digitais

por Andréia Galvão, Patrícia Rocha Lemos e Patrícia Vieira Trópia

O debate em torno das condições de trabalho de entregadores vinculados a plataformas digitais está na ordem do dia. O Ministério do Trabalho e Emprego vem promovendo reuniões para debater a regulamentação dos aplicativos, e novos projetos de lei vêm sendo apresentados ao Legislativo, somando-se aos que já se encontravam em tramitação.

A presença dos entregadores na cena política tem sido crescente desde o início da pandemia de Covid-19, quando se mostraram essenciais para garantir o distanciamento social. Essa importância contrasta com suas péssimas condições de trabalho, marcadas pela informalidade e ausência de direitos. Reiteradas denúncias e reivindicações têm vindo a público, sobretudo a partir do Breque dos APPs, em 2020. A organização dos entregadores se desenvolveu bastante desde então. Ela se faz, majoritariamente, por meio de associações, uma vez que a categoria entende que os sindicatos de motofretistas e motoboys não são capazes de representá-la. Associações de diferentes estados constituíram, em dezembro de 2022, a Associação Nacional dos Entregadores por Aplicativos para fortalecer sua organização e capacidade de intervenção pública. Devido à legitimidade conquistada, a ANEA foi convidada a participar, ao lado dos sindicatos, dos debates sobre regulação do trabalho.    

Enquanto as plataformas defendem o trabalho autônomo com direitos previdenciários, nos moldes do “prestador de serviços independente” proposto pelo PLP 90/2023, do senador Rogério Marinho, as lideranças dos entregadores consideram que restringir a regulamentação à inclusão previdenciária é claramente insuficiente. Ademais, estão cada vez mais convencidas de que o discurso do empreendedorismo que embasa essa proposta é utilizado pelas empresas para transferir ao trabalhador os custos do trabalho, desobrigando-as de pagar os direitos que lhe são devidos. No entanto, não há ainda, entre os representantes dos trabalhadores, uma posição única sobre quais devem ser esses direitos e como garanti-los. Os sindicatos tendem a defender o reconhecimento de vínculo empregatício e a aplicação da CLT, ao passo que as associações se dividem entre a defesa de uma via intermediária entre CLT e trabalho autônomo e a defesa do cooperativismo. A ANEA elaborou uma carta em que propõe “direitos trabalhistas e previdenciários, combinados com flexibilidade (e autonomia)” e a “definição de um estatuto dos trabalhadores de plataformas digitais” que reconheça a presunção de emprego. Mas o desejo de maior autonomia, desenvolvimento pessoal e aumento da renda faz com que parte dos trabalhadores sejam atraídos pelas promessas de trabalho independente.   

A nosso ver, o debate em curso vai além do modelo de regulação a ser aplicado ao trabalho por plataformas. Diz respeito a um modelo de sociedade e de Estado, sobretudo em um contexto em que não há geração de empregos suficientes e no qual os empregos existentes, mesmo aqueles regidos pela CLT, são marcados pela precarização e pela redução de direitos. Ainda que não tenhamos uma dimensão exata do percentual de trabalhadores que são refratários à CLT, em função dos questionáveis resultados das pesquisas existentes, é possível identificar ao menos duas perspectivas nesta recusa: de um lado, argumenta-se que a CLT é muito rígida, sujeita o trabalhador ao despotismo patronal e não lhe garante uma remuneração superior ao salário mínimo. O sonho do negócio próprio e o fetiche da livre iniciativa jogam água no moinho do empreendedorismo, minimizando a importância da proteção estatal. Para essa perspectiva, a formalização do trabalho só interessaria ao governo, que ganharia com a arrecadação de impostos. De outro lado, constata-se que os direitos assegurados pelo emprego com “carteira assinada” são importantes, mas insuficientes e que a CLT precisaria ser aperfeiçoada, quer pela via de novas leis, quer pela via da negociação coletiva (o que supõe o reconhecimento do papel do Estado e dos sindicatos na garantia de direitos).

Para dialogar com os anseios da base, algumas lideranças cogitam que o trabalhador possa optar entre o trabalho autônomo e o assalariamento com registro. Mas o que significa ser autônomo e empreender nesse contexto? Quais as chances de iniciativas de indivíduos dotados de poucos recursos prosperarem e sobreviverem à concorrência com grandes empresas monopolistas? A ideia de que todos são livres para exercer plenamente suas capacidades oculta as desigualdades e reduz as relações sociais à competição por uma posição no mercado. Queremos uma sociedade sem direitos?

Andréia Galvão, professora do departamento de Ciência Política da Unicamp

Patrícia Rocha Lemos, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp

Patrícia Vieira Trópia, professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia

São pesquisadoras da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar das Reconfigurações do Trabalho (Remir-Trabalho)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Me parece que a saída mais promissora para os trabalhadores, nesse caso, é o cooperativismo, a criação de suas próprias plataformas, reguladas e geridas a partir de compromissos pactuados coletivamente pelos próprios trabalhadores.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador