As meninas cantaram pra mim: Teca Calazans, Terezinha de Jesus, Diana Pequeno e Nazaré Pereira

Na primeira viagem que fiz ao Recife, em 1982, para visitar Apipucos, a casa dos Irmãos Maristas, dos quais eu fazia parte como aspirante à vida religiosa, passei pela casa de Gilberto Freyre, o que causou-me algum estremecimento, afinal era a energia do mestre. De lá fomos ao morro da Conceição onde encontrei o Padre Reginaldo Veloso e foi lá, de alguma forma, por algum elemento estranho a minha vontade, que vi pela primeira vez um disco de Teca Calazans. Segurei o vinil, observei a capa detidamente, passei à contracapa e memorizei todas as faixas. Fiquei entusiasmado ao ver na primeira rubrica Coco Verde. Remeteu-me imediatamente ao romance de cordel Coco Verde e Melancia (quando ouvi a música depois, já em Lagoa Seca, a primeira frase é exatamente esta: Coco Verde, Melancia). Mas não foi só, estavam lá Esses Discos Voadores Me Preocupam Demais, de Oliveira Panelas, Desejo de Mouro, de Zé Ramalho, e adaptações da Nau Catarineta, elementos fundamentais em minha formação humana. Comprei esse disco em alguma casa de discos do centro, escondido, para ouvir no silêncio da noite. Acho que foi na Aky Discos. Recife foi meu primeiro alumbramento.

Quando cheguei no Rio, fui morar em Botafogo. Todo domingo, minha vizinha iniciava o dia fazendo faxina no pequeno quarto e ligava a radiola em alto e bom som. Havia um disco rolando insistentemente. A agulha, já meio rombuda, dançava nos sulcos do acetato. Um dia comprei uma agulha numa loja do centro e dei de presente para ela, mas também pensando em mim. Porque naquele época estava surgindo Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal e era isso que se ouvia em quase todas as biroscas. Mas na radiola de Bina eu pude ouvir Terezinha de Jesus e isso mexia demais comigo. Terezinha era potiguar e o disco trazia Pra Incendiar Seu Coração, Quando Chega O Verão, Xote Menina, Flor do Xaxado, Amar quem eu Já Amei, memórias bem desenhadas dentro dos aperreios que eu estava vivendo naquele momento, saudade de casa. Com o salário de meu primeiro emprego, faxineiro decidido, fui comprando discos na Feira de São Cristóvão, no sarrabulho. Este foi o primeiro disco que comprei na vida carioca. Embora não pudesse ouvi-lo, pois não tinha onde rodar, guardei-o, assim como os outros, para a ocasião da compra de meu primeiro toca-discos.

Quando fiz a viagem de retorno à Paraíba para visitar minha mãe já meio adoentada, numa parada qualquer que também não me lembro qual, ouvi numa lojinha de rodoviária uma voz extremamente agradável, cristalina, sem o soprano, quase grave, numa canção do hoje Nobel Bob Dylan. Como gostei daquela versão. Algo místico, mas cheia de reflexões que faziam muito sentido naquele contexto. Diana Pequeno foi uma paixão. Comprei o disco e fui ficando mais liso, mas com uma alegria, mesmo esperando mais dois dias para poder escutá-la na casa de mamãe. Depois exerci meu costumeiro caminho pelos sebos e feiras, de Campina Grande, o antigo Cata Livros, na Rodoviária velha, e pelo brejo, até Guarabira, em busca de mais coisas dessa cantora cheia de atitude. Lembro bem que nesse disquinho com a versão para Bob Dylan, havia a faixa Cancão de Fogo, lembrança do cordel, mas sobretudo ao pássaro maravilhoso e seu canto quente. Nessa letra, a alusão a Açum Preto se traduz numa quebra de sina, pois “mais que Açum Preto cego, eu sou Cancão de Fogo”.

Quando cheguei em casa, meu irmão Cacuruta, compreendendo meu gosto por essas canções preparava-me uma surpresa. Ele tinha ido fazer um trabalho numa madeireira entre o Maranhão e o Pará, lugares, naquela época brasileira, tão distantes que a imaginação não conseguia alcançar. Dessa viagem, além dos discos de Paulo Sérgio e Evaldo Braga, trouxera-me um elemento novíssimo, uma cantora da qual jamais ouvira qualquer referência: Nazaré Pereira. Olha, quando rodei esse disco, naquela noite areense, com o barulhinho da chuva nas telhas e nas plantas do quintal, a cobra d’água descendo das biqueiras, encolhi-me como um feto querendo retornar às entranhas da terra. Era uma cantora com o sobrenome do meu pai, vivendo em Paris, mas com vida oriunda dos seringais. O disco Amazônia era uma síntese da formação nordestina de Nazaré com pitadas florestais. Abria com Xapuri do Amazonas, um xote com letras maiúsculas, embrião em Gonzaga, e fechava com um Boi Bumbá. Mas a canção que mexeu com meus pontos cardeais foi Flecha de Fogo, um ponto de umbanda com tambores e maracás, agogôs e muitas palmas de mão. Entrei em transe.

Redação

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