O jornalista que não fui…

O jornalista que não fui

“E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.”
Lucas, cap. IV, vs. 5-8.

No lançamento de um livro do Luis Nassif, muitos anos atrás, ele escreveu-me uma dedicatória que me marcou muito. Marcou para o mal. Dizia: “Para o meu amigo jornalista Caiubi que teve o bom senso de não ser”. O que o Nassif chamou naquele momento de “bom senso” foi, na verdade, a grande frustração da minha vida: não ser jornalista, a não ser por formação acadêmica.

Sempre acreditei e ainda acredito que o jornalismo é a mais nobre das profissões. Os jornalistas são seres especiais que Deus colocou na sociedade e lhes deu a missão de observar, com olhos críticos e pensamento profundo, o que acontece à sua volta e compartilhar isso com as pessoas de sua comunidade para que elas possam decidir com mais propriedade como querem conduzir seu futuro.

Apesar de alguns desvios – pela militância política, pela vida ligeiramente devassa – tratei de dar substância aos meus desejos profissionais. Saí de Poços de Caldas, no sul de Minas, fui para o Rio estudar jornalismo, estagiei no Jornal do Brasil e estava pronto para o segundo passo da minha carreira: voltar para Poços de Caldas e editar um novo jornal na cidade.

E foi o que fiz em 1977, não sem antes me casar com a Eva, uma argentina maravilhosa por quem me apaixonei perdidamente no Rio e com quem estou casado até hoje.

E, em Poços de Caldas, em parceria com o Luis Nassif e o Sérgio Manucci, fundamos o dois pontos, um jornal semanal, tamanho tabloide, com 12 páginas. O Nassif, na ocasião, trabalhava na Veja, morava em São Paulo e ia para Poços nos finais de semana para o fechamento da edição semanal. O Sérgio Manucci era professor e dava aulas dia e noite. E eu tinha dedicação exclusiva para o dois pontos.

Era uma trabalheira danada: fazíamos as reportagens, redigíamos as matérias, fazíamos a diagramação (caneta nanquim para os fios, letraset para as manchetes) acompanhávamos a impressão e distribuíamos nas bancas. Além, é claro, de vender publicidade e assinaturas.

Um trabalho insano, mas compensador. O jornal foi um sucesso na cidade pequena: os leitores esperavam ansiosos pela circulação, nas terças-feiras, e abundavam anunciantes. A genialidade do Nassif, no comando da redação, e o trabalho de mouros do Sergio Manucci e meu (e da Eva, que acabou aprendendo aplicar letraset) garantiam isso.

Sucesso até a página dois: vocês não imaginam como é fazer jornalismo no interior. Não existia internet – estávamos em 1977 – e não acontecia absolutamente nada na cidade. Passei noites e noites na delegacia jogando dominó com presos e policiais. Às vezes a polícia era acionada, mas nunca passava de uma briga de bêbados que não merecia nem uma nota no dois pontos.

A alternativa, então, foi passar a fazer crítica à política local, dominada por duas famílias de fazendeiros – os Junqueira e os Carvalho Dias – que tinham como testas de ferro os Navarro Vieira. Foi uma decisão difícil, ninguém queria magoar a Maria Junqueira, paixão de todos nós.

Mas não havia outra forma. Todos nossos artigos agora tinham cunho político ou cultural. Na política, dedicávamos uma página inteira à Câmara Municipal que, na verdade, era um circo. Havia um vereador que se chamava Jeremias Amaral que, nas reuniões semanais, falava idiotices sem tamanho. O Nassif criou então, as “Jeremíadas” que recebiam numeração romana e se tornaram o maior sucesso do jornal. A última publicada foi a Jeremíada XXXVI.

Com esse novo viés, mantivemos os leitores fiéis mas os anunciantes, não. Ninguém queria anunciar num jornal que se posicionava contra os Junqueira, os Carvalho Dias e os Navarro Vieira.

O jornal estava à beira da falência quando recebi um convite inesperado: um cargo de Assessor de Imprensa da multinacional Alcoa Alumínio que havia inaugurado uma fábrica na cidade. Era a glória: a Alcoa pagava salários jamais vistos na região e tinha um plano de saúde maravilhoso. Arrumar emprego na Alcoa era ganhar na loteria. E eu precisava muito de um plano de saúde porque a Eva estava grávida.

Negociei com a Alcoa que iria trabalhar lá desde que eu pudesse manter também o dois pontos. Condição aceita, fomos em frente. Afinal, pra quê dormir? De dia na Alcoa, de noite no dois pontos.

Acontece que, com a Alcoa, nos veio uma nova e irrecusável pauta: o desmatamento para a mineração a céu aberto, a dúvida em relação à validade dos decretos de lavra, a isenção de impostos concedida pela prefeitura… A essa altura o Nassif, atribulado na Veja, já tinha desistido da empreitada, não tinha mais como vir nos finais de semana. Tinha trocado a editoria de música, com o Tarik de Souza, pela de economia. Mas eu e o Sérgio Manucci não podíamos abrir mão do desafio.  E fomos em frente, falando mal da Alcoa a cada edição.

“Afinal, de quem é o alumínio da Serra de São Domingos?” dizia a manchete do último número do dois pontos. No dia seguinte, logo que cheguei na Alcoa, a minha gerente Marília Gonzaga de Lima e Silva me disse: “o Bob quer falar com você”. Referia-se ao Robert Slagle (será?) o gringo que era o Gerente Geral da Fábrica.

Fui lá com a certeza de que estava sendo demitido. Para minha surpresa, ele recebeu com um enorme sorriso e com o seguinte discurso, inicialmente em português: “que eles, americanos, admiravam muito o jornalismo, veja nossa constituição, veja Watergate e o que aconteceu com o Nixon… mas você está me colocando numa situação muito delicada. Meu chefe nos Estados Unidos, disse ele, me perguntou quem era o jornalista que estava escrevendo contra a Alcoa e eu tive que dizer a ele que era o nosso Assessor de Imprensa! Imagine como ele ficou bravo e eu dou toda razão a ele!”.

Era, realmente, uma situação ridícula. Eu, o Assessor de Imprensa, que tinha informações privilegiadas era o maior inimigo da operação da Alcoa em Poços de Caldas.

Bob me fez, então, a proposta fatal: “você continua trabalhando na Alcoa, a Marília vai arrumar uma vaga para você na área de Recursos Humanos, mas você tem que abandonar o jornal. Se não for assim, não posso mais mantê-lo na minha folha de pagamento.

Não hesitei um minuto. Teria que fechar o dois pontos de qualquer forma, a gráfica nos dera um ultimato para pagar os seis meses atrasados. Mas, mais importante que isso, meu filho ia nascer em uma semana…

Foi assim que começou e terminou minha carreira de jornalista. Penso, penso e penso e não sei se hoje estou arrependido ou não. Mas trabalhei por 20 anos na Alcoa.

Caiubi Miranda

Redação

8 Comentários

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  1. Meu caro Caiubi:
    Linda

    Meu caro Caiubi:

    Linda história. Ela deve ter se repetido por várias cidades

    desse Brasil imenso e conheço bem de perto, pertissimo,

    muitas delas. Somos humanos e não convivemos muito

    bem com a insegurança, diferentemente dos personagens

    de Lucas IV – 5.8..  Esteja certo, suas contribuições vieram

    de outras formas e fontes.

  2. Caiubi,
    também morei em Poços

    Caiubi,

    também morei em Poços na mesma época. Me lembro de você, de antes do Dois Pontos, ali pelo Bachianinha, mas sei que você não tem como se lembrar de mim, pois eu era ainda muito garoto no 68 da nossa vida – eu tinha 16 anos. Lembro da Marília, que era amiga da minha irmã Vera Luiza, ex-secretária na Alcoa, de algum daqueles americanos. 

    O que quero te dizer é que você fez o que pôde. E não foi pouco: denunciou a situação, peitou a “Junqueirada”, fator maior de atraso de Poços de Caldas, que por causa deles todos foi passando de linda vila de montanha para o que temos hoje – uma cidade já bastante verticalizada, com  edifícios tampando a visão do povo, piorando o trânsito por causa do fator adensamento, etc e sem que tudo isso fosse discutido a fundo com a população.

    Por isso, fique em paz com a sua consciência.

    Um abraço

     

  3. Uma história do “deixa a vida

    Uma história do “deixa a vida me levar”. Muito mais frequente do que usualmente se admite. Poucos entretanto a confessam . Seja feliz, você merece.

  4. Perdemos um bom jornalista, porem a vida…

    Caro Caiubi, o sonho que você,o seu companheiro Sérgio Manucci, e o Nassif sonharam, foi muito parecido com os sonhos da maioria de jovens sonhadores, como eu, que tambem antevia um país, aonde um jornalista tivesse liberdade para espressar suas opiniões e ter independencia para formar opiniões, e ganhar o sustento, para criar sua família, porem assim como você, o poderío economico das grandes empresas jornalísticas, e o escasso mercado de trabalho, não nos poupou, e contam-se nos dedos, quem conseguiu sobreviver no jornalismo, sem ceder aos patrões, e virar um “garoto de recados” perdendo a identidade, e conseguir destaque na mídia alternativa, e aí, palmas para o seu ex-sócio e colega, o nosso amigo Luis Nassif.

    Graças a Deus, você fez carreira e deve ter conseguido viver com dignidade, na iniciativa privada, assim como este humilde escriba, que tambem teve que sair do sonho do jornalismo, para virar um gestor de negócios, numa empresa privada, e fazer política fora do “ninho” no qual sonhei militar.

  5. Do trio, um “vingou”.

    Estatisticamente, de cada 100 jornalistas que saem da faculdade, cheios de sonhos e utopias, apenas 30% deles, chegam a exercer a profissão, e de cada 100 jornalistas, 1% chega ao estrelato, ou pelo menos a grandes postos em grandes veículos de comunicações de massa, e de uma pequena cidade, de 3 sonhadores, um conseguiu a notoriedade de um Luis Nassif, o Caiubi, e o Sérgio Manucci,devem ter orgulho de terem pertencido a uma geração vitoriosa, que engrandece a tradição Caldense.

  6. Experiências são
    Experiências são importantes.. talvez vc passou por isso pra deixar essa mensagem publicada e muitos como eu ter a oportunidade de aprender e apreciar seu artigo.

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