Por: Eliana Rezende
Como se traduz o mundo que vivemos em um texto?
Vejo nas áreas de humanidades e em especial no meu caso, uma vontade imensa de ‘beber o mundo’ e depois o colocar em tintas sobre papel. Uma tarefa árdua, já que o humano e suas dimensões transcendem nossas possibilidades circunscritas a um espaço recluso em papéis, tintas e outros formatos.
Nem tudo cabe nas entrelinhas e traduzir tantos paradoxos e diversidades muitas vezes beira ao um trabalho insano tomado à punho por poucos. As sociedades se complexificaram e cada vez mais falta-nos condições de compreender e analisar tudo o que nos ocorre.
A modernidade vive cada vez mais paradoxos:
Apartamentos cada vez menores encontram no mercado móveis e TVs cada vez maiores.
Se a casa aumenta em tamanho perde em número de moradores. As famílias cada vez mais vivem o imperialismo dos filhos únicos. Os aparelhos domésticos mais usuais tornam-se cada vez mais complexos e compartimentados em funcionalidades para facilitar atividades domésticas, e cada vez mais comemos em fast foods!
Produzimos mais alimentos em diversidade e quantidade ao mesmo tempo que desperdiçamos de formas muito mais grandiosas e eficientes.
Competência na arte de perder e desperdiçar.
Os veículos cada mais potentes e com tecnologias que o fazem sair do ponto V0 ao V10 em segundos são sepultados entre tantos outros de igual formato, que perfilados entopem vias e consomem seus combustíveis altamente tecnológicos e desenvolvidos em laboratórios de ponta. Transforma-se apenas e tão somente em chapas metálicas que engaiolam seus usuários e os mantém presos em um congestionamento, algo muito distante da ideia de liberdade e movimento.
Flores, frutos e espécies paisagísticas são cada vez mais pesquisadas e cultivadas para casas que se estreitam em terrenos e se cobrem de concretos ou se erguem em edifícios que comprimem pessoas e objetos. Pontes estaiadas e rodovias se espalham por áreas urbanas aumentando trechos para que os congestionamentos tenham onde ir e se espalhar.
Tecnologias e plataformas favorecem compartilhamentos na exata medida em que se torna mais fácil o botão curtir do que o gesto de trocar, tocar, escutar…
Produzimos quantidades massivas de dados, números, estatísticas que ninguém lê, vê ou sabe para quê servem! Quem se importa com tantos infográficos?!
Criam-se jargões em profusão na razão inversamente proporcional à originalidade criativa de ideias e conteúdos.
Empobrecidos….opacos…repetitivos em fórmulas, palavras, feitos e desfeitos. E são tantos! Tudo é inteligente, estratégico, inovador, criativo…palavras que em verdade nada significam. Desprovidas de valor, significado, contextos.
Informações abissais geram um mar revolto de dados, onde a maioria se afoga e se perde entre uma braçada e outra. O mundo em conexão mostra dia a dia como as sociabilidades e convívios pessoais são cada vez mais raros. Intermediadas todo o tempo, as relações simplesmente se desterritorializam: habitam um locus virtual onde estar significa apenas a distância e o alcance de um clique.
Tradutores instantâneos simulam estreitamento de pares que possuem idiomas diversos. Mas a construção de parágrafos é cada dia mais difícil e rara: um mundo que dia a dia se simplifica a 140 toques e no máximo uma imagem.
Produzimos imagens de tudo e de todas as partes para a seguir ser descartadas pela próxima que vem no instante seguinte. Afinal quem se lembrará da anterior? Para quê servirá?
Um mundo que orbita e se vangloria de ampliação dos espaços virtuais e globais, vê barreiras ideológicas se erguerem por territórios, etnias, gêneros, religiões, culturas levando morte, destruição, genocídios, extermínio aos que dividem os mesmos espaços e fronteiras. Intolerâncias, desrespeito e ódio ao diferente.
A indústria farmacêutica avança em pesquisas e remédios e, cada vez mais, doenças se alastrarem e dizimam territórios inteiros. A expectativa de vida aumentou, ao mesmo tempo que relações emocionais perderam anos de sua vida útil. Longevidade de casamentos e relacionamentos assistem uma franca diminuição de seus tempos de parceria. Laços emocionais ou familiares rompem-se em razão inversamente proporcional ao tempo de vida que conseguimos acumular.
A vida simplesmente não basta a mais ninguém. O produto de consumo é a juventude eterna! Silicones, pílulas e cirurgias plásticas simulam aprisionar um tempo que já passou. Encastelada em um corpo refeito ano a ano a mente envelhece e descobre o hiato cada vez maior entre o ser e o ter.
São tantas as perguntas, os paradoxos! E tão poucas as respostas…
Maurice Blanchot disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas.
De fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa-de-força na qual ele definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que a condição humana implica a cada momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também mente, pois declara que as contradições e as incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas — efeitos de erros linguísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.
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Publicado originalmente no Blog Pensados a Tinta
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