Os dez anos da Lei de Responsabilidade Fiscal

Do Valor

Licença para gastar

A Grande Recessão fez a política fiscal retomar a importância perdida desde que Lord Keynes saiu de moda. Nas últimas duas décadas, os economistas esperavam apenas que os governos controlassem os seus gastos, para evitar a explosão das dívidas públicas. Agora, também admitem atuação fiscal mais flexível, contra recessões, desde que se faça depois a recomposição orçamentária.

O sinal definitivo de que se vivem novos tempos foi dado em texto recente do economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Olivier Blanchard, no qual ele reconhece que a política fiscal anticíclica é uma importante ferramenta de política econômica. Nada extraordinário para economistas mais heterodoxos, mas um passo surpreendente quando vindo de uma das instituições do chamado Consenso de Washington.

“A Grande Recessão colocou mais interesse no papel estabilizador da política fiscal”, afirma a economista italiana Teresa Ter-Minassian, uma das maiores autoridades do mundo na área, que no ano passado se aposentou no comando do departamento de assuntos fiscais do FMI.

Essa reviravolta ocorre justamente quando a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma das bases do atual ciclo de prosperidade econômica no Brasil, completa dez anos. E também quando, por questões essencialmente fiscais, algumas importantes economias mundiais estão de cabeça para baixo, colocando em risco a ainda débil recuperação mundial.

Na Europa, a Grécia negocia um pacote de socorro com o FMI, cujo remédio mais provável serão dramáticos cortes de despesas para controlar um déficit público que chega a impressionantes 13,6% do produto interno bruto (PIB). Ainda há dúvidas se o severo ajuste vai ser suficiente para acalmar os mercados financeiros, mas é certo que jogará a economia grega ainda mais para baixo, exatamente quando são necessários novos estímulos fiscais para reanimá-la.

Também acuados, Portugal, Espanha, Itália e Irlanda são obrigados a dizer como vão colocar as contas públicas em ordem. Assim, também abrem mão do único instrumento disponível – a política fiscal – para evitar o prolongamento de suas recessões. A adesão ao euro impôs, por consequência, a renúncia às desvalorizações cambiais para estimular suas economias.

Nos Estados Unidos, o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, alerta insistentemente que é urgente anunciar medidas críveis para corrigir um déficit público que chega a 11% do PIB. A economia dá sinais de retomada, mas ninguém pode dizer com certeza absoluta que o crescimento é sustentável, diante da debilidade do mercado de trabalho e do crédito bancário. Estados e municípios americanos, por outro lado, veem-se obrigados a cortar drasticamente serviços públicos essenciais, como escolas e hospitais, devido à queda da arrecadação, às regras que limitam o endividamento e ao congelamento dos mercados para títulos de governos locais.

Maior financiadora da dívida pública dos Estados Unidos, com uma carteira de US$ 877 bilhões, a China ameaça deixar de comprar títulos do Tesouro americano, cujos preços tendem a cair por que o mercado financeiro começa a duvidar da sustentabilidade da economia do país.

Até o início da Grande Recessão trazida pela crise financeira americana, a política fiscal era um terreno mais ou menos pacificado, pelo menos dentro do pensamento econômico dominante. O equilíbrio das contas públicas, acreditava-se, era suficiente para garantir um ambiente estável para o crescimento econômico. Os países haviam encontrado um instrumento poderoso para manter as contas públicas em ordem: as leis de responsabilidade fiscal, que, na essência, servem para evitar que os governos gastem muito acima do que arrecadam. Na Europa, havia também o Pacto de Crescimento e Estabilidade, que limita os déficits nominais dos países membros da zona do euro a 3% do PIB e a as dívidas, a 60% do PIB.

A Nova Zelândia foi o primeiro país a adotar uma lei de responsabilidade fiscal, em 1995. Curiosamente, foi o mesmo país que abraçou, à frente de todos, um regime de metas de inflação, cinco anos antes. Os dois sistemas, embora lidem com assuntos bem distintos, têm algo em comum. São regras que limitam a discricionariedade dos governantes, ou seja, a liberdade para que tomem decisões por conta própria. Estabelecem limites e alvos muito concretos para as políticas monetária e cambial.

“Os limites foram estabelecidos por razões muito boas”, afirma Teresa Ter-Minassian, que estará nesta semana em Brasília, a convite da FGV Projetos, para participar de seminário que marca os dez anos da Lei de Responsabilidade Fiscal. “O excesso de ativismo fiscal leva ao desequilíbrio das contas públicas.” (Leia entrevista na pág. 7.)

A Grande Recessão mudou os paradigmas. Blanchard, do FMI, faz uma profunda revisão do papel da política fiscal no texto “Repensando a Política Macroeconômica”, escrito em conjunto com Giovanni Dell’Ariccia e Paolo Mauro, divulgado em fevereiro. Depois da Grande Depressão iniciada em 1929, afirma, a política fiscal foi vista como o instrumento central de política econômica, seguindo os ensinamentos de Keynes. Políticas monetária e fiscal caminharam juntas nas décadas de 1960 e 1970, como ferramentas capazes de atingir dois objetivos distintos, os equilíbrios interno e externo da economia. Nas duas últimas décadas, porém, período que ficou conhecido como a Grande Moderação, com crescimento estável e inflação baixa, a política fiscal foi levada a um papel secundário em relação à política monetária.

A Lei de Responsabilidade Fiscal do Brasil foi escrita dentro do contexto da Grande Moderação. Representou um passo crucial para impor disciplina às contas públicas, que se seguiu a uma sequência de avanços estruturais nos anos anteriores, como a extinção da conta movimento do Banco do Brasil, a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, a renegociação das dívidas dos Estados e o socorro e privatização de seus bancos.

Hoje, as leis de responsabilidade fiscal estão em uma encruzilhada. De um lado, afirma-se que não foram rigorosas e abrangentes o suficiente para evitar o surgimento de novos desequilíbrios fiscais. De outro lado, são apontadas como severas demais, impedindo o uso pleno de políticas fiscais em períodos de recessão.

Os especialistas começam a juntar os cacos e, com base nas boas experiências nos mais diversos cantos do mundo, como a do Chile, tentam construir um modelo ideal de lei de responsabilidade fiscal, que seja rigorosa o suficiente para evitar crises de solvência pública, mas que também permita a flexibilização da atuação fiscal, para permitir o ataque a recessões.

A solução mais citada são as políticas fiscais anticíclicas, presentes, por exemplo, no Chile, como também na Alemanha e na Suíça. O princípio por trás desse sistema é o de que os governos devem economizar mais quando a economia se expande, formando um colchão para ser gasto nas desacelerações econômicas.

Entram em ação também os chamados estabilizadores automáticos, termo técnico para aumentos de despesas ou cortes de impostos que estimulam a demanda nas recessões. Alguns exemplos são os pagamentos de auxílios a desempregados, o corte de alguns impostos sobre bens de consumo e uma carteira de obras públicas para execução imediata.

As leis de responsabilidade fiscal também devem, daqui por diante, prever válvulas de escape. Se o cenário econômico for excepcionalmente sombrio, abandonam-se as regras e abrem-se as torneiras do gasto público. O essencial, dizem os especialistas, é assegurar algum tipo de vigilância, para impedir que governantes utilizem esse expediente para patrocinar farras fiscais, além de preestabelecer um caminho para a despesa pública retomar o caminho virtuoso.

Luis Nassif

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