EEUU 2011

EEUU, 2011

 

Da Carta Maior

 O pior acordo do mundo

 Governar para os ricos e esquecer-se dos mais pobres e da classe média era a acusação de Obama contra Bush e trilha sonora de seus empolgados discursos. Agora, tornou-se o veneno que o presidente Democrata bebe em uma taça e oferece em brinde ao povo americano.

A política dos Estados Unidos sofreu um profundo abalo. As consequências do malfadado acordo da dívida norte-americana ainda estão por vir, mas o fantasma da grande crise de 2008 e 2009 voltou a assombrar. Há sinais tétricos que, para alguns analistas, são o prenúncio de uma grande tempestade global. O pior acordo do mundo é também o pior acordo para o mundo. Recessão, inflação, desemprego, quebradeiras. Mas é na política onde moram as maiores ameaças de choro e ranger de dentes.

Em 2008, havia retornado uma sensação que não era sentida desde 1929: a de que a economia americana não é nada previsível nem plenamente confiável. O rebaixamento feito por uma conhecida agência de risco é um efeito retardado. As agências começam a soar o alarme três anos depois do cadeado ter sido arrombado.

A crise que se abre a partir de agora derrama um outro ingrediente: os EUA não inspiram confiança em sua tão propalada estabilidade política. Enquanto se olha para as bolsas de valores e para as notas das agências, o elefante do movimento ultraconservador “Tea Party” voa sobre a cabeça de todos sem que muitos tenham ainda dado conta de seu peso.

O processo político adquiriu uma nova dimensão a partir do desenlace da negociação patrocinada por um presidente que se deixou fazer refém de uma minoria e não sabe como enfrentar suas ameaças. Guardadas as devidas proporções, Obama assinou seu Tratado de Versalhes. Assim como os comandantes alemães tentaram vender a ideia de que a humilhação de Versalhes era uma vitória de todos os que queriam o fim da I Guerra, custasse o que custou, Obama posa como satisfeito com o acordo que espantou o risco de “default”. Todavia, da forma como se livrou do calote, o presidente conjurou outros pesadelos.

O plano de contingência de Obama tinha algumas alternativas tradicionais, como a de simplesmente emitir mais dinheiro para pagar a dívida, uma solução precária, pois traria um elevado risco inflacionário. Entre a inflação e a recessão, Obama preferiu a segunda, com o desemprego como âncora.

A saída mais ousada seria invocar a décima quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos como justificativa para aumentar o teto da dívida por decreto, sem pedir autorização ao Congresso. Obama descartou a opção alegando que seus advogados o haviam desaconselhado. É a demonstração cabal de que não percebeu o momento que está vivendo e não teve a postura de outros presidentes que, diante de conjunturas críticas agudas, tomaram decisões ousadas que levaram à reinterpretação das leis pela própria Suprema Corte daquele país. Também parece que não entendeu que a Presidência da República é algo importante demais para ser um assunto restrito a advogados.

Obama menos ainda parece ter entendido que o jogo partidário mudou com a entrada em cena do movimento “Tea Party”, cujas marcas registradas são a intolerância, o preconceito e a xenofobia. Seus representantes políticos são agressivos, armados e perigosos. Suas expressões de velhos vícios políticos aparecem embaladas sob a roupagem de uma defesa das “tradições americanas”.

O movimento controla uma parcela do Partido Republicano, mas tem demonstrado base social suficiente para desmoralizar iniciativas bipartidárias. Em situações que por lá são classificadas como de “governo dividido” (quando o presidente da República é de um partido, mas o Congresso tem maioria opositora), as soluções surgiam de acordos para se encontrar um meio termo. Com o avanço do “Tea Party”, parece que a brincadeira acabou.

Obama não considerou o “default” como uma possibilidade; o “Tea Party”, sim. O que isso quer dizer? Enquanto os ultraconservadores cogitaram levar o país ao calote, mantiveram a ofensiva e colocaram o presidente nas cordas, golpeando-o sem dó nem piedade. Ao recusar a hipótese como igualmente válida, Obama abriu a guarda. Antecipou sua posição de que qualquer coisa seria melhor que o calote.

Dias depois do acordo, já não se tinha tanta certeza. Descortinou-se um pessimismo absoluto em relação à possibilidade de recuperação da economia e melhoria das contas do setor público. Os EUA estão em dependência estrutural de déficits públicos elevados. No momento em que mais precisa injetar recursos na economia, sofre um dos mais pesados cortes de gastos de sua história.

Por que o calote não era de fato uma alternativa para Obama? A rigor, porque, nos EUA, trata-se de uma heresia em termos de receituário econômico. Mas há uma razão mais concreta. Fosse o calote uma opção, colocaria Obama diante do mesmo dilema: cobrar a conta dos ricos ou dos mais pobres? Numa situação de “default”, o presidente teria que decidir sobre uma diretriz essencial: qual a prioridade de gastos, com menos dinheiro que o necessário para custear todas as suas obrigações? Pagar juros da dívida e gastos de guerra? Ou destinar recursos para programas sociais e para financiar gastos da classe média? Adivinhe qual seria a escolha.

Erro crasso de avaliação é Obama achar que o acordo lhe permite uma reserva de combustível suficiente para se reabastecer nas próximas eleições. É como jogar o carro em ponto morto diante de uma ladeira. Pensa que poderá culpar os ultraconservadores pelos problemas que dobrarão de tamanho, a partir de agora. Sua plataforma de 2008, guardada como viola no saco, seria a mesma da próxima campanha.

Mas nem mesmo os Democratas estão convencidos disso. Metade de seus deputados votou contra o acordo. A outra metade votou a favor para garantir a aprovação. Os parlamentares que não marcaram posição contrária declararam-se publicamente constrangidos por aceitar uma situação que mostra que o governo optou pelos mais ricos e rifou os mais pobres.Governar para os ricos e esquecer-se dos mais pobres e da classe média era a acusação de Obama contra Bush e trilha sonora de seus empolgados discursos. Agora, tornou-se o veneno que o presidente Democrata bebe em uma taça e oferece em brinde ao povo americano.

Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5150


30 Years Ago Today: The Day the Middle Class Died 

O dia em que a classe média americana morreu

Michael Moore
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

05/08/2011

 Amigos, volta e meia, alguém, com menos de 30 anos, me pergunta: ”Quando começou tudo isso, os EUA despencando ladeira abaixo?”Dizem que ouviram falar de um tempo em que os trabalhadores norte-americanos podiam sustentar a família e mandar os filhos à escola, só com o salário do pai (nos estados da Califórnia e de New York, por exemplo, o ensino era quase gratuito). Que quem quisesse salário decente, encontrava. Que as pessoas só trabalhavam cinco dias por semana, oito horas por dia, descansavam nos fins de semana e, no verão, tinham férias pagas. Que muitos empregos eram protegidos por sindicatos, de empacotadores nas lojas ao sujeito que pintava sua casa, o que significava que, por menos ‘elevado’ que fosse o seu trabalho, você tinha garantia de aposentadoria, aumentos de salário vez ou outra, seguro-saúde, e alguém que o defendia, se você fosse desrespeitado ou tratado de modo injusto. Os mais jovens ouviram falar desse tempo mítico – mas não é mito: esse tempo existiu. E quando perguntam “Quando isso acabará?”, sempre respondo: “O que acabou, acabou há exatos 30 anos, dia 5/8/1981”. Naquele dia, há 30 anos, a Grande Finança e a direita norte-americana decidiram “ir pras cabeças” de uma vez por todas e destruir os homens comuns, toda a classe média. E enriquecerem eles mesmos, só eles, a valer.E conseguiram.Dia 5/8/1981, o presidente Ronald Reagan demitiu todos os empregados sindicalizados do Sindicato dos Controladores de Tráfego Aéreo [orig. Air Traffic Controllers Union, PATCO] que desobedeceram sua ordem para que voltassem ao trabalho e declarou ilegal o sindicato deles. Estavam em greve há apenas dois dias.Foi gesto violento. Ninguém antes jamais se atrevera a tanto. E foi ainda mais violento, porque o PATCO foi um dos três únicos sindicatos que haviam apoiado a candidatura de Reagan à presidência! A decisão de Reagan disparou uma onda de choque que atingiu todos os trabalhadores nos EUA. Se fez o que fez contra sindicato que o apoiara, o que mais faria contra nós?Reagan tivera o apoio de Wall Street nas eleições à Casa Branca e eles, aliados aos cristãos de direita, queriam “reestruturar” os EUA e fazer recuar a maré que aumentava desde o primeiro governo do presidente Franklin D. Roosevelt – maré que visava a garantir melhores condições de vida aos trabalhadores norte-americanos da classe média, as pessoas comuns. Os ricos detestaram ser obrigados a pagar melhores salários e a garantir benefícios. Mais ainda, odiavam ter de pagar impostos. E desprezavam os sindicatos. Os cristãos de direita odiavam tudo que cheirasse a socialismo ou desse qualquer sinal de estender a mão às minorias ou às mulheres. Reagan prometeu pôr fim a tudo aquilo. Então, quando os controladores de tráfego aéreo declararam-se em greve, ele aproveitou a ocasião. Ao demitir todos e ao tornar ilegal seu sindicato, enviou mensagem clara e violenta: acabava ali o tempo da vida decente e confortável para as pessoas comuns. Os EUA, daquele dia em diante, passavam a ser governados do seguinte modo:* Os super-ricos ganharão mais, mais, mais, cada vez mais dinheiro, e o resto de vocês terão de satisfazer-se com as migalhas que sobrarem das mesas deles.* Todo mundo terá de trabalhar! Mãe, pai, adolescentes, todos! O pai, que consiga um segundo emprego! Crianças, não percam a chave sobressalente! De agora em diante, pai e mãe só chegarão em casa para metê-los na cama!* 50 milhões de norte-americanos terão de viver sem seguro-saúde! Empresas serviços de saúde: encarreguem-se, vocês mesmas, de decidir quem querem atender e os que não serão atendidos.* Sindicatos são a casa do demônio! Ninguém será sindicalizado! Gente comum não precisa de advogado nem de defesa! Trabalhador tem de trabalhar. Calem o bico e voltem à fábrica. Não, ninguém pode sair. O trabalho não está feito. As crianças, em casa, que preparem o próprio jantar.* Quer estudar? Na universidade? OK. Basta assinar as promissórias, e você estará endividado pelos próximos 20 anos, preso a um banco, até ficar velho!* Aumento? Que aumento? Volte ao trabalho e cale o bico!E assim foi. Mas Reagan não conseguiria, sozinho, fazer tudo que fez em 1981. Contou com uma grande ajuda: da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (orig. American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations – AFL-CIO [1])A maior organização de sindicatos dos EUA disse aos trabalhadores que furassem os piquetes da greve dos controladores de tráfego aéreo e voltassem ao trabalho. E foi o que os empregados sindicalizados fizeram. Pilotos, comissários de bordo, encarregados de bagagens, motoristas de empilhadeiras, carregadores – todos furaram os piquetes e ajudaram a pôr fim àquela greve. E todos os sindicalizados furaram todas as greves e continuaram a encher os aviões de carreira. Reagan e Wall Street quase nem acreditaram no que viram! Centenas de milhares de trabalhadores, apoiando a demissão de outros trabalhadores, sindicalizados como eles. Foi um Papai Noel em agosto, para as grandes empresas dos EUA. E foi o começo do fim. Reagan e os Republicanos sabiam que se safariam – e safaram-se. Cortaram impostos dos ricos. Tornaram impossível organizar sindicatos nos locais de trabalho. Eliminaram leis de segurança no trabalho. Ignoraram leis antimonopólios e permitiram milhares de fusões entre empresas, com muitas empresas vendidas para serem fechadas. As empresas congelaram salários e ameaçaram os trabalhadores com a chantagem da transferência de empresas e empregos para o exterior, caso não aceitassem trabalhar por salários menores e sem garantias nem benefícios. E os trabalhadores aceitaram trabalhar por menores salários… E mesmo assim as empresas mudaram-se para o exterior, levando com elas os nossos empregos.E em cada passo desse processo, a maioria dos norte-americanos também se deixou levar. Praticamente não houve nem oposição nem resistência. As “massas” não se levantaram nem defenderam seus empregos, suas casas, a escola dos filhos (consideradas das melhores do mundo). Apenas aceitaram o destino e curvaram-se.Muitas vezes me pergunto o que teria acontecido se todos, simplesmente, tivéssemos deixado de viajar de avião, ponto final, em 1981. E se todos os sindicatos tivessem dito a Reagan “Devolva os empregos dos controladores, ou fechamos o país: ninguém entra e ninguém sai.” Sabem o que teria acontecido? A elite corporativa e Reagan, seu moleque de recado, teriam afinado.Mas não fizemos nada disso. E assim, pedaço a pedaço, peça a peça, ao longo dos 30 anos seguintes, os que passaram pelo poder destruíram as pessoas comuns nos EUA e, em troca, desgraçaram o futuro de, no mínimo, uma geração de jovens norte-americanos. Os salários permaneceram estagnados durante 30 anos. Basta olhar as estatísticas e vê-se que toda a perda de tudo que hoje tanta falta nos faz começaram no início de 1981 (assista: cenas de meu último filme, que ilustram isso). Tudo começou no dia 5 de agosto, há 30 anos. Foi dos dias mais terríveis em toda a história dos EUA. E deixamos que acontecesse. Sim, eles tinham o dinheiro, a imprensa e os policiais. Mas nós éramos 200 milhões! Quem duvida de que teríamos vencido, se nós, todos os 200 milhões de enganados, ficássemos realmente furiosos e decidíssemos recuperar para nós o nosso país, nossa vida, nosso trabalho, nossos fins de semana, nosso tempo para educar e ver crescer nossos filhos?Será que já desistimos, mesmo? O que estamos esperando? Esqueçam aqueles 20% que apóiam o Tea Party – ainda temos os outros 80%! Esse declínio, nossa queda ladeira abaixo só parará quando exigirmos que pare. E não por “abaixo-assinado” ou gorjeios pelo Twitter.Temos de desligar a televisão e o computador e os videogames e sair às ruas (como fez o pessoal de Wisconsin). Alguns de nós têm de candidatar-se às prefeituras, ano que vem. Temos de exigir que os Democratas, ou criem vergonha e parem de viver sustentados pelo dinheiro dos bancos e grandes empresas – ou pulem fora e devolvam os postos para os quais foram eleitos para fazer o que não estão fazendo.Quando chega, chega, ok? O sonho comum da vida das pessoas comuns nos EUA não renascerá por mágica ou milagre. O plano de Wall Street é claro e está aí à vista de todos: os EUA serão nação dividida entre os “Que-têm” e os “Que-não-têm”. Está bom, assim, prá vocês? Vamos usar esse fim de semana para parar e pensar sobre os pequenos passos que podemos dar para virar esse jogo, com os vizinhos, no trabalho, na escola. Que melhor dia para começar que hoje, 30 anos depois?

Fraternalmente,

Michael

[email protected]

MichaelMoore.com

Nota de tradução [1] AFL-CIO é a maior central operária dos EUA e Canadá. Formada em 1955 pela fusão da AFL (1886) com a CIO (1935). É composta de 54 federações nacionais e internacionais de sindicatos dos EUA e Canadá que juntos representam mais de 10 milhões de trabalhadores. É membro da Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres. Até 2005, operou na prática como central sindical unitária, mas devido a discrepâncias internas, várias das maiores agremiações que a formavam se separaram da organização.

 

 

Redação

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