A tortura em cadeia: punição parcelada, por Maria Gorete de Jesus

Do Justificando

A tortura em cadeia: punição parcelada

Maria Gorete Marques de Jesus

João acordou desanimado. Desempregado há dois meses, com três filhos pequenos e com contas a pagar, pensou em dar uma relaxada naquele dia. Foi até o beco do Vital comprar uma “marola”. Pegou uns trocados que ainda lhe restavam e seguiu para a compra. Chegando lá, encontrou Zé Vareta, que lhe entregou três pacotinhos. De repente “baixa” a polícia, o Zé corre e joga a droga próxima a uns sacos de lixo. João, sem saber para onde correr, acaba sendo pego. Ainda estava com o dinheiro trocado em mãos e os três pacotinhos da “marola”. Dois policiais militares o abordam, da forma já conhecida por todos os jovens, negros e moradores daquela comunidade:
 
PM: Perdeu, perdeu, perdeu malandro! Não precisa nem correr que a casa caiu! Cadê o resto da droga heim?!? Fala logo!! Melhor falar porque a gente não tá a fim de perder muito tempo aqui.
 
Enquanto falava, o PM revistava João agressivamente, lhe dando tapas na cara enquanto perguntava sobre as drogas. O outro PM fazia uma revista no local.

 
O Policial que abordava João voltou a perguntar sobre as drogas, agora de forma ainda mais violenta.
 
PM: Olha malandro, conheço a sua laia. Tá com dinheiro trocado e com droga na mão, traficante não me engana.
 
João: Senhor, eu vim aqui comprar uma maconha, só isso. Tô com dinheiro na mão porque o menino correu…
 
PM: É sempre assim, “o menino correu, só vim comprar droga”.
 
Novamente o Policial bate na cabeça de João. Neste momento, o outro PM grita: encontrei a droga, tá aqui no lixo.
 
O Policial, de forma ainda mais violenta, começa a bater na cara de João dizendo:
 
PM: E aí, vai dizer que não é sua?
 
E como se descontasse algum tipo de raiva em João, não parou de xingá-lo.
 
PM: Odeio mentiroso, você é mentiroso, vai pagar pelo que fez.
 
Algemou João e o colocou na viatura. Durante o percurso, o policial condutor fazia “zigue zague” fazendo com que João fosse jogado de um lado para o outro da viatura. Chegou a vomitar de tanto que o carro mexeu. Ainda levou outros safanões por conta disto.
 
Ao chegar na delegacia, levaram João para o delegado plantonista, que estava ao lado do escrivão. Os policiais narraram que durante patrulhamento de rotina avistaram João em atitude suspeito e decidiram abordá-lo. Com ele encontraram dinheiro trocado (duas notas de dois reais, uma de cinco e uma de dez), três pacotinhos de maconha e um saco com 30 pedras de crack, 25 pacotinhos de maconha e 10 saquinhos de cocaína. Encerrados os depoimentos dos PMs, o delegado assinou a papelata e encaminhou a droga para o Instituto de Criminalística. João estava muito abatido e com medo. Nada lhe foi perguntado. Só viu a droga quando chegou a delegacia. Esperou durante várias horas no xadrez. Não tinha comido nada ao sair de casa, e a fome começou a bater. Perguntou para o escrivão: “tô morrendo de fome, tem alguma coisa aí pra eu comer?” e ele respondeu “bandido agora quer tratamento vip? O que mais você quer? Se liga cara, aqui não tem comida pra você não”.
 
João ficou sabendo que seria apresentado ao juiz, numa tal “audiência de custódia”. Ele foi conduzido até outra viatura, com vários outros presos que também passariam por esta audiência. Chegando ao Fórum, foi levado até a carceragem junto com os demais. Aguardou um bom tempo, agora com mais fome e com sede. Algemado, foi levado por um PM para a sala da audiência. Chegando ao corredor onde ficavam as salas de audiência, o policial mandou que João ficasse com a cabeça voltada para a parede. O defensor chegou, segurando alguns papéis, e fez algumas perguntas a João “você já foi processado antes? Você é usuário de drogas?”. Depois, entraram na sala. O policial ordenou que João não colocasse as mãos na mesa, e que mantivesse a cabeça abaixada. Ao chegar, o juiz fez uma série de perguntas a João, se tinha residência fixa, onde morava, se trabalhava, se era casado, se tinha filhos, se morava com eles, se respondia por algum processo ou se já tinha sido preso, se tinha tatuagem, quais, se já tinha tido passagem para Fundação Casa, se era usuário de drogas. João respondeu a tudo, sem entender os motivos de tantas perguntas. O juiz perguntou se a prisão tinha sido “regular”, João não entendeu a pergunta, e o juiz, nitidamente nervoso, perguntou
 
Juiz: sua prisão teve alguma irregularidade?
 
João: eu fui comprar uma “marola” e aí os PMs chegaram, todo mundo correu, eu não corri porque não devo nada, daí os policiais já vieram me batendo, perguntando aonde estava a droga
 
Juiz: mas você conhecia os policiais que te prenderam?
 
João: não
 
Juiz: então por que eles teriam interesse em te bater?
 
João: não sei doutor, mas ficaram me batendo na cara
 
Juiz: e por que você não falou isso na delegacia?
 
João: mas não me perguntaram nada na delegacia, doutor
 
Juiz: você resistiu à prisão?
 
João: não senhor.
 
Desinteressado, o juiz pergunta ao promotor se ele tem alguma questão, o parquet diz que não. O juiz pergunta o mesmo ao defensor, que também nada pergunta. O juiz então abre para as manifestações. O promotor diz que os relatos dos policiais são harmônicos, que tráfico é crime equiparado a hediondo e que João deve ficar preso para a manutenção da ordem pública pois, caso colocado em liberdade, voltará a vender drogas, “já que desempregado, este é o seu meio de vida”. O defensor pede a liberdade provisória pois não estão presentes os requisitos do artigo 312 do CPP.
 
O juiz converte a prisão de João, e nada fala sobre as violências narradas por ele. Aparentemente, a abordagem violenta não é uma questão, parece fazer parte de um “procedimento padrão”.
 
De volta à carceragem, aguarda mais algumas horas para ser conduzido, junto aos demais preso, ao Centro de Detenção Provisória. Na viatura, colocado com os demais, todos algemados, o veículo, em zigue zague, faz seu trajeto, sem se importar com os presos que vão e vem o percurso todo debatendo-se uns nos outros violentamente.
 
Ao chegar na unidade, João recebe algumas roupas e é conduzido a um local isolado. Por lá ficará alguns dias, até ser colocado junto com a “população”. Ainda com sede, fome e agora frio, João nem se dá conta das dores de seu corpo. Parece ter sido punido por cada instância que passou, uma tortura física e psicológica, marcada no seu corpo e também em sua alma. Todos os puniram severamente, do policial ao juiz, do promotor ao defensor, pela ação e pela omissão. João aguarda agora o dia de seu julgamento, amargando meses na detenção, e uma ficha criminal que tornará seus caminhos ainda mais tortuosos e torturáveis.
 
Maria Gorete Marques de Jesus é Socióloga Mestre e Doutoranda em Sociologia pela USP. Especialista em Direitos Humanos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.
Redação

2 Comentários

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  1. “Maria Gorete Marques de

    “Maria Gorete Marques de Jesus”!!!!!!

    Que nome mais feio!

    Opa!

    Que nome mais bonito!

    (Era o nome da mamae, Maria O. de Jesus, e mamae detestava o “O” entao nao vou falar o que era.)

     

    Ok, o item eh lindissimo, sentido, bem escrito, mas nao deu pra deixar a piada familiar passar!

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