Jose Luis Fiori
José Luís Fiori - Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da UFRJ. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ,
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Longa duração e incertezas com a crise, por José Luis Fiori

Do Valor

Longa duração e incerteza
 
Por José Luís Fiori
 
A leitura atenta da história brasileira permite ver que suas grandes inflexões estruturais foram provocadas por decisões tomadas em momentos de grande crise e desafio nacional e internacional. Como aconteceu no caso da “independência” brasileira, por exemplo, que foi uma decisão “reativa” e pouco planejada, frente a um contexto de profunda transformação geopolítica e econômica do Velho Continente, que culmina com a Paz de Versalhes e a supremacia naval, financeira e industrial da Inglaterra, dentro e fora da Europa.
 
E o mesmo também aconteceu no caso da “abolição da escravidão’ e da “proclamação da República”, duas decisões brasileiras inseparáveis da conjuntura internacional, que começa ­ na América do Sul ­ com a derrota política do Brasil na Guerra do Paraguai, onde perdeu a hegemonia do Prata, e começou a desintegração do estado imperial e de suas próprias forças armadas; e fora da América do Sul, onde entra em curso uma ampliação e reconfiguração do núcleo das grandes potências, com a ascensão econômica e política dos EUA, Alemanha, Japão e Rússia.

 
Só que nesta conjuntura, ao contrário do que passou na independência, existiu um projeto e uma estratégia nacional que foi vitoriosa e que impôs ao país a República, junto com hegemonia do “cosmopolitismo agrário” das elites paulista e mineira. Da mesma maneira, já no século XX, a “Revolução de 30” foi também uma resposta ao desafio provocado pela “era da catástrofe”, das grandes guerras, revoluções e crise econômica.
 
Mas ao mesmo tempo, a Revolução de 30 e a própria instauração do “Estado Novo” foram momentos decisivos de um projeto nacional que foi concebido na década de 20, por uma parte da elite civil e militar brasileira ­ que conseguiu manter sua hegemonia até a década de 80 ­ que se propôs reconstruir e fortalecer o Estado brasileiro, e suas forças armadas, incentivando e promovendo ativamente a industrialização e o crescimento econômico nacional, como forma de alcançar e superar a Argentina, na luta pela hegemonia do Prata e pela liderança da América do Sul.

Cinquenta anos depois, a “redemocratização” da década de 80 marcou uma nova inflexão histórica indissociável da mudança geopolítica e econômica mundial, que começou com a crise e redefinição da estratégia internacional dos EUA, que passou pela reafirmação do dólar, pela desregulação das finanças internacionais e pela escalada armamentista que levou à desintegração da URSS, ao fim da Guerra Fria e à instauração da “unipolaridade imperial” dos EUA, que durou até o 11 de setembro de 2001.

Assim mesmo, depois de três décadas aproximadamente, o Brasil segue sem conseguir definir e consolidar uma estratégia nacional e internacional hegemônica. Pelo contrário, ainda hoje se pode dizer que este é o verdadeiro “núcleo duro” da disputa cada vez mais violenta, entre as duas vertentes políticas ­- o PT e o PSDB -­ de um mesmo projeto bifronte que nasceu nos anos 80/90. Sua base social era diferente, mas sua matriz teórico-­ideológica originária foi mais ou menos a mesma: paulista e democrática, mas ao mesmo tempo, anti-­estatista, anti­-nacionalista, anti­-populista, e em última instância, também, anti­-desenvolvimentista.

Este projeto bifronte, entretanto, se dividiu de forma cada vez mais nítida e antagônica, a partir dos anos 90, quando o PSDB liderou uma política governamental de apoio, ajuste e integração do Brasil à nova estratégia econômica internacional dos EUA, de desregulação e globalização monetáriofinanceira e de apoio ao projeto da Alca.

Da mesma forma que na década seguinte o PT liderou um governo de coalizão que foi adernando cada vez mais na direção de um projeto de Estado e de “capitalismo organizado” e de “bem­-estar social”, ao lado de uma política externa cada vez mais autônoma e voltada para as “potências emergentes”, mesmo que nunca tenha conseguido alterar as regras e instituições monetário­financeiras criadas pelos governos do PSDB.

O que passou nesta última década e meia foi que as mudanças de rumo e os próprios desdobramentos inovadores da estratégia petista foram provocando deserções e criando vetos cada vez mais radicais de forças nacionais e internacionais, de dentro e de fora da própria coalizão governamental.

E como consequência previsível, a coalizão governamental petista foi perdendo a unidade e a força que seriam necessárias para tomar as decisões capazes de enfrentar a crise econômica atual sem abandonar a estratégia econômica que foi sendo construída a partir do segundo governo Lula. Este panorama de fragmentação e polarização nacional interna, entretanto, se agrava ainda mais quando ele é colocado na perspectiva de um conflito internacional cada vez mais aberto e violento, entre os EUA e a Rússia, e de uma competição política e militar cada vez mais explícita, entre os EUA, sendo Rússia e China os dois principais aliados do Brasil no projeto Brics.

Assim mesmo, o que mais assusta e preocupa neste momento é que o receituário tradicional do PSDB parece agora cada vez mais simplista e esclerosado; enquanto o PT parece cada vez mais apoplético e paralisado; e o governo, cada vez mais dividido e fragilizado. É óbvio que o Brasil sairá desta situação e seguirá em frente, como já o fez no passado, mas não está claro, nem muito menos, qual será a estratégia e o caminho vencedor.

No entanto, é preciso ter atenção, porque foi nestas situações de alta polarização e incerteza social que surgiram e galvanizaram o poder em outras sociedades ocidentais, forças sociais e políticas fundamentalistas, obscurantistas e retrógradas, que sempre contaram com o apoio oportunista de amplos setores da elite financeira e iluminista, nacional e internacional. Os mesmos setores que depois derramam “lágrimas de crocodilo” na porta dos campos de concentração onde se tentou purificar e corrigir o mundo por meio da exclusão ou da morte dos impuros e dos hereges.

José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro “História, estratégia e desenvolvimento” (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ. Escreve mensalmente neste espaço.

Jose Luis Fiori

José Luís Fiori - Professor emérito dos Programas de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), da UFRJ. Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ,

5 Comentários

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  1. Professor Fiori: muito boa

    Professor Fiori: muito boa análise. Falta apontarr a movimentação interna ao país, que ganha força nas décadas de 1970 e 1980, culminando na CF 1988, de ruptura com o modelo historicamente desigual e excludente do desenvolvimento nacional. Movimento heterogêneo e não coeso, do qual resultou o  PT ao lado de outras novidades no plano político e institucional. É esse movimento que está sobre fogo cerrado.Vivemos uma contraofensiva da direita que foca  na liquidação do PT e na desmoralização de seus dirigentes.

    O alerta sobre um possível desfecho trágico deste momento é absolutamente verdadeiro. Há uma profunda desorientação por parte do povo, algo como um vácuo de ideologias. As mudanças de costumes, com a rápida urbanização e a velocidade das mudanças tecnológicas,  provocam desorientação. Situação que é explorada pela mídia e outras instituições (igrejas por exemplo) para ampliar o domínio e a penetração de suas ideias. Cenário muito propício para saídas autoritárias.

    E acredito em teorias conspiratórias. Se formos procurar, tem articulação e dinheiro internacionl atrás desta ofensiva da direita. Costurar uma reação, eis o desafio do momento.

  2. Poderes

    Hoje só o Executivo e o Legislativo teriam condições de impor um novo rumo, norte e estrela, o Judiciário está anêmico.

    Façam uma reforma nas estruturas do Estado com base no Tarot, Geometria e Astrologia, criando 14 ministérios com 72 secretarias executivas e tudo muda.

  3. O problema é o rebaixamento

    O problema é o rebaixamento do debate público promovido pela imprensa sobre qualquer assunto; qualquer assunto. Ou seja, o debate está completamente intoxicado por um misto de neurose de guerra fria com ideologias antissociais vulgares (anti estado, antipolítica, anti partidos, etc., tudo condensado hoje no antipetismo como bode expiatório).

    E não adianta contar com o “esclarecimento” das elites econômicas que essas só sabem hoje em dia de vinho, viagem e outras frivolidades; ou então se entregaram completamente para as simplificações financistas.

    Das elites políticas que dominam o Congresso então, nem pensar.

    Do PT… Entraram na fase da autocrítica em público.

    O Executivo continua mudo. Ah, foi “falar” lá no convescote da Globo (imagino os risinhos da platéia)…

    E o mundo acadêmico, então, salvo raras exceções está completamente alienado esperando um convite para aparecer na imprensa; ou então em solilóquios dispersos.

    Abaixo texto de WGS..

     

    A vingança de Gudin

    22 de maio de 2015Segunda Opinião

    Eugenio Gudin (1886-1986) perdeu o confronto estratégico- intelectual e alguma reserva de influência política para Roberto Simonsen (1880-1948). A refrega institucional e acadêmica durou, civilizadamente, a maior parte das décadas de 40 e 50 do século passado. A opção nacional pela via da industrialização, dando ganho de causa a Simonsen, orientou a árvore decisória do país pelos 60 anos seguintes. Não obstante as disputas distributivistas próprias do arranjo, forjou-se sólida coalizão estrutural entre os industriais e operários urbanos, com subordinação e mesmo exclusão do mundo rural. Entre arroubos, sussurros e pancadarias, foi este acordo que garantiu a construção de um país de respeitável porte material, com seu extraordinário apêndice de desigualdades.

    Monetarista rigoroso, Gudin foi crucial na institucionalização do ensino da economia no Brasil, ao lado de seu discreto e sólido contemporâneo, Otavio Gouveia de Bulhões (1906-1990). Milton Friedman poderia ter sido um de seus aplicados alunos, embora sem o brilho da formação humanística de que se orgulhavam seus mais famosos discípulos reais: Roberto Campos (1917-2001) e Mario Henrique Simonsen (1935-1997). A experiência no exercício do poder de governo promoveu o ajustamento entre as origens de inclinação monetarista de ambos e a seta de tempo cuja trajetória inspirava-se no Simonsen anterior, isto é, em direção à industrialização, estratégia insubstituível da segurança nacional. O espírito de Roberto Simonsen prevaleceu sobre o manto inflexível de Eugenio Gudin.

    Aquela estrutura fundamental dissipou-se ao se realizar. É impossível continuar a fazer mais do mesmo, até porque o mesmo já não existe, tornou-se obsoleto: na produção industrial, na vida rural, no mundo dos negócios, nas universidades e nas profissões. É neste momento de incerteza que Eugenio Gudin renasce na contabilidade doméstica do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Aparentemente sem a abertura de vistas que amenizaria a aridez dos livros-texto, Levy se apresenta como intérprete catequista, papel que o elitismo intelectual de Campos e Simonsen os impediu de aceitarem, dada a mediocridade da obra. Gudin, vingado, é o Eugenio menor que o momento conseguiu gerar, sem que se deva atribuir ao adjetivo a virulência difusa nas relações sociais, e que nunca esteve presente no trato cavalheiresco e culto do Eugenio original. Dará frutos?

  4. “enquanto o PT parece cada

    “enquanto o PT parece cada vez mais apoplético e paralisado”

    Mostram que não tem liderança e nem objetivos políticos claros.

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