Mais “mestiço” que puro

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Comentário referente ao post “O samba brasileiro é música de branco”

Vou discordar do Nassif (que é músico) e falar como antropólogo (não mais que melômano).

A provocação do título da postagem é boa, mas não resolve o assunto. Ao lançar uma provocação a certa obsessão racialista contemporânea pelos pedigrees, pode-se, ao mesmo tempo, cair na armadilha da lógica mesma do pedigree. Quando se pensa dentro de uma gramática, fica-se preso a ela. Para pensar diferente é preciso sair do quadrado da gramática (o que os racialistas, evidentemente, não estão dispostos a fazer, porque para eles sua gramática é sagrada).

Tomar como parâmetro de reconhecimento de uma linguagem a clivagem tonalismo/modalismo pode ser apenas reiterar o ponto de vista da música ocidental.

O que a herança africana aportou como elemento de linguagem à nova música ocidental foi a paridade do ritmo (à melodia), fortemente marcado e sincopado, como estruturante dessa linguagem. O resultado disso foi a mestiçagem musical americana, que encontra no triângulo Rio-Havana-New Orleans seus píncaros representativos. Essa “tese” foi defendida pelo José Miguel Wisnik n’ O Som e o Sentido.

Quer dizer, não se trata de alocar uma linguagem à remissão de uma origem dominante e, portanto, de alguma eventual “pureza”. Estamos no reino das misturas, ou daquilo que uma certa tradição analítica latino-americana chama de “transculturação”, onde os produtos discursivo são heterogêneos, respondem a duas (ou até mais) matrizes lógico-simbólicas ao mesmo tempo, e podem ser compreendidos ora por uma, ora por outra, e considerados e julgados nos termos desses cânones, por mais díspares que possam ser.

O crítico literário peruano Antonio Cornejo Polar, que melhor trabalhou o conceito de “heterogeneidade”, por oposição à reificação do produto (ou fetiche da mercadoria) implícita na ideia mais corrente de “hibridismo” (popularizada por Néstor García Canclini, Homi Bhabha e fortemente inflacionada pelos analistas nore-americanos), acreditava que os discursos heterogêneos, por sua própria natureza, não seriam capazes de conformar tradição.

Aí é que começa a aventura dessas mestiçagens que, de alguma forma, são capazes de engendrar a sua própria tradição. O resto é história (do samba, do jazz e dos ritmos cubanos, por exemplo). Essa, sim, é a verdadeira e mais larga história cultural das Américas; aquela que recusa os pedigrees pelo simples fato de eles não fazerem muito sentido.

Redação

3 Comentários

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  1. Òtima discussão …

    mas que não tem fim.  Dou minha modesta contribuição reproduzindo uma postagem que vi no blog da Cynara Menezes (Socialista Morena), de como o banimento do uso dos tambores pela Negro Act de 1740 influenciou no modo de fazer música dos negros americanos.

    Por que nos EUA não tem batucada?

    (Uncle Tom's Cabin, Robert Criswell, 1852)

    Não é curioso que os Estados Unidos não usem tambores em sua música como todos os outros países que tiveram mão-de-obra escrava vinda da África? Eu sempre fiquei me perguntando isso. Por que a música dos negros norte-americanos é tão diferente da música brasileira, de Cuba, do Caribe? Onde foram parar os tambores? Cadê a batucada?

    Pense em todos os grandes ídolos da música afro-americana: Charlie “Bird” Parker tocava sax. Louis Armstrong tocava trompete. Nina Simone tocava piano, assim como Stevie Wonder e Ray Charles. Miles Davis tocava trompete. E Wynton Marsalis, idem. Robert Johnson tocava guitarra. Chuck Berry, idem. Leadbelly tocava um violão de 12 cordas.

    Os negros chegaram aos EUA vindos, em sua maioria, de regiões que hoje se conhecem como Senegal, Gâmbia, Nigéria, Camarões, Namíbia, Congo, Angola e Costa do Marfim. Os negros brasileiros vieram de Moçambique, do Benin, da Nigéria, e também de Angola, Congo e da Costa do Marfim. Com todas as diferenças existentes entre estas nações africanas, todas elas faziam uso de tambores com fins musicais e de comunicação. Por que então nós temos o samba e os gringos não? Por que não tem atabaque, agogô e cuíca na música afro-americana e sim saxofone, clarinete, trompete, instrumentos “de brancos” que os negros, aliás, aprenderam a tocar com maestria? Simplesmente porque os tambores foram proibidos na terra do tio Sam durante mais de 100 anos.

    No dia 9 de setembro de 1739, um domingo, em uma localidade próxima a Charleston, na Carolina do Sul, um grupo de escravos iniciou uma marcha gritando por liberdade, liderados por um angolano chamado Jemmy (ou Cato). Ninguém sabe o que detonou a rebelião, conhecida como a “Insurreição de Stono” (por causa do rio Stono) e que é considerada a primeira revolta de escravos nos EUA. Conta-se que eles entraram numa loja de armas e munição, se armaram e mataram os dois brancos empregados do lugar. Também mataram um senhor de escravos e seus filhos e queimaram sua casa. Cerca de 25 brancos foram assassinados no total. Os rebeldes acabaram mortos em um tiroteio com os brancos ou foram recapturados e executados nos meses seguintes.

    A reação dos senhores foi severa. O governo da Carolina do Sul baixou o “Ato Negro” (Negro Act) em 1740, trazendo uma série de proibições: os escravos foram proibidos de plantar seus próprios alimentos, de aprender a ler e escrever, de se reunir em grupos, de usar boas roupas, de matar qualquer pessoa “mais branca” que eles e especialmente de incitar a rebelião. Como os brancos suspeitavam que os tambores eram utilizados como uma forma de comunicação pelos negros, foram sumariamente vetados. “Fica proibido bater tambores, soprar cornetas ou qualquer instrumento que cause barulho”, diz o texto.

    A proibição se espalhou pelo país e só foi abolida após a guerra civil, mais de um século depois, em 1866. Antes disso, o único lugar onde os negros podiam se reunir com certa liberdade eram as igrejas; daí o surgimento dos spirituals, a música gospel, com letras inspiradas pela Bíblia, que eles cantavam muitas vezes à capela (sem instrumentos) ou marcando o ritmo com palmas. As mãos batendo no corpo e os pés batendo no chão foram os substitutos que os escravos encontraram para os tambores, resultando em formas de dança e música conhecidas como “pattin’ juba”, “hambone” e “tap dance” (sapateado), ainda hoje utilizados por artistas negros (e também brancos) dos EUA.

    https://www.youtube.com/watch?v=qJ73okpDa6k

     

    https://www.youtube.com/watch?v=gTKE3IaVVmA

    “Os tambores ‘falantes’ africanos interagiam com os dançarinos utilizando diferentes ritmos, assim como comunicando mensagens através dos tons e batidas. Os tocadores de tambor podiam fazer seus instrumentos ‘falarem’ sons específicos, de forma que a percussão constituía um texto sonoro. A musicalidade de várias palavras africanas era tão precisa que elas podiam ser escritas como notas musicais. Os escravos levaram estes ritmos e o uso destas técnicas para a América”, diz o coreógrafo norte-americano Mark Knowles, autor do livro Tap Roots: the Early History of Tap Dance.

    Os brancos sabiam que as rebeliões de escravos eram organizadas durante encontros que envolviam dança e que a cadência dos tambores podia ser um convite à insurreição, com o uso dos tambores falantes. “Proibidos os tambores, o corpo humano, o mais primitivo de todos os instrumentos, se tornou a principal forma de ritmo e de comunicação entre os escravos. “Usando o corpo como percussão, em uma tentativa de imitar os sofisticados ritmos e cadências dos tambores, com o elaborado uso de batidas dos saltos e do bico do sapato, surgiu o que chamamos de ‘tap dance’. Mesmo hoje em dia, quando dois sapateadores mantêm uma conversação com seus pés, é como se estivessem telegrafando mensagens, como faziam originalmente os tambores africanos”, afirma Knowles.

    https://www.youtube.com/watch?v=fIQJzcldzAw

    Alguns estudiosos atribuem ao banimento dos tambores o fato de a música dos EUA em geral não ser tão rica em compassos como a sul-americana ou a caribenha. “Há uma coisa peculiar que quase toda a música norte-americana tem em comum: uma extensa ênfase em um mesmo ritmo, muito diferente da encontrada em qualquer outro lugar no mundo. É assim: Boom – Bap – Boom – Bap, com um bumbo na primeira e terceira batidas, ou em todas as quatro, uma caixa precisamente na segunda e quarta, e quase nada entre elas. Este ritmo é chamado de ‘duple’ (compasso binário) em teoria musical, e você pode encontrar variações dele em todos os estilos da música americana popular moderna: Blues, Motown, Soul, Funk, Rock, Disco, Hip Hop, House, Pop, e muito mais”, diz o DJ Zhao neste interessante artigo.

    “O predomínio generalizado deste monorritmo simplificado, rígido e mecânico, minimizando elementos polirrítmicos na música para o papel de embelezamento, às vezes ao ponto de não-existência, é muito diferente do foco em polirritmos complexos que existe em várias formas da moderna música sul-americana e caribenha: o Son Cubano e a Rumba, a Bossa Nova brasileira, o Gwo Ka e Compas haitiano, o Calipso de Trindade e Tobago… Nenhum deles depende tão extensivamente do duple.”

    Em sua autobiografia, To be or Not… to Bop, o trompetista Dizzy Gillespie atribui esta menor complexidade rítmica da música afro-americana em relação à música afro latino-americana à proibição dos tambores. “Os ingleses, ao contrário dos espanhóis, tiraram nossos tambores”, lamenta Gillespie (leia mais aqui). Em meados da década de 1940, muitos congueros (tocadores de conga, espécie de atabaque) migraram para os Estados Unidos e exerceram influência na música local, criando o jazz afro-cubano. Gillespie colocou a conga do cubano Chano Pozo em sua música e a parceria resultou em Manteca (1947), canção pioneira por introduzir percussão cubana no jazz.

    https://www.youtube.com/watch?v=B1Yz9G1wwzU

    Nos rincões do Mississippi, driblou-se a proibição dos tambores com bandas de flautas e tarol (caixa), instrumentos que eram aceitos e inclusive tocados no Exército durante a guerra civil. Em 1942, o folclorista Alan Lomax gravou pela primeira vez gente como Othar Turner e Ed e Lonnie Young, cuja sonoridade esbanja ancestralidade, soa a África e foi comparada à música haitiana. É o mais próximo de uma batucada que encontrei na música negra dos EUA. Não parece meio maracatu?

    https://www.youtube.com/watch?v=m6mRdPP6wRo

    https://www.youtube.com/watch?v=OpdUo4ThJEA

    Enquanto nos Estados protestantes os tambores eram banidos, na católica Louisiana eles foram permitidos até o século 19 e eram utilizados sobretudo nas cerimônias de vodu, religião afro-americana levada para os EUA pelos escravos do Benin, antigo Daomé – de onde vieram também a maioria dos negros da Bahia. Assim como em Salvador, havia muito sincretismo em New Orleans até começar a perseguição ao vodu e por conseguinte aos tambores.

    A partir de 1850 o uso de tambores passou a ser restringido até mesmo na Congo Square, uma praça da cidade onde tradicionalmente os negros se reuniam para tocar tambores, dançar e entrar em transe espiritual ao som de música. Nos anos 1970 a praça foi reabilitada e até hoje rola um batuque de primeira por lá.

    https://www.youtube.com/watch?v=tHY_Kb3Znb0

    Apesar desta “percussofobia”, como alguns chamam, a música negra dos EUA é maravilhosa, sem sombra de dúvidas. Mas como seria ela se os tambores não tivessem sido proibidos? Mais parecida com a brasileira? Nunca saberemos.

  2. Muito obrigado

    Ainda que eu discorde (enquanto musicologo) de algumas coisas, agradeço ao autor por recolocar nos eixos esta discussão que reifica (tende a tornar estatico o que é móvel) e que foi ultrapassada nos anos 20 (se falarmos apenas do Brasil).

    Mais uma vez muito obrigado.

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