MP se deixou usar pela mídia no processo de golpe, diz Eugênio Aragão

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – O ex-ministro da Justiça e subprocurador da República Eugênio Aragão disse em entrevista ao blog O Cafezinho que o Ministério Público brasileiro tem uma postura equivocada em relação aos governos estabelecidos, sempre tentando fazer oposição, como se este fosse seu papel institucional. E o fruto dramático dessa percepção é que o MP se deixou usar, por vaidade, pela mídia interessada em inflar a opinião pública contra a classe política, mais especificamente contra o ex-presidente Lula.

Por Miguel do Rosário

Do Cafézinho

O Cafezinho entrevistou o ex-ministro da Justiça e subprocurador geral da República, Eugênio José Guilherme de Aragão.

Conversamos sobre Lava Jato, Ministério Público, golpe e mídia.

Aragão tem opiniões fortes, polêmicas e corajosas sobre esses assuntos.

Vale a pena ler essa entrevista, concedida há alguns dias, com exclusividade, para o editor do blog O Cafezinho.

***

Miguel do Rosário, editor do Cafezinho: Você foi ministro da Justiça por um período muito breve. Se você permanecesse no cargo, não houvesse esse processo de impeachment, o que você poderia fazer, como ministro da Justiça, para tentar trazer um pouco de equilíbrio à relação entre os setores democráticos do Estado (Executivo e Legislativo), e os estamentos judiciais (ministério público, polícia federal, judiciário), uma relação que hoje se encontra bastante desequilibrada, provocando instabilidade política constante?

Eugênio Aragão: Esse é um problema da nossa arquitetura institucional, construída na Constituição de 1988, quando o Estado brasileiro tinha um tamanho, e hoje tem outro. A economia brasileira tinha um tamanho e hoje tem outro. Essa arquitetura de 88, ela é hoje em dia superada. Um problema central aqui é a competição de órgãos, que fragmenta a atuação do Estado, estimula o corporativismo destinado à valorização de carreira por seus ganhos, estimula atuações de carreiras para que elas criem riscos para a governabilidade. E ao mesmo tempo deixa o jurisdicional como um joguete entre essa disputa de setores da administração pública.

M: Como ministro da justiça, o que você poderia fazer pra tentar promover algumas mudanças nesse cenário?

EA: Olha, nós temos duas coisas pra fazer (isso não vai depender tanto do ministro da justiça, mas ele pode dar sua colaboração). A primeira delas, o que estaria na área da SAL (Secretaria de Assuntos Legislativos), seria promover o debate sobre reforma orgânica da Constituição, para deixar os órgãos mais equilibrados em sua atuação. Entendo que, dentro de uma reforma, em primeiro lugar nós temos que modificar a estrutura e a própria eficiência do sistema judicial. Se a gente manteria ou não o Supremo Tribunal Federal é uma questão de escolha. No meu ponto de vista, o ideal seria a fusão do Supremo Tribunal Federal com o Tribunal de Justiça, criando o Supremo Tribunal de Justiça e criando um novo acordo constitucional, que só faria o controle concentrado e difuso e tiraria dos juízes a competência sobre o controle difuso de constitucionalidade. Isso porque o juiz é essencialmente um burocrata, ele não tem legitimidade de desautorizar uma deliberação legislativa. Esse nosso sistema, nesse aspecto, cria esse superpoder do judiciário, que é disfuncional dentro de uma Constituição democrática.

Por outro lado, reforçaria a igualdade entre as carreiras jurídicas. Uma República não pode viver com carreiras “principescas” (de príncipes). O Ministério Público, por várias razões, algumas até bem razoáveis e compreensíveis, outras nem tanto, nos últimos anos, acabou sendo o modelo de atuação das outras corporações para se valorizar. Ou seja, para venderem a sua imagem, fazerem a sua relação pública.

Outro problema é a questão da independência.

Um juiz é independente dentro dos limites da causa que ele está julgando. Ele é independente dentro da tese do autor e da tese do réu. Mas o Ministério Público não tem esses balizadores. O juiz espera as partes chegarem, o Ministério Público tem independência de iniciativa.

O constituinte de 88 foi inteligente. Ele fez o seguinte: a independência funcional do Ministério Público tem que ser diferente da do juiz. Tanto que a independência não é escrita no artigo 127 da Constituição como uma prerrogativa da pessoa, ela é institucional. São três princípios institucionais: da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional. O problema é que nossos colegas se esquecem disso e cada um acaba virando uma metralhadora giratória, cuspindo bala pra todos os cantos. Nós precisamos reforçar a coordenação interna do órgão e a independência funcional. Ela é muito mais uma independência negativa. Significa o que: eu não posso ser violentado nas minhas convicções. Se eu não concordo com as teses que foram deliberadas de forma coordenada entre os colegas, eu não posso ser diferente dos demais porque o Ministério Público é uno e indivisível.

Outro erro fatal é a questão da investigação pelo Ministério Público. O Tribunal Federal, depois de muitos anos de debate, chegou finalmente a uma conclusão, em 2015, acabou entendendo que era constitucional a investigação criminal pelo Ministério Público. Claro que submetido a todas regras que garantam a presunção de inocência, um julgamento justo e o controle jurisdicional. Mas o Supremo diz que essa investigação pelo Ministério Público é excepcional, extraordinária, não é vocação do Ministério Público investigar. Ele o faz em situações excepcionais, por exemplo: se a polícia não atua, cruza os braços.

Agora, foi aí que o Supremo falhou: esqueceu de dizer o resto. Qual é o resto? Bom, se a investigação pelo Ministério Público tem caráter excepcional, então, essa investigação tem que estar motivada. O Ministério Público tem que dizer os motivos por que ele está investigando e não requisitando a instauração de inquérito pela polícia. E essa motivação tem que estar submetida à jurisdição. Significa que tem que haver um controle jurisdicional sobre essa motivação. O Ministério Público motiva e submete ao juiz. E o juiz vai dizer se este é ou não um caso excepcional para o Ministério Público investigar. Se a parte investigada entender que o juiz atuou de forma errada, que ele não deveria autorizar o judiciário a investigar, há que se ingressar com um habeas corpus na segunda instância e com isso provocar a revisão judicial. Então teria um controle jurisdicional permanente sobre a atuação do Ministério Público, que estaria submetido às mesmas regras: ter que dar satisfação ao juiz sobre cumprimento de prazos, sobre as diligências, fazer relatório final perante o juiz. Não pode ser um processo que não tenha forma nem conteúdo. Por que eu digo isso? Porque o processo penal, do jeito que nós concebemos no Brasil, tem características diferentes de outros países. Porque os atores do processo penal são todos eles muito empoderados (a polícia, o Ministério Público e o juiz).

Então é importante que a atuação desses atores seja feita através de filtros sucessivos. O que significa isso? Se a polícia faz uma besteira, eu posso reclamar ao Ministério Público; se o Ministério Público faz uma besteira, eu reclamo ao juiz; se o juiz faz uma besteira, eu reclamo à segunda instância. Então, com isso eu consigo manter, através de um sistema de freios e contrapesos, um equilíbrio na atividade desses atores. Agora, se eu começo a mesclar esses atores, eu crio um sério problema para o jurisdicionado, porque se o Ministério Público, a polícia e juiz se mancomunam e agem combinado, o jurisdicionado vai reclamar pra quem? Pra Capela Sistina?

Então, isso acaba não permitindo nem um processo legal, nem um julgamento justo e imparcial. E, por isso, eu entendo que essa cooperação, essa articulação conjunta entre Ministério Público, polícia e juiz é substancialmente inconstitucional. Eu vou até mais longe. Eu digo que que as forças-tarefas que envolvam Ministério Público e polícia são inconstitucionais, porque o Ministério Público não pode estar de mãozinhas dadas com a polícia. O Ministério Público é instância de controle, eles não podem fazer aí um joguinho de parceiros, não dá. Força-tarefa é pra quem tem a função principal de investigar, então, não tem nenhum problema, por exemplo, força-tarefa entre a Polícia Federal e a Previdência Social, entre a Polícia Federal e a Receita Federal, não tem problema porque são todos órgãos nivelados na administração pública. Mas quando você mescla diversos agentes jurisdicionais, você acaba atrapalhando a imparcialidade do julgamento, porque esses atores, ao invés de se controlarem reciprocamente, ficam dando tapinhas uns nas costas dos outros. A força-tarefa só é lícita no âmbito da administração pública. O Ministério Público não pode estar em uma força-tarefa.

Temos mais um problema muito grave na força-tarefa, pelo tamanho e pelo circo que se forma (principalmente em uma força-tarefa como essa da Lava-Jato). Antigamente, um ator jurisdicional quando falava com a imprensa, cochichava em off, com medo da corregedoria. Hoje em dia, não, hoje em dia polícia fala, Ministério Público fala, juiz fala, todos falam. Tanto que você não sabe ao certo quem é que vazou algo, porque todos estão falando. O problema maior nisso, quando você instala um circo deste tamanho, é que ninguém monta uma força-tarefa para arquivar processo. Quando se monta uma força-tarefa é para mostrar resultados. Então, de certa forma, já existe a perspectiva de que alguém tem que ser condenado. E isso milita contra a isenção, mais uma vez, e contra o princípio da imparcialidade e da presunção de inocência, porque as pessoas precisam mostrar resultado, a força-tarefa não pode deixar de ter resultado. Por isso é esse circo todo.

M: Tem umas coisas muito estranhas. Por exemplo, no caso da Lava-Jato, ela consegue receber percentuais sobre valores devolvidos. Você não acha que isso acaba gerando um conflito de interesses também?

EA: Você diz aquela proposta do Ministério Público de receber participação nas multas?

M: Isso.

EA: Ok. Isso, pra mim, é a mesma coisa que participação nas multas de uma empresa que está fazendo a gestão dos radares de trânsito. Se eu digo pra uma empresa que gere os “pardais”: “pra cada multa que você aplicar, você vai receber x”, essa empresa vai fazer o diabo a quatro para aplicar multas.

É que nem, nos Estados Unidos, o sistema penitenciário privado. As empresas que administram as penitenciárias normalmente são vinculadas à área de segurança, são do chamado complexo industrial militar, são empresas de transportadoras de valores, empresas fabricantes de armas. E é altamente lucrativo. Esses caras são poderosos e têm um forte lobby no congresso norte-americano, eles criam na população um clima de medo, de que a criminalidade é crescente, pra que o congresso aumente as penas, crie mais crimes e com isso encha as penitenciárias.

O que isso tem a ver com a multa do Ministério Público? Claro, a multa não vai para o bolso do procurador, vai pra instituição. Mas se eu sou um órgão público bem provido, é claro que eu é que bato o martelo. Então, o que acontece: no momento em que você diz para o Ministério Público que ele vai ter uma participação nas multas, claro que ele vai buscar forçar o valor e a frequência dessas multas. E tem outra coisa: existe algo de vaidade nisso. O Ministério Público não é o único órgão que combate a corrupção. Nós temos a CGU, nós temos o TCU, a Polícia Federal, órgãos todos que se articulam na chamada ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Ativos), que é um foro permanente de todos esses órgãos para coordenar políticas. Então, se o dinheiro parte da multa devesse ir para algum clã, deveria ir para um fundo gerido pela ENCCLA e não para o Ministério Público, porque, vamos dizer, às vezes o Ministério Público está com mais recursos e a CGU está com menos, às vezes é o TCU que precisa de dinheiro. Então, isso aí tem que ter uma flexibilidade. Por que apenas o Ministério Público?

M: Pra finalizar, uma pergunta sobre o impeachment. Até o início dessa semana, o Senado deve aprovar o afastamento definitivo da presidenta. Uma coisa que eu queria conversar é sobre essa aparente articulação de setores do Estado, inclusive o Ministério Público, que parece agir seguindo uma agenda política. Isso a gente teve a oportunidade de observar nos últimos dois anos e agora a gente vai ter um processo de ruptura democrática muito grave e muitos agentes do Estados estão envolvidos nesse processo. É uma situação que causa perplexidade em muitos setores da população brasileira. Eu queria saber sua opinião sobre essa participação da Procuradoria, órgão onde você trabalha, nessa articulação pelo impeachment.

EA: Olha, não vou dizer que houve uma articulação pelo impeachment. O poder é algo que é exercido. Pessoas ilegítimas estão exercendo o poder, porque esse é um espaço que não fica vazio em um Estado. O Congresso está fraco, outros assumem. O problema é que os que assumem são ilegítimos. Essa é outra lógica. Não é a lógica da legitimidade, da prestação de contas permanente ao eleitorado. E isso diminui muito a qualidade da nossa democracia, porque essas pessoas não são necessariamente democratas. E vou dizer mais: hoje, Ministério Público, o judiciário, os órgãos de controle, como o TCU, são compostos basicamente de pessoas de uma classe média remediada. E não é uma classe média que está em paz com esse governo. Apoiava esse governo enquanto seus ganhos estavam subindo. Eles topavam o jogo, mas no momento em que a economia não permite ganhos a essas categorias, elas fecham a cara. Isso é normal, não estou falando que todas as pessoas são corruptas ou imorais, são pessoas de carne e osso. O problema, mais uma vez, está no que essas pessoas podem fazer.

O principal problema do Brasil é esse: são órgãos que não prestam conta a ninguém, são órgãos que pintam e bordam, se acham fortes, com um acúmulo de benefícios, como auxílio moradia e coisas do gênero, são pessoas que têm um ego extremamente inflado e atuam consistentemente com sentido de se empoderar cada vez mais. E no momento em que você mostra uma fragilidade no Estado, eles agem. A percepção que eu tenho é que o Ministério Público age muito dentro daquela visão caricata latino-americana, com uma postura de confronto aos governos, hay gobierno soy contra. Essa disputa é que transforma essas carreiras em carreiras ineficientes, por conta da atuação fragmentada do judiciário. Então, o que tem acontecido, não diria que foi com o sentido de derrubar o governo Dilma. Eles acabaram sendo usados pra isso. O fato é que a mídia usou o Ministério Público (que se deixou ser usado porque achava que isso estava enchendo sua bola) para, através desses vazamentos, inflar a má vontade do eleitor e, vamos dizer, a extrema hostilidade com o Lula. Me parece que a atuação do MP na Lava-Jato facilitou a vida da mídia, de certos atores políticos, por vaidade.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

6 Comentários

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  1. Eugênio Aragão é um homem

    Eugênio Aragão é um homem lúcido. Mas acaba tendo uma visão condescendente em relação a seus colegas. Eles não são vítimas da mídia. São parceiros dela. Existe um jogo de interesses, um conluio para derrubar esse governo. Por parte dos promotores, possivelmente por não  terem recebido os aumentos salariais de que se julgavam merecedores. Não existe qualquer preocupação com verdadeiro combate à corrupção por parte do MPF – tanto assim que eles blindam o PSDB.

     

    1. Concordo com o autor do texto

      Concordo,

      O Eugênio Aragão tem uma visão de classe e tenta minimizar o papel do MP no golpe. Lembra um pouco a desculpa de oficiais que durante regimes autoritários dizem estar simplesmente cumprindo ordens para justificar suas atrocidades. O papel do MP no golpe é muito ativo, envolve a vasta maioria da corporação, e é tão importante senão mais do que o da Mídia. Não vamos esquecer que na mídia existem muitas vozes que se opõe ao golpe, no MP estas são raríssimas. 

      Além disso, o Eurgênio Aragão tem um ativismo político que não coaduna com as funções de um promotor ou mesmo de um juiz. O fato dele estar do “nosso lado” não torna seu comportamento menos criticável. 

      Lugar de promotor não é em cargos no Executivo, mesmo naqueles não eleitos (secretarias ou ministérios). Lugar de promotor não é em partidos políticos ou igrejas. Lugar de promotor não é no noticiário de jornal fazendo o papel de paladino de alguma causa. Lugar de promotor não é em manifestação popular seja lá qual for o mote.  Promotores e juízes tem que ter um comportamento discreto, sóbrio e imparcial. Promotor ou juíz que quer participar do jogo do poder tem que se desligar definitivamente da instituição (MP e magistratura).

       

  2. O procurador está muito mal

    O procurador está muito mal informado: em curitiba o Moro determina o que a polícia e o que o mpf deve fazer. O moro policia, investiga, denuncia, pronuncia e sentencia. Então, ou rasgaram a norma constitucional, ou o procurador não está entendo nada do que está acontecendo. Aliás, o Moro vai (muito) além dos autos do processo. Bah! Ia esquecendo, o stf com seus gilmares e o golpismo-parlamentar também estão “carecas” de desconsiderar os ditames constitucionais: não fosse assim, na esculhambação geral e irrestrita, e a Dilma estaria exercendo seu governo constitucionalmente. 

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