O juiz e a banalidade do mal, por Haroldo Caetano

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do Justificando

Para Luis Carlos Valois, Marcelo Semer e Rubens Casara, que fazem da magistratura poesia viva; e da justiça, razão de ser.
 

Hannah Arendt descreve Adolf Eichmann, oficial alemão responsável pela logística do transporte de judeus para campos de concentração, como um homem que não admitia qualquer culpa no extermínio massivo de pessoas durante o Terceiro Reich. No seu julgamento, reportado pela filósofa alemã de origem judaica no livro Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras, 1999), Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por se desincumbir com eficiência das funções a ele acometidas pelo regime nazista. Sua tarefa limitava-se, insistia ele em seus muitos depoimentos, a organizar a identificação de pessoas, encontrar e providenciar rotas de trens; e que não tinha responsabilidade sobre o destino dos milhares de judeus transportados para os campos de extermínio.

Dizendo-se funcionário público exemplar, Eichmann cumpria à risca as ordens superiores, cuja legalidade estava assegurada pelo ordenamento jurídico do regime nazista. Não havia ilegalidade em sua conduta, defendia-se; pelo contrário, agia exatamente como determinava a lei. Assim se manifestava o que Hanna Arendt depois conceituou como a “banalidade do mal”.

Neste breve texto, proponho um exercício intelectual no sentido de traçar um paralelo entre aquela prática nazista, cuja legalidade era atestada por importantes juristas da época, e o contexto atual do sistema penal brasileiro.

Para onde são levados aqueles que são apontados pela polícia como autores de crimes ou aqueles que são condenados pela justiça criminal brasileira?

Respondo: para presídios como esses das fotos ao longo do texto. Com uma ou outra diferença, a regra geral é a inclusão de homens e mulheres em espaços que em boa parte se assemelham a campos de concentração. Superlotados, fétidos e sombrios ou mesmo em ruínas, os presídios brasileiros são palco de abandono, doença, tortura e morte. Há poucas exceções que por isso mesmo são irrelevantes quando se observa o sistema prisional como um todo. A violação da dignidade de seres humanos é rotineira, o que expõe a prisão à máxima ilegalidade, pois contraria aquele que é um dos fundamentos do nosso país enquanto Estado Democrático e de Direito.

A esta altura você, leitor, já pode imaginar aonde pretendo chegar com este texto. Sim, os juízes e tribunais que fazem a jurisdição criminal no Brasil encaminham homens e mulheres para esses lugares aí das fotografias ou, se não esses, outros muito parecidos. Se você tem estômago forte, veja o documentário “O grito das prisões” (2008), produzido pela repórter Fátima Souza e pelo cinegrafista Ocimar Costa por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Carcerário, disponível no link.

Como você irá perceber, o documentário retrata muito bem a prisão, escancarando um pouco dos absurdos que acontecem nesse espaço de que tanto se fala. É basicamente assim que funciona a prisão no Brasil deste início de Século XXI, onde já estão cerca de 600 mil mulheres e homens.

Que a sociedade deva segregar alguns dos seus em função da prática de crimes é algo que não se discute, particularmente no presente momento da história. A abolição do cárcere é uma utopia, bela e até necessária, porém, ainda muito distante. Casos há que exigem, sim, o encarceramento como resposta. Este artigo não questiona esse fato, mas em como se dá a prisão de pessoas e como atua o sistema de justiça criminal em face dessa realidade.

Então vem uma segunda pergunta: diante do quadro de horror dos presídios brasileiros, como é que juízes continuam a encaminhar homens e mulheres para esses espaços que violam os mais comezinhos direitos fundamentais?

Também respondo: tal qual Adolf Eichmann, convicto de que atuava na estrita legalidade do regime político de sua época, os juízes brasileiros assim procedem com a certeza de que, ao encaminhar seus réus para a prisão, apenas cumprem com suas obrigações legais. Se Eichmann afirmava desconhecer o destino dos trens repletos de judeus para eximir-se de qualquer culpa, também os juízes criminais brasileiros, ressalvadas as honrosas exceções, não se interessam por conhecer a realidade das quase-masmorras para onde vão os camburões, tampouco o destino de seus prisioneiros uma vez recepcionados do lado de dentro dos muros. E não se incomodam, até por assim não se perceberem, em atuar como meros executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que, seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da população. São os nossos judeus.

O mesmo vale – e devo fazer o registro – para outros personagens que participam da persecução penal, com destaque para a polícia e o Ministério Público. Com as respeitáveis exceções de sempre, policiais e promotores de justiça, aliás, assumem abertamente e sem qualquer constrangimento o discurso de que o que vale mesmo é a punição, seja a que custo for. A esses agentes do Estado talvez sequer se apliquem as escusas de Eichmann, pois assim o fazem certos de que a sanção penal não precisa respeitar limites e que a violação de direitos dos presos não tem relevância, tampouco significa motivo de preocupação ou culpa, pois seria resposta legítima para a violação a que correspondiam os crimes praticados contra suas vítimas.

Se o inimigo da Alemanha nazista era o povo judeu, aqui os inimigos são identificados no delinquente e no preso. Contra eles toda a força da lei, dentro de um positivismo estúpido. E para que a máquina punitiva atue, tanto naquele regime autoritário quanto neste que se pretende democrático, as engrenagens são lubrificadas com um óleo alienante, o que faz com que os funcionários públicos que conduzem o processo penal não vejam qualquer culpa pelas consequências de seus atos. Afinal, sua atuação cumpre os rituais previstos expressamente na lei e o conjunto da obra, esse resultado de horror e morte no cárcere, não poderia ser a eles imputado.

É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações de direitos humanos em solo brasileiro.

A legalidade formal e, por isso mesmo, superficial, das prisões decretadas por juízes e tribunais dos quatro cantos do país, dissolve-se nos horrores da prisão. Entretanto, tal qual Eichmann, os artífices do sistema de justiça criminal apresentam-se como servidores públicos exemplares, cumpridores da ordem emanada da lei penal e, assim, isentos de qualquer responsabilidade.

Só não é demais lembrar que, mesmo sustentando com muito vigor a legalidade de suas ações enquanto simples cumpridor de ordens, Eichmann foi julgado, condenado e enforcado em Israel.

Haroldo Caetano da Silva é promotor de justiça, mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Autor de livros, dentre eles o “Ensaio sobre a pena de prisão” (Ed. Juruá).

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Cuidado, muito cuidado.

         Senhores, vou levar bordoada mas vou colocar alguns pensamentos nesta discussão.

         Primeiro, invocar o nazismo não é um bom começo. Nossa cultura trata o nazismo com o mal, banal ou não, e ninguém consegue fazer uma análise mais objetiva que não seja a melhor definição do mal. Talvez esse assunto desse uma ótima discussão, mas não aqui.

         A questão da comparação é perigosa, pois enquanto na Alemanha nazista chegou-se a condenação simplesmente por ser de tal raça, aqui os condenados ainda o são seguindo um processo legal e por crimes. Sem entrar aqui em questões sociais, nosso sistema, ao contrário do nazista, não condena alguém apenas por nascer.

         Porém, o maior problema do texto é a demagogia boba, jogar para a galera, que aqui no Blog vai comemorar. Alguém em sã consciência pensa que Dilma ou Lula, ou mesmo o FHC, não gostariam de resolver o problema da educação, da saúde, das prisões e tantos outros que todos sabemos que existem? No caso dp FHC nem que fosse por vaidade…

         Não fizeram e não fazem porque lutam com todos os meios para resolver outrtos problemas que consideram mais importante, como tirar gente da miséria, por exemplo. Até porque isso diminui a demanda por presídios…

         Mas o texto que tão bem compara o Brasil com a Alemanha Nazista sugere muito pouco para resolver a questão e do que entendi, parece sugerir, que a solução está em não se mandar mais ninguém para lá. Finge que eles não existem… 

         Mas eles existem, o problema precisaria de uma solução e governar é definir prioridades. 

     

    1. a comparação é restrita somente no ato de punir

      qualquer pessoa que não nasceu ontem sabe que a justiça julga diferente de acordo com o bolso do réu; se é rico será julgado em liberdade e o habeas corpus sai rápido; se for pobre espera uns anos na cadeia até ser quem sabe ABSOLVIDO, o problema da prisão é que tem mta gente que ñ foi condenada ainda e tb a velha lentidão da justiça comum e ineficácia da segurança pública em investigar(a maioria dos governos estaduais investem demais em polícia militar e pouquíssimo na polícia civil, assim apesar de ter a jagunçada para trocar tiro, ñ tem quem pode provar com clareza quem é o culpado)

       

      e quanto a comparação do texto: na Alemanha Nazista o simples fato de ser judeu já era motivo para condenar, no Brasil se o sujeito tem cara de pobre e é simplesmente acusado por um policial perante o juiz, já vai aguardar julgamento na jaula

       

      PS: antes que me acuse de esquerdista, vou dia 16 pra rua e quero a condenação da bandilma na lava jato

  2. Banalização do mal, sim

    A tese deste belo e desconfortável artigo de Haroldo Caetano é a de que o mal imposto aos condenados pela justiça criminal brasileira foi banalizado por sua magistratura, banalização do mal na acepção de Hannah Arendt.

    Para guerrear eficazmente a tese do artigo, ter-se-ia de provar (1) que as masmorras brasileiras não são um mal. Se tal não for provado, teria de ser provado, então, que (2) nossos juízes criminais não estão conformados com o destino hediondo imposto àqueles que condenam à prisão (lutando para extirpar do sistema de execução penal a hediondez que lhe é inerente, ou recusando-se a encaminhar condenados para essas casas de degradação física e mental).

    Bem, não há como negar que nossos presídios são um mal, as provas disto estão por todo lado.

    Como nossas masmorras são um mal, nossos juízes, mas, também, promotores e até policiais, têm o dever ético e moral de coletivamente, talvez por meio de suas associações de classe, se recusarem a mandar presos para locais onde não possam ser tratados, ao menos, como animais, como diria Sobral Pinto. Juízes criminais abstraírem-se das condições hediondas que serão impostas ao condenado à prisão é, em sentido lato, crime, interpretação aceita a partir das reflexões de Arendt. Os juízes criminais têm o dever para com a Humanidade de lutar para acabar com o absurdo vergonhoso dessa situação que degrada a todos nós, Estado, a sociedade como um todo e, principalmente, os presos, que degrada o Brasil.

    A comparação do nosso sistema de execução penal com o sistema nazista de matança de judeus é completamente pertinente: (1) mostra que o nosso sistema de execução penal, sob a ótica da banalização do mal, é comparável ao sistema nazista de extermínio de judeus. (2) Mostra, ainda, que nossos juízes agem no nosso sistema de execução penal como o burocrata Eichmann agiu no sistema de matança de judeus (e Eichmann foi condenado à morte, como Caetano nos lembra). Deve-se notar, também, que o crime de Eichmann, quando comparado com o crime (no sentido lato e sob a ótica de um humanismo mínimo) de nossos juízes criminais tem atenuantes: Eichmann era um funcionário subalterno, pouco instruído, condicionado a obedecer ordens cegamente, sob regime ditatorial em um país em guerra. Nossos juízes dispõem de enorme poder institucional e decisório, são muito mais instruídos em ética e moral do que Eichmann, afora Direito, e o Brasil é mais do que uma democracia, é quase um Estado laissez faire, especialmente quando se é juiz. (3) Mostra que as circunstâncias que ensejaram a constatação de Arendt em relação à banalização do mal na Alemanha nazista repetem-se no Brasil de forma ainda mais grave, pois enquanto Eichmann era um burocrata menor, seus equivalentes aqui no Brasil são juízes. Além disto, a comparação com as práticas da Alemanha nazista nos alertam da hediondez de nosso sistema de execução penal, um choque necessário.

    Contestações tergiversantes à tese do artigo, como a de que os judeus foram mortos porque eram, apenas, judeus (aliás, uma parte da sociedade brasileira quer prender petistas por serem, apenas, petistas) enquanto os condenados brasileiros são submetidos às condições hediondas e dantescas de nossas masmorras porque são criminosos (como se isso fosse justificativa para imposição destas condições) não arranham a tese de Caetano. O fato de nossos condenados serem criminosos não dá ao Estado o direito de impor-lhes punição horripilante, cruel, hedionda, medonha, não dá ao Estado o direito impor-lhes o mal, banalizado, ou não.

    Se os condenados pela justiça criminal brasileira e que foram submetidos ao sistema de execução penal pátrio pudessem formar um Estado, analogamente ao que aconteceu com Israel, e prendessem para julgamento nossos juízes criminais, certamente todos estes juízes seriam condenados à morte, como aconteceu com Eichmann, com base nos mesmos fundamentos da sentença que condenou Eichmann à morte.

    O texto de Caetano é belíssimo, inquietante, e, também, necessário. Tomara que enseje ampla reflexão no Judiciário sobre a questão.

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