Polícias são herdeiras da ditadura e devem ser controladas pelo MP, diz advogado

A discussão sobre a emenda constitucional que limita os poderes do Ministério Público e concede o poder de investigação criminal apenas à Polícia Judiciária (PEC 37) não leva em conta o fato de que o país viveu 21 anos de ditadura militar. As polícias brasileiras são herdeiras diretas desse período: são militarizadas e têm histórico de abusos e violações de direitos. Essa é a opinião do advogado Renan Quinalha, membro da diretoria do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito (IDEJUST) e Justiça de Transição e Assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

A discussão sobre a MP 37, em sua opinião, tem também que levar em conta um período onde ainda impera o “direito de transição”, ou seja, “todas as medidas políticas e jurídicas tomadas durante o período de troca de um regime autoritário e ditatorial para um regime democrático” – e, nesse caso, existe complementaridade entre o papel da MP e o que desempenha a Comissão da Verdade. “o relatório dos trabalhos das Comissões da Verdade deverão ser encaminhados aos MPs, para que estes tomem as providências cabíveis e deem continuidade ao processo de justiça de transição no Brasil. Não há verdade sem justiça, são dimensões reparatórias das graves violações de direitos humanos que caminham juntas”, afirmou.

O advogado aponta que as medidas tomadas dificilmente são consideradas justas por todos, pois “são tomadas nesse contexto excepcional e de grande tensão social”. Mas, se também não forem tomadas, pode haver graves consequências para os dias atuais, como a impunidade da violência policial e prejuízos a direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a dignidade.

Quinalha é autor do livro “Justiça de Transição: contornos do conceito”, Coleção Direitos e Lutas Sociais, Expressão Popular/Dobra Editorial.

Em entrevista exclusiva para o Jornal GGN ,ele fala sobre poder investigatório do Ministério Público, Justiça de Transição e Comissão da Verdade:

 Jornal GGN – O poder investigatório do Ministério Público é essencial às investigações criminais? Você considera que sem este poderá haver abusos por parte da polícia?

Renan Quinalha: Sem dúvidas, o poder investigatório do MP é essencial para a consecução das atribuições e prerrogativas garantidas a esse órgão. De acordo com suas atribuições singulares, constitucionais e regulamentadas por lei específica, ao MPF cabe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF). Por sua vez, o art. 129 da Carta Maior prevê um rol de diversas funções institucionais, dentre as quais destaco as seguintes: “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.

Nota-se, portanto, que o MP está incumbido de deveres muito importantes, inclusive de investigação, para a garantia dos direitos humanos e o aprofundamento da democracia brasileira. As polícias brasileiras, de maneira geral, ainda são muito precárias, além de apresentarem muitas limitações técnicas, humanas e científicas para a realização de investigações aprofundadas e adequadas aos diferentes tipos de crimes. Soma-se a isso o fato de que a maior parte das polícias tem histórico de abusos e de violações de direitos em virtude de serem, ainda, muito militarizadas, por serem herdeiras diretas do aparato de segurança e de repressão herdado da ditadura civil-militar que governou o país de 1964-1985. Por essas razões, o controle sobre as polícias é fundamental.

De que forma o poder de investigação criminal se atrela à justiça de transição?

O MPF, por meio de seu Grupo de Trabalho sobre Justiça de Transição, está contribuindo de maneira bastante positiva e significativa para a justiça de transição brasileira. Diante da inércia e da paralisia dos órgãos policiais e judiciários na apuração das graves violações de direitos humanos da ditadura, o MPF está agindo exemplarmente para romper com a impunidade em nosso país.

Esse Grupo de Trabalho está pressionando, de diferentes maneiras, o Estado brasileiro para cumprir a condenação do Brasil, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo desaparecimento de 70 vítimas na região norte do país, conhecido como Caso Araguaia.

Para isso, conforme documento recentemente divulgado intitulado “Relatório preliminar de atos de persecução penal desenvolvidos pelo MPF acerca de graves violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado durante a ditadura relatório o GT”, o MPF instaurou 170 investigações criminais dirigidas à apuração dos crimes de sequestro, homicídio e ocultação de cadáver, cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil. Quatro ações penais foram ajuizadas, e grupos de trabalho foram instituídos nas PRs de São Paulo e Rio de Janeiro. Quase duas centenas de testemunhas foram ouvidas pelos procuradores naturais dessas investigações.

Essa atuação é um exemplo fundamental de seriedade do trabalho do MP na realização de investigações. Certamente as polícias não teriam condições de fazer esse trabalho por si mesmas.

Como o poder investigatório do MP e as Comissões da Verdade se vinculam?

Tanto o MP quanto as Comissões da Verdade buscam uma finalidade comum, qual seja, de reconstruir a verdade e responsabilizar os autores dos crimes investigados. Suas atuações são complementares entre si. Mas os meios utilizados por cada órgão e a natureza dessa responsabilização são distintos, em virtude das competências específicas e privativas dessas instituições. Enquanto que o MP tem atribuição para atuar em busca da verdade e da responsabilização pelas vias administrativa e judicial, as Comissões da Verdade têm por tarefa fundamental reconstruir a narrativa histórica das graves violações de direitos humanos da época da ditadura. Certamente o relatório dos trabalhos das Comissões da Verdade deverão ser encaminhados aos MPs, para que estes tomem as providências cabíveis e dêem continuidade ao processo de justiça de transição no Brasil. Não há verdade sem justiça, são dimensões reparatórias das graves violações de direitos humanos que caminham juntas.

Você considera que a existência de um Ministério Público fortalecido como vemos hoje evita as arbitrariedades policiais da época da ditadura no Brasil e em outros países do mundo?

Sim. Nas democracias ocidentais contemporâneas, em que prevalecem modelos de Estado de Direito constitucionalizado, órgãos com as atribuições do MP são centrais para limitar ações do Estado contra os cidadãos. O poder precisa ser repartido em regimes democráticos e são necessários meios de controle, tanto entre órgãos estatais como da sociedade em relação a estes. Isso é salutar para a garantia dos direitos e para a consolidação da democracia.

No Brasil de hoje, o MP pode colaborar muito com o controle das polícias, mas precisa atuar mais junto da sociedade civil organizada e tomar cuidado para não incorrer em corporativismos, em deslumbramento com investigações “espetaculares” instrumentalizadas pela mídia e na representação de interesses particularistas, como por vezes ocorre.

 Você conhece algum caso de investigação do MP que justifique esta campanha incisiva contra o MP?

A atuação do MP, se bem feita de acordo com suas atribuições legais, desagradam setores – públicos e privados – com peso na vida política brasileira. A investigação e apuração de crime organizado, desvio de verbas, corrupção, abusos cometidos por agentes do Estado e violações de direitos humanos levam a confrontos com atores importantes no sistema político brasileiro. Então há problemas na atuação do MP que devem ser corrigidas também, mas não se justifica a supressão total de suas atribuições de investigação no campo criminal tal como pretendido com a PEC 37.

 Nos países que você estudou a questão da justiça de transição os MPs têm a mesma força que no Brasil?

Os países recém-saídos de ditaduras ou de guerras civis normalmente estão acometidos por uma fragilidade institucional e por um contexto político conturbado para levar a cabo investigações e processos penais contra membros do governo anterior. No entanto, com a estabilização da democracia, órgãos como o MP são fundamentais nesses países, por apurarem e moverem processos penais contra autores de graves violações de direitos humanos. No Brasil, precisamos entender que é preciso que haja complementaridade nas investigações das polícias e do MP. Obviamente que haverá, vez ou outra, tensão institucional e desgastes recíprocos decorrentes dessa competência compartilhada, mas administrar esse diálogo será melhor ao país do que simplesmente ceder à pressão de retirar os poderes investigatórios do MP.

 

Redação

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O MP e a ditadura

    À exceção do autor da entrevista, todos sabem que o MP esteve a serviço dos governos militares.

    No caso do assassinato de Vladimir Herzog, nas masmorras do Doi-Codi, o Ministério Público sustentou a tese do suicídio com o maior cinismo. E fez mais: quando foi datilografada a sentença na ação proposta pela viúva, sra. Clarice Herzog, o Ministério Publico requereu mandado de segurança contra o juiz para impedi-lo de ler a sentença no dia marcado. No Tribunal Federal de Recursos, um ministro deu a liminar e me contou, depois, “ou a liminar ou a cassação”. A liminar foi mantida até a aposentadoria do juiz, um mês depois. O procurador da República envolvido ficou uma fera, porque o juiz substituto prolatou a sentença em favor de dona Clarice. Não teve medo nenhum.

    No caso da Panair, o Ministério Público executou a intervenção decretada pelos militares e acabou com a companhia. Praticou todas as ilegalidades possíveis. Quando era muito acintoso o ato contrário à lei vigente, providenciava para que fosse feita outra e os militares baixavam decreto-lei atendendo ao pedido do fiscal da ordem jurídica.

     

  2. O MP e a ditadura

    À exceção do autor da entrevista, todos sabem que o MP esteve a serviço dos governos militares.

    No caso do assassinato de Vladimir Herzog, nas masmorras do Doi-Codi, o Ministério Público sustentou a tese do suicídio com o maior cinismo. E fez mais: quando foi datilografada a sentença na ação proposta pela viúva, sra. Clarice Herzog, o Ministério Publico requereu mandado de segurança contra o juiz para impedi-lo de ler a sentença no dia marcado. No Tribunal Federal de Recursos, um ministro deu a liminar e me contou, depois, “ou a liminar ou a cassação”. A liminar foi mantida até a aposentadoria do juiz, um mês depois. O procurador da República envolvido ficou uma fera, porque o juiz substituto prolatou a sentença em favor de dona Clarice. Não teve medo nenhum.

    No caso da Panair, o Ministério Público executou a intervenção decretada pelos militares e acabou com a companhia. Praticou todas as ilegalidades possíveis. Quando era muito acintoso o ato contrário à lei vigente, providenciava para que fosse feita outra e os militares baixavam decreto-lei atendendo ao pedido do fiscal da ordem jurídica.

     

    1. Nessa época existia a

      Nessa época existia a famigerada figura do promotor Ad Hoc. Certamente foi um desses a serviço do regime militar. Por outro lado o MP não tinha o delineamento que tem hoje na atual constituição, era órgão vinculado ao Poder executivo e suas funções além das tradicionais era a de uma espécie de procuradoria do executivo. Portanto esses argumentos não são válidos.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador