O que o subfinanciamento do SUS têm a ver com o Covid-19 e nossa sobrevivência

E aí, uma pergunta que tem inquietado a todos nós defensores do SUS. Foi necessário acontecer tamanha catástrofe para que pudéssemos reconhecer que o SUS é Patrimônio Brasileiro?

da Associação de Médicas e Médicos pela Democracia

O que o subfinanciamento do SUS têm a ver com o Covid-19 e nossa sobrevivência

A APS é a porta de entrada preferencial do SUS, certo? Porém o dinheiro que chega para financiar a APS é suficiente?

No momento que vivemos da pandemia catastrófica do Covid-19 todas as atenções e iniciativas se voltam para o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um sistema de saúde público, gratuito, e que garante segurança para a população brasileira em meio a essa tormenta. Mas, afiguram-se posicionamentos ambíguos por parte do governo e da população em relação ao SUS. Por um lado, existe um esforço de revalorização do SUS por parte da população, identificado amplamente na mídia, nas redes sociais e na própria fala do Ministério da Saúde, enquanto política pública de saúde e como um direito universal de todos os cidadãos, garantido pela constituição (Art. 196 ao Art.200). Nesse sentido, tem sido enfatizado que o SUS pelo seus próprios princípios que projetam uma ênfase na descentralização das ações, coopera e fortalece para o controle epidemiológico, o que é determinante para vivenciarmos esse momento de pandemia do Covid-19 com as menores perdas possíveis, sendo essa característica, única em todo o mundo. Por outro lado, temos propostas recentes e atuais que apontam para uma lógica de implementação de um modelo de Estado Mínimo, que desestrutura e privatiza a Atenção Primária à Saúde (APS) e que, dessa forma, impede uma qualificada gestão do cuidado da população.

E aí, uma pergunta que tem inquietado a todos nós defensores do SUS. Foi necessário acontecer tamanha catástrofe para que pudéssemos reconhecer que o SUS é Patrimônio Brasileiro? Será ele que nos tirará de uma tragédia anunciada pela Europa, Ásia e EUA? Sim, parece que sim! Não é mesmo?

O SUS é considerado um dos melhores sistemas de saúde do mundo, tanto em sua arquitetura quanto na capilaridade obtida, a despeito de toda sorte de dificuldades. Cabe destaque para medidas e mecanismos de financiamento pactuados ao longo dos anos que permitiram reforçar e ampliar a APS, possibilitando-lhe apresentar-se como a principal porta de entrada nas Redes de Atenção do SUS.  Para quem o conhece em sua profundidade sabe que, se devidamente financiado, pode ter uma qualidade ainda maior do que aquela atualmente observada.

Infelizmente, nesse período de crise nacional, algumas medidas acionadas pelo governo federal, a exemplo do estímulo à ampliação dos horários de atendimento das equipes municipais da Estratégia Saúde da Família proposta pelo Programa “Saúde na Hora” e a recente portaria que cria a ADAPS  (Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde) parecem constituir medidas inócuas e, de certo modo,  oportunistas na esteira de suas proposições de austeridade financeira imposta ao SUS, que afetam especialmente à APS. É preciso deixar claro que essas tentativas de alterar a APS brasileira e, por consequência, o SUS, postas em marcha em 2019 pelo governo Bolsonaro, seguem a trilha e aprofunda medidas implementadas anteriormente (governo Temer), que alteram a Política Nacional da Atenção Básica (PNAB/2017). Estas medidas, por sua vez, alinham-se com mudanças políticas mais amplas que visam a redução do gasto público nas áreas sociais, definidas, de forma, intencional na Emenda Constitucional 95/2016 (EC-96/2016). A partir daí, há novo e decisivo “ataque ao coração do SUS”, personificado na APS, promovendo mais regressão de direitos, em nome da “redução dos gastos públicos”.

Vários programas  como Saúde na Hora, Médicos Pelo Brasil, Previne Brasil, foram lançados ao final de 2019 com o claro objetivo de mascarar as dificuldades financeiras e os cortes no repasse de recursos federais aos Estados e Municípios brasileiros, por meio de mecanismos ilusórios de maior descentralização na gestão municipal para gerenciar recursos cada vez mais escassos. Eis a lógica perversa da EC 95. Em decorrência dessas iniciativas governamentais, tem havido uma nítida (mas ainda inicial) desarticulação dos processos de trabalho das equipes de atenção primária no Brasil, movidas pela imperiosa necessidade de se adaptar à nova política de financiamento, que prioriza o cadastramento de populações vulneráveis. A atualização de cadastros de atendimento em si parece louvável e até necessário. Contudo, pautar a forma de financiamento e de repasse de recursos no quantitativo de pessoas cadastradas, sobremodo, quando se têm ainda equipes incompletas, unidades e serviços de saúde com equipamentos de informática insuficientes, senão obsoletos, realidades distintas e bem desiguais entre municípios e estados brasileiros,  definindo tempo recorde para cadastramento e atualização por parte das equipes e definir recursos em função somente do quantitativo de “atendimentos”,  pode se revelar como mais um ataque ao princípio da universalidade (todo cidadão tem direito à saúde) do SUS. Prioriza-se, assim, a parte assistencial em detrimento das ações de prevenção e de promoção (integralidade).

Cabe lembrar que as medidas supramencionadas ocorrem num cenário de cortes e restrições orçamentárias e de recessão, com repercussões nítidas na arrecadação de impostos por estados e municípios brasileiros.  Para se ter uma ideia, conforme dados do Portal Transparência, para o ano de 2019, o orçamento da União previa para a saúde pouco mais de cento e quarenta e sete bilhões de reais. Todavia, ao final de 2019, os valores executados foram de cento e quatorze bilhões de reais. 

 

ORÇAMENTO ATUALIZADO PARA A ÁREA DE ATUAÇÃO SAÚDE – 2019

R$ 147,43 BILHÕES

TOTAL DE DESPESAS EXECUTADAS PARA A ÁREA DE ATUAÇÃO SAÚDE – 2019

R$ 114,18 BILHÕES

 

Fonte: http://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/10-saude?ano=2019

Assim, tomando como base o ano de 2019, o SUS, que tem na universalidade uma das suas principais características, operou com um montante muito inferior àquele que seria necessário para funcionar em todos os níveis de atenção, qualificando as Redes de Atenção à Saúde (RAS), seja no nível básico onde estão as Unidades Básicas de Saúde, no intermediário onde se encontram as policlínicas e centro de especialidades e no nível  terciário, onde se situam os grandes hospitais. A organização em RAS é uma estratégia pensada e executada para fomentar a integralidade do cuidado, de forma a combater a fragmentação no acompanhamento de todo o cidadão brasileiro, cujo cuidado deve iniciar-se e ser coordenado por sua equipe da Unidade Básica de Saúde, contribuindo para o acesso a serviços com efetividade e eficiência. 

Como já dito, tal arquitetura e capilaridade dependem do devido financiamento para assegurar recursos humanos, estruturas físicas, equipamentos e insumos indispensáveis aos processos de trabalho. Assim, com a imposição do “teto dos gastos” imposta pela EC-96/2016 ao governo federal e aos governos estaduais e municipais, a situação de financiamento e precarização do SUS, só piorou. É importante que se enfatize e se leve à toda a população brasileira o que é verdadeiramente a EC 95/2016. Essa emenda à constituição congelou os gastos da União com as despesas primárias por 20 anos, tendo como índice de correção apenas a inflação medida pelo IPCA (índice de preços ao consumidor amplo). Assim, a emenda fere brutalmente o direito instituído, que deveria garantir o repasse de recursos orçamentários para a sustentabilidade do SUS. Importante lembrar que na medida em que a população brasileira cresce e envelhece, os investimentos nesta área necessitariam ser de maior incremento, para além dos índices de inflação oficial, e não o de retirada de investimentos. 

Preconiza-se e implementa-se a “precarização” porque o entendimento daqueles que definem atualmente as políticas vigentes no país é em não colocar a saúde do povo como prioridade, para o seu bem-estar e seu adequado cuidado cotidiano. Isso se traduz e é identificado por estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (COFIN) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que estimou que ao longo de duas décadas, os danos em termos de perda financeira para o SUS girará em torno de R$ 400 bilhões, dinheiro esse que fará muita falta a todos os sistemas locais de saúde do Brasil, sendo esse fato provavelmente determinante no aumento da morbidade e mortalidade da população.

Para agravar a situação, no fim de 2019 e complementando as ações da EC-96/2016, o governo federal por meio do Ministério da Saúde (MS) lançou o Programa Previne Brasil, afirmando ter como objetivo destinar mais recursos para os municípios com ênfase na APS. Importa destacar que a APS tem na estratégia saúde da família (ESF) seu modelo prioritário para organização do cuidado no território e que, no seu cerne, as ações se desenvolvem a partir de sua base territorial, de acordo com as necessidades de saúde da população de cada território definido. Então, como acreditar que o previne Brasil contribuirá com a qualificação da APS se  prevê  a distribuição de recursos com base em critérios como o número de pessoas acompanhadas, cadastradas e atendidas nos serviços de saúde, mesmo com o olhar prioritário para as pessoas que recebem benefícios sociais, crianças e idosos, porém voltando o foco do financiamento para o que a equipe conseguir produzir?

Ora, são notórias as dificuldades enfrentadas pelas equipes de saúde da família, a sobrecarga física e mental a que são submetidos por falta ou insuficiência de trabalhadores nas equipes, por insumos reduzidos e/ou adequados para o cuidado e muitas vezes até por falta de infraestrutura ideal. Além disso, não se pode esquecer que, no Brasil, as equipes de ESF atuam em comunidades vulneráveis e por isso mesmo com alto grau de criminalidade, criminalidade essa que avulta e ameaça os próprios trabalhadores de saúde da APS. Convive-se com desemprego, com adoecimento psíquico por violência doméstica, com famílias imersas em drogadição e traficância. Por isso, sabe-se que esse perfil epidemiológico provoca situações de adoecimento que extrapolam a capacidade de atuação de médicos, enfermeiros e dentistas. Para se construir um atendimento integral e que seja resolutivo na APS, é necessário muito mais do que essas três profissões, precisamos de investimento na interdisciplinaridade e na intersetorialidade. Precisamos de pessoas que conheçam de perto essa realidade, construam vínculo de confiança e compromisso com as famílias. Para tanto, o trabalho de agentes comunitários de saúde (ACS) é INDISPENSÁVEL e PRIORITÁRIO. Ora, diante de tantos determinantes sociais em saúde chega-se à conclusão de que o melhor modelo para resolver os problemas da população brasileira certamente não é o que preconiza o atendimento ambulatorial como substrato para a produtividade. No Brasil, país marcado por desigualdades e iniquidades sociais, além de uma clínica resolutiva em todas as UBS, com elevado grau de resolutividade e aumento do escopo de atendimentos, precisamos de projetos terapêuticos que abranjam toda a complexidade dos problemas! Para tanto, temos que lançar mão de tecnologias coletivas do cuidado, ou seja, aquelas que vão ao encontro das pessoas que não consigam chegar à unidade de saúde. E para isso se precisa de um maior e real investimento e valorização da APS nas políticas públicas do Brasil.

Assim, diante da gravidade da situação da epidemia do Covid 19, ao lançar estímulos financeiros, induzindo a extensão do horário de atendimento das unidades básicas de saúde, o governo federal acena com uma mão para os gestores municipais e, com a outra, produz a perversa lógica da privatização dos serviços de saúde, dessa feita, no âmbito da APS, ao implementar por meio de Medida Provisória, a criação da ADAPS. Fica evidente o intuito de permitir a contratação de serviços privados, em claro ataque ao setor público do SUS que tem na ESF sua força maior. 

Outro exemplo emblemático da desorganização induzida por medidas autoritárias do governo federal consubstancia-se no cancelamento do Programa Mais Médicos, em 2019, provocando a saída de centenas de médicos cubanos de áreas vulneráveis, de difícil acesso e, historicamente, desassistidas e pouco atraentes para médicos brasileiros. Agora, diante da magnitude da crise, com o Covid 19, em situação de desespero, o governo tenta a “reativação” do Programa Mais Médicos, convidando médicos cubanos antes tratados de forma intolerável e preconceituosa, inclusive, pelo Presidente da República.  De fato, desde o final de 2019, a Estratégia Saúde da Família vem sendo desvalorizada com o lançamento do Previne Brasil, recebendo agora, novo ataque frontal.  O governo federal joga por terra uma experiência exitosa de APS com quase 30 anos de sucesso no Brasil, em nome de um discurso ultrapassado de produtividade a todo custo.

Em verdade, as últimas medidas situam-se claramente em continuidade e em perfeita sintonia com as demais ações do atual governo federal, iniciadas em 2019, sob o argumento da nova política de austeridade financeira.  Na APS tais medidas se revelam em clara oposição ao nosso SUS público e universal.

Conclui-se que em tempos de pandemia do Covid 19, se assiste a uma APS desarrumada em função dos retrocessos incentivados pelo Previne Brasil, que se depara com uma situação caótica, amplificada pela magnitude dessa epidemia que se abate sobre o país. Os danos e prejuízos podem ser mais severos do que se pode imaginar. Após os primeiros meses de 2020, já se esboçam as primeiras lições do Covid 19: países com sistemas públicos de saúde sólidos, como a Inglaterra, mas que vivenciaram cortes e retrocessos decorrentes de políticas ultraliberais, enfrentam dificuldades para dar conta da demanda posta em tempos de pandemia. Mas, certamente, serão esses os países que estarão mais bem equipados e preparados para lidar com a magnitude da situação.

Torna-se imperiosa a tarefa de ampla defesa do nosso SUS, como principal arma para a proteção de nossa população diante dessa calamidade. Tal tarefa está a exigir de todos articulação e luta permanentes, envolvendo gestores estaduais, através do CONASS, gestores municipais, através do CONASEMS e, de modo geral, o Conselho Nacional de Saúde e seus congêneres estaduais e municipais. Cabe envolver amplamente a sociedade em defesa do SUS, mobilizando nossas associações acadêmicas (a exemplo da ABRASCO) profissionais, entidades da sociedade civil, Parlamento e Judiciário todos em defesa do que constitui, de fato, o maior patrimônio público brasileiro: o SUS!

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Presidência da República. Programa Médicos pelo Brasil, in: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13958.htm, pesquisa realizada em 22 de março de 2020.

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a 11 organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde, 2017 a

 

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília: Casa Civil, 2016b.

 

Contribuição da Rede APS ao debate sobre as recentes mudanças na política de Atenção Primária, in, https://www.abrasco.org.br/site/eventos/congresso-brasileiro-de-ciencias-sociais-e-humanas-em-saude/contribuicao-dos-pesquisadores-da-rede-aps-ao-debate-sobre-as-recentes-mudancas-na-politica-de-atencao-primaria/43125/, pesquisa realizada em 22 de março de 2020.

 

FREITAS JÂNIO. Bolsonaro inaugurou seu desgoverno com devastação do Mais Médicos – A cota de responsabilidade do presidente pelas consequências da pandemia vai muito além de suas suposições idiotas. in: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2020/03/bolsonaro-inaugurou-seu-desgoverno-com-devastacao-do-mais-medicos.shtml.

 

Esse texto foi construído em parceria por:

 

1.      ELIANA COSTA GUERRA – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

2.      ELIZABETHE CRISTINA F. DE SOUZA – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

3.      LAVINIA UCHOA AZEVEDO DE ARAUJO – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

4.      LYANE RAMALHO CORTEZ – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

5.      OSWALDO GOMES CORREA NEGRAO – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

6.      PAULO DE MEDEIROS ROCHA – Docente do Departamento de Saúde Coletiva da UFRN

 

 

 

Redação

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