Além da instabilidade generalizada, Milei avança com agressões e conflitos
por Maíra Vasconcelos, Especial para Jornal GGN
São poucos aqueles que arriscam um cenário futuro para a Argentina atual, seja de melhoria dos índices econômicos a curto ou longo prazo, seja a consolidação ou não do presidente no poder, seja se alcançará e quanto de legitimidade para governar, seja sobre as reformas neoliberais que pretende aplicar, seja sobre o rumo das alianças governistas no Congresso, seja sobre o nível de aprovação ou rejeição popular do governo ultraliberal. Todas essas incógnitas, e é possível citar outras mais, representam um cenário de completa instabilidade socioeconômica, em uma Argentina à mercê de um experimento ultraliberal e de governança extremista. Um país, digamos, “acostumado” a épocas de instabilidade, a hiperinflação e demais incertezas sociais se encontram, hoje, com a memória de outras crises, frequentemente lembradas pela mídia local.
Mas Javier Milei é o primeiro mandatário de extrema-direita do país, pós-redemocratização, com um plano inédito de hiper ajuste e uma batalha cultural também mais extremista e violenta, disposto a tensionar com qualquer grupo social, representante sindical, governadores, Congresso, que resista a se juntar aos seus.
Essa postura, ao menos até agora, está longe de ser um fator político negativo. O presidente conta, hoje, com cerca de 50% de apoio popular. É considerado um bom índice, ainda que a situação no Congresso seja desfavorável ao governo, tendo perdido, até agora, todas as suas principais batalhas – a votação da Lei Bases, que ficou conhecida como “Lei ônibus”, e o mega Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), derrotado no Senado (41 votos contra, 25 a favor), e agora deve passar pela Câmara dos Deputados, que decidirá sobre sua constitucionalidade ou não. No entanto, há uma notável, e comentada na mídia local, falta de vocação e até desinteresse de Milei em consolidar e ampliar sua base de apoio no Congresso.
O partido de governo, “La Libertad Avanza”, tem 38 dos 257 deputados e sete dos 72 senadores, além de não contar com governadores, nem com prefeitos. Apesar da óbvia fragilidade, o presidente não tem privilegiado as alianças, os consensos, ou atitudes de negociação que ampliem seu poder de governabilidade. O que prima é o contrário. Os tons e posturas agressivas de Milei, constantes ataques dirigidos não apenas à oposição, mas também àqueles de seu próprio arco político, que não estejam dispostos a apoiar todas as medidas propostas pelo governo. Após derrota da “Lei ônibus”, Milei se referiu ao Congresso como um “ninho de ratos”. O presidente descarrega sua violência verbal contra toda crítica e tudo o que tem considerado traição.
Como dito em um editorial de José Natanson, “Kaos”, no Le Monde Diplomatique, deste mês de março, Milei se comporta com um nível de agressão “impensável para um político profissional”. Situações que expõem o grau de conflito, agressividade e permanente insulto com o qual Milei atua. Com aguda presença nas redes sociais*, o presidente incentiva xingamentos contra aqueles que o atacam. Além dos anúncios oficiais que, muitas vezes, têm saído primeiro por Twitter (X), através da rede Milei tem fomentado insultos aos deputados que se opõem aos projetos do governo.
Em episódio recente, em entrevista para a CNN Espanhol, Milei instaurou uma crise diplomática ao acusar o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, de “assassino terrorista”, e ao insultar de “ignorante”, a Andrés Manuel López Obrador, presidente do México. Disse: “Que um ignorante como López Obrador fale mal de mim, me enaltece”. Petro decidiu retirar o embaixador colombiano da Argentina, e expulsou do país o argentino Gustavo Dzugala. Em outra situação, em meio à disputa sobre a distribuição de recursos públicos entre o governo federal e as províncias, o presidente demitiu o ministro de Infraestrutura, Guillermo Ferraro, acusado de vazar para a imprensa os supostos insultos aos governadores durante uma reunião de gabinete.
A guerra com as províncias
Por causa do hiper ajuste, e recorte no repasse de verbas federais às províncias, Milei desatou uma guerra com os governadores. A província de La Rioja anunciou que emitirá “quase-moedas”**, Misiones ameaçou instalar “aduanas internas”, e as províncias da região da Patagônia cogitam blindar sua produção de gás e petróleo. Sobre essa situação, o jornalista Fernando Rosso comentou, no artigo “Milei contra Milei”, “na guerra contra os governadores, Milei socava aqueles que sempre atuaram como doadores voluntários de governabilidade. Além do mais, a asfixia de recursos (a todas as províncias) atiça eventuais conflitos institucionais ou explosões sociais nas províncias para as quais a assistência federal é vital”, escreveu Rosso, no Le Monde.
Ainda segundo o periódico, na edição, “A construção do inimigo”, a criação de inimigos pode ser uma estratégia política de Milei para consolidação de sua governabilidade. Talvez, não baseada em significativos logros econômicos e sociais, mas na consolidação de uma batalha cultural levada ao extremo. Como pode ser, por exemplo, o negacionismo em relação aos crimes cometidos durante o terrorismo de Estado, levado a cabo no golpe de 1976, ou quando proibe a letra “e”, a chamada linguagem inclusiva, em documentos dos departamentos públicos; além de uma política exterior declaradmanete alinhada com Isarel e Estados Unidos, quando acontece o maior conflito na faixa de Gaza, e, até o momento, já foram mortos mais de 29 mil palestinos.
Com a ideia fixa de refundação da Nação argentina, de entrar para a história como o presidente que tirou o país da “decadência”, Milei continua com a motosserra ligada à máxima potência. O ajuste do ministro da Economia, Luis “Toto” Caputo, continua a pleno e a conta também tem sido repassada, não à chamada “casta” política, como havia dito o presidente. Mas aos aposentados (o corte chega a 25% no valor das aposentadorias), aos trabalhadores, formais e informais, aos funcionários públicos (as próximas demissões podem chegar a 70 mil empregados). Como também a conta do ajuste tem sido paga por aqueles que para comer precisam ir aos chamados “refeitórios populares”, que têm reclamado da falta de comida, situação comprovada por diferentes organizações sociais.
Por outro lado, como já era de se esperar, as ruas continuam mobilizadas, os protestos são frequentes no centro de Buenos Aires, desde a assunção do presidente, em 10 de dezembro do ano passado. Panelaços, uma greve geral e nacional, com 45 dias de governo, assembleias de bairro, marchas dos partidos de esquerda, multitudinária manifestação dos movimentos feministas, no dia 8 de março, marcha massiva no Dia da Memória, quando se homenageia as vítimas da última ditadura cívico-militar (1976-1983), repressão às manifestações na porta do Congresso, quando da votação da “Lei ônibus”. Ainda assim, é muito duvidoso, se apesar deste cenário de deterioração social e econômica, haverá, como em 2001, uma insurreição da sociedade civil.
*A página web independente monitora a atividade de Javier Milei no Twitter.
**As “quase-moedas” são títulos de dívida emitidos pelas províncias e pelo país, que podem ser dados como parte do pagamento a funcionários públicos e fornecedores, que, por sua vez, utilizam esses títulos para comprar bens e serviços, como se estivessem comprando moeda corrente. As quase-moedas surgiram em meados da década de 1980, mas seu uso generalizado ocorreu em 2001, quando foram adotadas pelo país e por 14 províncias. A emissão de quase-moedas pode levar ao aumento da inflação e até mesmo à perda do valor desses títulos. (traduzido do site chequeado.com)
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.