Os conflitos não cessam: a Colômbia mostra a cara da juventude latino-americana, por Camila Koenigstein e Andrea Guzmán

Desde 28 de abril, parte da população está permanentemente ocupando os espaços e as vias públicas, sob o mote: “Se o povo está na rua em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”.

Os conflitos não cessam: a Colômbia mostra a cara da juventude latino-americana

por Camila Koenigstein* e Andrea Guzmán*

Em 1963, o historiador inglês Eric Hobsbawm fez sua primeira visita à Colômbia. Após a fase de grande efervescência política e social, oriunda de um período que ficou conhecido como La violência (1925-1958), o investigador chegou à conclusão de que a violência sistêmica existente no país era fruto de décadas de um projeto social frustrado.

O não desenvolvimento de políticas públicas que buscassem algo de mínima igualdade entre os cidadãos colombianos durante o início do século XX gerou um estado de cólera que criou socialmente a naturalização da brutalidade. No entanto, para que tal estado seja naturalizado há que engendrar ou mudar completamente as estruturas mentais, e “criar” novas subjetividades que permitam que não exista comoção social diante da morte de cidadãos considerados de segunda categoria.

Na América Latina, o impacto da violência está estritamente vinculado a cor, classe e gênero. Entretanto, em larga duração histórica houve a construção de todo um aparato discursivo (estatal, legal e midiático) que possibilita que a opressão seja vista sempre como necessária contra os indivíduos que pertencem a esses grupos.

Durante o tempo que esteve no país, Hobsbawm observa atentamente a coisificação dos homens e mulheres atingidos diretamente pelo sistema vigente, curiosamente se interessa por um caso específico que descreve toda uma realidade ainda presente não só na Colômbia, mas em todo o continente.

Teófilo Rojas (Chispas), morto há pouco tempo, considerado responsável por pelo menos dois assassinatos diários durante cinco anos. […] Os guerrilheiros, bandidos e aventureiros são gente perdida, especialmente a juventude perdida, os homens de 30 a 35 anos, que, se podem, saem rumo às montanhas. O triste caso do famoso Chispas, que se viu lançado à ilegalidade aos 13 anos, após ver o assassinato do pai, o desaparecimento da mãe e irmãos, e o massacre dos seus vizinhos, mostra o poder que o descaso estatal pode gerar. Nos arquivo Guzmán[1] figura uma entrevista com ele:

– O que mais te impressionou?

– Ver arder as casas.

– O que te fez sofrer mais?

– Ver minha mãe e irmãos chorando de fome.

– Tem alguma ferida?

– …

– O que deseja?

– Que me deixem em paz. Quero trabalhar. Tinha o desejo de aprender a ler, mas eles não pararão até que eu esteja morto. Um homem como eu não pode estar vivo. (Eric Hobsbawm)

No início de abril, o ex-ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla anunciou um plano de reforma tributária [2]. A princípio, a medida gerou mais impacto na classe média, que já vinha sofrendo com os problemas econômicos provocados pela pandemia, iniciada em março de 2020. No entanto, diante do contexto complexo de precarização em todos os aspectos sociais, houve o crescimento do sentimento de indignação na população de forma geral. Os altos níveis de corrupção – mais a postura ditatorial do atual presidente, que insiste em questionar constantemente as medidas tomadas pelo Judiciário – geraram uma onda de protestos que se espalhou por todo o país.

Desde 28 de abril, parte da população está permanentemente ocupando os espaços e as vias públicas, sob o mote: “Se o povo está na rua em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”. Jovens de regiões completamente abandonadas pelo Estado, indígenas (miga indígena) [3], mulheres, campesinos e estudantes se uniram para reivindicar absolutamente todos os direitos sociais que por anos lhes são negados.

As décadas de violência geradas pelo governo de Álvaro Uribe, o narcotráfico e as guerrilhas levaram à eclosão de uma enorme revolta popular.

Embora tenha sido firmado acordo de paz em 2016, não ocorreu a diminuição da violência nas zonas rurais e empobrecidas do país, a Colômbia segue sendo um dos países que mais matam defensores de direitos humanos.

Es difícil dimensionar el problema. Lo cierto es que no afecta a todos los colombianos por igual, ni a todas las regiones. La violencia contra los líderes sociales se concentra justo en las regiones marginadas y golpeadas por el conflicto armado. Las víctimas son personas que defienden los derechos humanos de sus comunidades, personas que rechazan proyectos de extracción mineral que van en detrimento del medio ambiente, o aquellos que piden una distribución más justa de la tierra, y también los excombatientes de las FARC. En resumen, los ciudadanos que practican la democracia en las regiones son estigmatizados, perseguidos y asesinados. La violencia pone en riesgo el Acuerdo de Paz, y la paz misma en el país. – Stefan Peters (Instituto Colombo-Alemán para la Paz (CAPAZ)

O governo de Iván Duque, assim como o de Messias Bolsonaro, tem como princípio a expansão do neoliberalismo na sua maior potência. A compra de aviões de combate dentro de um contexto sanitário de emergência foi só uma pequena mostra dos valores que regem o mandato do atual presidente.

O biopoder [4] é exercido diariamente sobre corpos fragilizados de pobres campesinos e indígenas, que, até então, não reagiam com tamanha força à opressão que sofriam.

Como sabemos, os movimentos insurgentes brotam espontaneamente, trata-se de um acúmulo de frustrações que criam em determinado momento histórico um cenário em que a linguagem perde a força e os corpos entram como forma de expor todas contradições sociais.

Os confrontos começaram na cidade de Cali, na parte sul ocidental da Colômbia. A cidade, que na contramão do restante do país sempre nutriu um rechaço à figura de Iván Duque, assim como do seu mentor ideológico, o ex-presidente Álvaro Uribe, foi responsável pelo processo de mobilizações sociais. É importante ressaltar que Cali está localizada geograficamente em uma região composta de uma população majoritariamente negra, indígena e campesina, ou seja, os que mais sentem os golpes violentos do Estado.

As manifestações surgiram por meio da convocação de sindicatos, estudantes, professores e todo um corpo social negligenciado.

O que era para ser um movimento pacífico ganhou contornos inesperados. Após o primeiro momento de marchas, o governo estadual decidiu colocar nas ruas uma subcategoria da polícia com a justificativa de manter a “ordem” e a “tranquilidade” dos protestantes. Porém, desde então o cenário é de barbárie.

Posteriormente, o que estava concentrado na região do Vale do Cauca se espalhou por todo o país. A pressão popular fez com que a reforma fosse anulada, mas a população percebeu que o espaço público lhe pertence e que nele é possível questionar e alterar a ordem social.

Até o momento, as violações aos direitos humanos são aterradoras. De 28 de abril até 11 de maio, já houve: 41 assassinatos (em sua maioria, de homens jovens), 963 prisões arbitrárias, 12 casos de violência sexual contra mulheres, 28 vítimas de mutilação nos olhos e 548 desaparecimentos.

Ainda que o contexto seja desfavorável, uma vez que a pandemia segue matando diariamente, gerando até o momento a morte de 79.760 de cidadãos, as manifestações se mantiveram por todo o país e as reivindicações já não estão mais centralizadas. O movimento ganhou força e ao mesmo tempo expõe outra face da população colombiana.

Essa face é jovem, furiosa e ávida por seus direitos, já não aceita facilmente negociações, pois a truculência do Estado não cessa, mesmo que o presidente tenha feito pronunciamentos que poderiam ser interpretados como um sinal de avanço dentro da crise que se instalou.

As partes mais vulneráveis da sociedade civil ainda desejam que ocorram reformas em outros âmbitos, por exemplo: reforma no setor educacional (educação superior gratuita e de qualidade), melhores condições na área da saúde, proteção aos líderes comunitários e, principalmente, o cumprimento dos acordos de paz que desde 2016 são constantemente violados.

Os jovens que hoje ocupam a linha de frente e as barricadas já não estão sozinhos.

A miga indígena aderiu aos protesto. Contudo, a aproximação da agrupação nas partes de maior conflito gerou mais repressão e expôs o colonialismo presente no continente. Muitos indivíduos, ditos “sujeitos de bem”, saíram às ruas, atacando com armas de fogo os manifestantes e desqualificando a importância do movimento dentro indigena dentro do contexto de reivindicações sociais.

Nos últimos dias, um veículo de comunicação importante fez a separação entre cidadãos e indígenas, evidenciando um pensamento ainda vigente em todo o continente, o de que o outro que não é o branco, letrado ou “criollo” tem que ser desprovido dos seus direitos civis.

Embora as imagens de violência extrema contra os mais desprotegidos produzam tristeza, também geram reflexões sobre a juventude latino-americana. Cansados da falta de perspectiva de uma vida digna, esses cidadãos colombianos buscam agora, talvez, uma morte honrosa. Mães saem para cozinhar para os filhos na rua, um cenário de guerra, como se soubessem que a morte ou o desaparecimento pode ocorrer a qualquer momento, mas entendem que essa é a única via que sobrou.

Vale recordar novamente Hobsbawm e seu olhar preciso quando descreve a escalada da violência e dos conflitos que começaram no início do século e se estendem até o presente momento.

Isso é o que pode suceder quando as tensões revolucionárias sociais não são dissipadas pelo desenvolvimento pacífico da economia a fim de criar estruturas sociais novas e revolucionárias. Os exércitos de mortos retirados de suas terras, os mutilados físicos e mentais são o preço que paga a Colômbia por esse fracasso. Eric Hobsbawm (1963)

Assim, o direito de viver está demarcado por toda uma estrutura desigual, um projeto histórico em curso há mais de 500 anos que busca explorar os corpos considerados inferiores para depois descartá-los.

A América Latina ainda está nas mãos das elites criollas, e a junção do colonialismo,do neoliberalismo e do fracasso dos projetos progressistas forma esse quadro arcaico, distópico, repleto de mortes, mas que não produz reação nas camadas abastadas da sociedade, algo que verdadeiramente nunca ocorreu, pois os que morrem são os mesmos que morreram quando tudo começou.

Bibliografía

https://www.dw.com/es/asesinatos-de-l%C3%ADderes-sociales-colombia-mata-a-quienes-practican-la-democracia-en-las-regiones/a-56218920

https://www.dw.com/es/asesinatos-de-l%C3%ADderes-sociales-colombia-mata-a-quienes-practican-la-democracia-en-las-regiones/a-56218920

https://www.redalyc.org/pdf/439/43942944004.pdf

https://psicologiaymente.com/social/biopoder

http://www.indepaz.org.co/cifras-de-violencia-policial-en-el-paro-nacional/

https://www.minsalud.gov.co/salud/publica/PET/Paginas/Covid-19_copia.aspx

https://www.publimetro.co/co/entretenimiento/2021/05/10/le-dan-palo-a-noticias-caracol-por-controvertido-titular-sobre-los-indigenas-en-cali.html

*Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

*Liliana Andrea Guzmán. Graduada em História, pela Universidad del Valle (Cali – Colômbia). Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).


[1] Monseñor Guzmán, foi escritor, conhecedor e investigador da violência da Colômbia.

[2] O projeto apresentado no dia 15 de abril tinha como finalidade o aumento de impostos para financiar os gastos públicos do governo, pelo aumento da base de arrecadação do imposto de renda e sobre serviços básicos e sobre valor agregado (IVA). No entanto, desde 2019 já estava em andamento a chamada lei de reativação econômica que buscava diminuir a carga tributária do setor empresarial colombiano. Muitas empresas agroindustriais atualmente têm menos impostos e assim pensam que vão impulsionar o setor do agronegócio no país, atingindo diretamente a agricultura familiar e a subsistência.

[3] Segundo Martha Peralta Epieyú, presidente do Movimento Alternativo Indigena e Social (MAIS)”o significado de miga deriva do conhecimento que tinham os indígenas sobre o trabalho dividido para “o bem estar comum. É o encontro no qual circula a palavra e se pensa e se constrói o bom viver”. A miga acredita na mobilização pacífica como forma de buscar soluções para os problemas comunitários.

[4] Michel Foucault cunhou o conceito de biopolítica, ou biopoder, na última seção do primeiro volume de sua História da Sexualidade, 1976. Nesta seção, denominada “direito à morte ou poder sobre a vida”, ele explica como nos últimos dois séculos um passo foi dado no modo de exercer o poder pelos Estados: antes o poder baseava-se na capacidade do soberano de matar, agora se baseia na capacidade de administrar a vida.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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