por Bruna Della Torre*
“Quando pensamos em pílulas vermelhas e azuis no mundo real, obviamente, estamos pensando no estado orwelliano de controle da mente. Não vamos curar todo o seu cérebro. Após o tratamento, por exemplo, você ainda pode ser um torcedor do Celtics. Nosso interesse químico é exclusivamente no lóbulo político.“
Curtis Yarvin, A Gentle Introduction to Unqualified Reservations
Matrix foi o grande filme de ficção científica de minha geração. Talvez por isso, sempre me chamou a atenção o uso da metáfora da pílula vermelha pela extrema direita trumpista e bolsonarista. Difundida por uma postagem no Twitter de Elon Musk em 2020, que aconselhava seus seguidores a “tomar a pílula vermelha”, a expressão foi mobilizada dessa forma por Curtis Yarvin, o filósofo favorito da alt-right estadunidense, expoente fundador do movimento Dark Enlightenment [esclarecimento obscuro], já em 2007. Sob o pseudônimo de Mencius Moldbug, ele escrevia em seu blog: “Todos vimos Matrix. Sabemos sobre as pílulas vermelhas. Muitos dizem vendê-las. Por exemplo, você pode ir a qualquer livraria e pedir ao homem atrás do balcão por um pouco de Chomsky. O que você vai receber são pílulas azuis pintadas em vermelho #3”. De acordo com Yarvin, a pílula vermelha que seu blog oferece é: “A América é um país comunista”. Sua tese é a de que democracia é incompatível com liberdade. E a verdade é que nós habitamos a Matrix ou “A Catedral”; um sistema composto pela burocracia estatal, pela mídia burguesa e pelas universidades que pouco a pouco visam impor uma ditadura comunista woke. Foram dez anos insistindo nesse tipo de tese na internet. Suas ideias, divulgadas no blog até a vitória de Trump, estão na base da nova direita americana (Bannon foi um leitor ávido de Yarvin) e tiveram profunda ressonância no Brasil.
Ao acompanhar os depoimentos das pessoas detidas no dia 8 de janeiro após a ocupação da sede dos três poderes, que diziam estar salvando o ex-presidente Jair Bolsonaro de uma tentativa de assassinato do PCC a mando de Alexandre de Moraes e o país da ameaça comunista, não conseguia deixar de pensar na “pílula vermelha”. Ao que parece, ela também foi distribuída por aqui, provavelmente junto com os pacotes de cloroquina comemorados pelos patriotas durante a pandemia.
Tudo bem que as pessoas que invadiram a sede dos três poderes no dia 8 de janeiro foram financiadas pelo capital interessado no caos político do país e abrigadas debaixo da asa do exército. Ou seja, é certo que elas na realidade constituíram uma massa de manobra que estava a serviço de interesses econômicos, políticos e militares golpistas cínicos que devem ser rastreados e combatidos. Mas constatar que houve manipulação não é o mesmo que explicar o que aconteceu. A turba que há semanas já estava rezando para pneus nos quartéis e estradas Brasil afora não é uma contingência e deve ser compreendida como fenômeno sociológico mais geral que marcou a ascensão de extrema-direita no Brasil.
Afora os parentes de pessoas do exército, mais envolvidas com o governo, as pessoas que ali estavam eram comuns: aposentados, desempregados, trabalhadores precarizados, funcionários públicos, professores e donas de casa. Pessoas que poderiam ser da família de qualquer um de nós, reacionários de botequim, tios do churrasco, tias do zap, muitos envolvidos em pequenas ilegalidades, outros apenas calibrados na própria revolta de uma classe média precarizada. Essas figuras, que encontramos em festas insuportáveis de família, em supermercados, no trabalho, no transporte público, são as mesmas que jogaram jornalistas no chão e as feriram com chutes e unhadas e que não tiveram o menor pudor em se filmar em atos escatológicos e transmiti-los ao vivo nas redes sociais. Aliás, esse episódio revela também o caráter visceral do bolsonarismo, cuja fixação com a sexualidade infantil, com a zoofilia, pedofilia e etc. passa por protesto contra o bom gosto elitista globalista.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn”
Tenho acompanhado grupos bolsonaristas no Telegram, Instagram, Gettr e em outras redes sociais e é fato que muitas das pessoas que estavam em Brasília no dia 8 e várias outras que não estavam acham realmente que Bolsonaro não saiu fugido do país e que as eleições foram fraudadas por uma conspiração da esquerda com a Suprema Corte. Além disso, depois da eleição, começaram a circular nesses grupos uma série de postagens sobre o doomsday scenario no qual, segundo eles, já estamos inseridos: o frango vai custar 80 reais, quem quiser sobreviver terá que comer o seu cachorro de estimação como na Venezuela, quem quiser se salvar vai ter que fugir do país à pé, os opositores do regime estão sendo perseguidos pela Big Tech, o governo já está prendendo pessoas em campos de concentração, a educação ideológica será obrigatória e etc. Ouvi, em conversas informais com bolsonaristas, que de fato as pessoas não estão gastando dinheiro com medo do quem vem por aí, que o país já está um caos, o combustível impagável e que alguns produtos já sumiram do supermercado. O quadro apocalíptico que circula nas redes é acompanhado de uma profusão de postagens que aconselham as pessoas a não saírem de casa (não é hora de carnaval, nem de festa, pois o país está ruindo), a não usar cartão de crédito, a não fazer compras desnecessárias para guardar dinheiro, entre outros disparates. Tem até quem venda um “Protocolo Norte-Americano de Proteção”, uma espécie de guia de sobrevivência a governos de esquerda concebido após a derrota de Trump para proteger “sua família, seu dinheiro e sua liberdade”. Mas o que interessa nisso tudo do ponto de vista político é que o bolsonarismo, como outras formas de fascismo, caracteriza-se pela impossibilidade de transformação da consciência no confronto com a realidade e na apresentação dessa consciência como algo que está fora da ideologia. O fato de um frango não custar 80 reais, um estádio não constituir um campo de concentração e o preço do combustível ser o mesmo do final do ano não parece fazer diferença. Os bolsonaristas parecem imunes à experiência. Não é por outra razão que, ao acompanhar o seu discurso, temos a impressão de habitar uma realidade paralela (um “Brasil paralelo”, como eles mesmos assumem em uma de suas plataformas mais importantes).
É certo que a radicalização política é um processo complexo e compreende uma série de fatores sociológicos, políticos e históricos. Tenho insistido por aqui na tese de que a nova infraestrutura digital ocupa um lugar central nesse fenômeno na medida em que pode substituir um partido de massas na organização do fascismo. Além de permitir, como notou Wendy Brown em As ruínas do neoliberalismo, a conexão de diversos grupos antidemocráticos minoritários, produzindo uma inflação da extrema-direita e uma internacionalização nunca vista desse movimento, as redes sociais combinam perfeitamente a organização vinda de cima (com o financiamento do grande capital) e a reprodução rizomática desses grupos na internet: um grupo é bloqueado ou desmonetizado e outros cinco surgem em seu lugar.
O episódio de 8 de janeiro mostra a importância de se considerar esse elemento para entender o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. A questão da “pílula vermelha” expõe um paradoxo que me parece central no entendimento do bolsonarismo: como pode um movimento tão fora da realidade, embriagado em teorias da conspiração, achar que sua leitura paranoica e projetiva da realidade – para não dizer delirante – é, no final das contas, pós-ideológica? Para os bolsonaristas, nós, da esquerda, é que estamos imersos na ideologia, seja ela de gênero, comunista ou compreendida como falsa consciência. Eles são aqueles que despertaram para uma verdade que resiste a qualquer teste de validade. Creio que isso tem tudo a ver com o que se convencionou chamar de capitalismo de plataforma, esse novo estágio do capitalismo neoliberal financeirizado.
A economia de plataforma tem se mostrado um dos maiores laboratórios políticos da história do capitalismo. O que estamos vivenciando é de fato uma experiência sem precedentes na história da propaganda política (direta ou indireta) e de seus efeitos. O escândalo da Cambridge Analytica evidenciou como foram conduzidas, em colaboração com essas redes, experiências político-digitais com vistas a produzir um determinado comportamento eleitoral. Vimos nos Estados Unidos, com a invasão do capitólio, e no Brasil nos últimos anos, como esse comportamento produzido pelas redes extrapolou a esfera eleitoral. Para além do elemento organizativo, as redes sociais colaboraram para a transformação da política naquilo que Guy Debord chamou de espetáculo. A violência com que a sede dos três poderes foi invadida era concebida para ser filmada, fotografada e postada em tempo real.
Vou poupar a leitora do mesmo argumento de sempre relativo à circularidade dos algoritmos das redes sociais e suas afinidades com a radicalização política. Ao invés disso, creio que vale assumir a máxima da crítica cultural dialética de que as pessoas não são piores do que a sociedade na qual vivem para entender quais condições materiais permitem que milhares de pessoas acreditem que há um chip na vacina contra a covid-19, que a Terra não é esférica e que Alexandre de Moraes é comunista. As redes desenvolveram radicalmente alguns aspectos que já estavam presentes na indústria cultural desde seu nascimento de forma que mudanças quantitativas resultaram em mudanças qualitativas importantes no âmbito da política, da cultura, da comunicação, da socialização e da noção de verdade.
Quem notou pela primeira vez que as noções de verdade, de conhecimento e de crítica mudavam com o advento da indústria cultural (que ainda não atendia por essa alcunha) foi Walter Benjamin. Inspirado no cinema, na imprensa soviética e nas considerações de Brecht sobre o teatro épico, Benjamin apontava para uma tendência advinda do desenvolvimento das forças produtivas na cultura: o declínio do especialista. Para ele, a reprodutibilidade técnica e a democratização da cultura a ela atrelada permitiria a qualquer um que assistisse uma partida esportiva ou um filme tornar-se um especialista ou ao menos um semiespecialista. O monopólio da crítica cultural, do especialista e, portanto, do conhecimento da realidade havia acabado. No entanto, ao invés de ser substituída por um sistema de comunicação mais democrático, ela passou das mãos dos especialistas para a mídia burguesa que orientou os processos de socialização e subjetivação da maior parte do século XX nos países ocidentais e naqueles que seguem seu modelo.
Hoje, a economia de plataforma conferiu à indústria cultural um novo aspecto. Se antes essa mídia burguesa ditava o que aparecia em seus filmes, jogos, programas – ou seja, definia ela própria os especialistas que nos ajudavam a viver nossa vida cotidiana, tirados de universidades e/ou empresas de boa reputação – atualmente, a indústria cultural digital parece um mercado autorregulado cujo conteúdo é em grande medida produzido pelo público, se é que ainda podemos utilizar essa expressão. Não só a ideia do especialista foi pulverizada com a transformação de todos em especialistas, como nesses espaços a figura do especialista passou a ser malvista. O leitor comum é o resenhista da Amazon. Os Youtubers de maior sucesso na rede são aqueles que não são especialistas em nada – sua especialidade consiste justamente em ser um Youtuber. Vivemos a distopia do “Autor como produtor”. As plataformas digitais apareceram como uma correção da indústria cultural ela mesma – especialmente para setores de extrema direita, que viram nesse desdobramento uma alternativa para a indústria cultural tradicional.
A economia de plataforma tem como contrapartida ideológica uma noção muito particular de liberdade, ecoada por esses grupos. As plataformas de trabalho parecem livrar a classe trabalhadora do jugo da chefia e da gerência e, por isso, produzem a impressão de que tem colaboradores com autonomia e não empregados. Sua estratégia bem-sucedida para driblar a legislação trabalhista aparece como ganho de liberdade para a classe trabalhadora. O mesmo se passa com as plataformas de propaganda e comunicação. Elas se apresentam como ganho de liberdade de expressão, uma liberdade ausente de responsabilização política e jurídica das instâncias tradicionais da produção de cultura e conhecimento. Assim como os trabalhadores estão libertos do patrão para concorrer livremente entre si, como empreendedores, distantes dos poderes reais que comandam a sociedade e contra os quais podem pouco, as ideias tornam-se igualmente concorrentes nas plataformas digitais, distante de suas contrapartidas reais e livres de reflexão, bem como qualquer instância de verificação. Nesse contexto, a qualidade dos conteúdos que circulam é determinada pelo número de visualizações que uma postagem tem. Os critérios de verdade das redes se medem pela circulação pura e obedecem mais ao domínio técnico do aparato do que a qualquer critério de verificação. Cria-se, assim, uma espécie de “fetichismo da escolha”. As pessoas sentem experimentar esse mundo como agentes livres e a ideologia da liberdade é muito necessária para sustentar esse modelo de capitalismo hostil a qualquer tipo de regulação.
O ritmo do debate político se torna especulativo – a cada semana um tema em alta, que rapidamente desaparece. As redes mudam até mesmo o sentido de “engajamento”, antes ligado à política e que, aliás, passa a fazer parte de seu próprio vocabulário. Engajar-se vira um fim em si mesmo, significa perder tempo naquele espaço virtual, não importa como nem por quê. Engajar-se significa meramente estar ali, responder à polêmica da semana. Essa necessidade de participar de cada debate – que torna cada vez mais difícil discernir aquilo que interessa daquilo que é irrelevante – também gera um debate fragmentado, que muda a cada semana e que fica na esfera da superfície, o que contribui para uma atomização cada vez maior.
Conforme nos tornamos mais e mais apêndices desse aparato corporificado em nossos celulares e computadores, mais evidente seu impacto na vida política e cultural da sociedade. As redes sociais atualmente minam a especialidade científica também dentro da universidade: os intelectuais, para permanecerem relevantes, passam a ser reféns daquilo que é da última hora. Um livro que saiu há dez anos passa necessariamente a ser um livro prescrito; o intelectual que – como o Youtuber – não é capaz de falar de tudo é considerado um incompetente. A produção do conhecimento crítico abandona, assim, qualquer intenção de totalidade. Nesse terreno, os pseudointelectuais como Yarvin e Olavo de Carvalho proliferam. É também por essa razão que candidatos à presidência são obrigados a ir a programas de Youtubers reacionários para ganhar visibilidade.
A multiplicação das opiniões nessas redes e de informações na internet dá a impressão de que vivemos numa era na qual ninguém mais pode ser enganado. Afinal, todas as informações de que precisamos estão ao nosso alcance. Com tanta informação e com tanta liberdade, o capitalismo de plataforma se apresenta como uma era pós-ideológica. Mas, como ensinou Frankfurt, nada mais opaco do que a transparência. Nesse sentido, o que se designa por pós-verdade é a própria condição de existência desse novo capitalismo e vai muito além do espraiamento de notícias falsas ou da chamada desinformação. É esse processo que confere imunidade à experiência da qual padecem os bolsonaristas, ao menos aqueles que realmente se radicalizaram por meio das teorias conspiracionistas nas redes. Não é à toa que aquilo que para eles aparece como verdade tem a mesma natureza da revelação religiosa e estabelece com o fanatismo religioso uma série de afinidades. A pílula vermelha conduz a um Iluminismo das trevas, um Iluminismo às avessas.
A Matrix é o mundo virtual que garante que no “deserto do real” os seres humanos possam ser cultivados em massa para alimentar as máquinas. O filme trabalha justamente com o caráter ilusório do real e real das ilusões. Para a extrema direita, é para o mundo virtual que conduz a pílula vermelha: o mundo dos blogs, dos influencers etc. Seu ato falho denota a consciência de se viver num mundo falso, ao mesmo tempo em que aponta para o caráter realista da duplicação da realidade da indústria cultural digital. A toca digital do coelho vai fundo e não leva ao país das maravilhas. 8 de janeiro está aí para lembrar de que temos grandes desafios pela frente.
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*Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
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