O enterro da “democracia utópica”, por Luis Felipe Miguel

Promulgação da Constituição de 1988 em Brasília. Ao centro, presidindo a sessão da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães.

no Blog da Boitempo

O enterro da “democracia utópica”

No Brasil, a disseminação do enquadramento liberal fez com que nossa própria transição política fosse avaliada tendo como único metro as instituições formais que dela emergiram.

por Luis Felipe Miguel

Quando o bloco soviético entrou em colapso, a ciência política estadunidense entrou em festa. Era o triunfo simultâneo do capitalismo e da democracia, enfim unidos como par indissociável. Uma democracia, é claro, plenamente equiparada à sua efetivação nas sociedades ocidentais. Samuel Huntington, o veterano cold warrior de Harvard, escreveu que a “terceira onda” de democratização, no último quarto do século XX, punha fim à polêmica sobre o sentido da democracia, em favor de sua versão concorrencial, limitada. Ainda mais ousado, Francis Fukuyama, então estrela em ascensão no neoconservadorismo, decretou a chegada do fim da história, com uma eternidade de economia de mercado e instituições políticas liberais nos aguardando pela frente.

Huntington e Fukuyama nunca foram santos de devoção da esquerda, mas ela também não ficou imune ao novo clima. Um debate que começara no meio dos anos 1970, no eurocomunismo italiano, e que chegou ao Brasil no final daquela década, por meio de um famoso artigo de Carlos Nelson Coutinho, foi resolvido meio de supetão: a democracia estava alçada à condição de valor universal. Aliás, sem nenhuma das ponderações que o próprio Coutinho apresentava, sobre a necessidade de avançar para uma “democracia pluralista de massas”, superando os obstáculos que a ordem capitalista impõe à ampla participação popular. A parafernália institucional do liberalismo foi aceita como alfa e ômega do ordenamento político e, mais, foi aceita em seus próprios termos, como fórmula para resolver as disputas em paz e em igualdade de condições.

Não por acaso, naquele momento a teoria política crítica aderia a modelos também convergentes com o enquadramento liberal e cada vez mais despreocupados com o impacto político das desigualdades sociais. O ideal da “democracia deliberativa”, que colonizou o espaço das visões democráticas radicais, assumia que, estabelecidas as condições para um diálogo abrangente, franco e igualitário, seria alcançado um autêntico consenso racional sobre todas as questões polêmicas. As relações sociais de dominação eram transcendidas por um ato de vontade teórica e nossa meta passava a ser uma versão sofisticada do velho “conversando a gente se entende”. Os instrumentos para o tal diálogo franco, como os teóricos da corrente não tardaram em indicar, já estavam nas instituições da própria democracia liberal.

No Brasil, a disseminação do enquadramento liberal fez com que nossa própria transição política fosse avaliada tendo como único metro as instituições formais que dela emergiram. O resgate da imensa dívida social podia ser considerado importante, até mesmo crucial, mas formava um capítulo à parte. A convivência entre democracia e desigualdade aparecia como natural e pouco problemática. A crença num céu político completamente desvinculado de sua base material, que Marx já denunciava, tornou-se artigo de fé geral.

Quando as nuvens do golpe de 2016 já sombreavam o horizonte, a maior parte da ciência política brasileira ainda via nossa democracia como “consolidada”. E mesmo hoje, quando o som dos coturnos em marcha alcança nossos ouvidos, muitos ainda se perguntam como pôde ter acontecido o que aconteceu e não vislumbram nenhum projeto além da restauração da ordem que foi derrubada junto com a presidente Dilma Rousseff.

Mas tal restauração, caso alcançada, padecerá da mesma fragilidade que foi congênita à institucionalidade instaurada com a Constituição de 1988. A coexistência entre democracia e desigualdade só é tranquila caso a democracia contenha a cada momento seu impulso igualitário. Num país como o Brasil, cujas classes dominantes são tão arredias a qualquer diminuição da distância que as separa do resto da população, isto significa uma democracia que, na tentativa sempre frustrada de se afirmar consolidada, nega permanentemente a si mesma. Como o golpe demonstrou de forma cabal, mesmo o programa reformista mais tímido possível, aquele que o PT no poder adotou, foi demasiado.

Não é errado ver na democracia um método para a resolução pacífica dos conflitos sociais. Mas só ver isso é deixar de lado sua outra face, ao menos igualmente importante. A democracia traz, em seu próprio nome, um paradoxo: é o governo do povo, isto é, é o governo daqueles que são governados. Seu princípio é conferir poder a quem não o tem. É um regime que, para ser digno de si mesmo, deve entrar em combate contra todas as formas de opressão e dominação vigentes na sociedade. Talvez o que nos permita alcançar uma democracia mais consolidada não seja a minimização de sua ambições, a fim de não ameaçar os dominantes, mas, ao contrário, a construção de uma sociedade mais igualitária.

***

A Boitempo prepara-se para lançar em breve o novo livro de Luis Felipe Miguel: Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória.

 

Luis Felipe Miguel

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Capenga

    Nos anos 70 Berlinguer já havia levado a posição de Democracia como valor fundamental até mesmo para o PCUS .

    Gorbatchev  tentou com a dupla Perestroika-Glasnost  dar um componente democrático , mas foi solenemente torpedeado por Ieltsin.

    O estrago feito por Berlusconi (e em parte pela Mani Puliti) desarticulou o sistema político italiano e o dano é sensível até hoje.

    Nos EUA o processo de pasteurização e banalização da política (captado magistralmente em Testify do Rage Against the Machine (https://www.youtube.com/watch?v=Q3dvbM6Pias). ) desembocou em uma inacreditável (para alguns ) eleição do showman Trump. Huntington e Fukuyama não estavam certos. A História continua!

    Nossa Democracia (?)  é capenga e frágil. E como já falaram os Paralamas :

    O governo apresenta suas armas
    Discurso reticente, novidade inconsistente
    E a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard

    Ainda mais quando o governo é o que é o nosso!

     

     

  2. Só não entendi um pequeno detalhe.

    Enquanto os partidos comunistas europeus simplesmente se liquidaram, os governos latino-americanos tenderam a esquerda (depois foram devidademente enquadrados por forças externas), mas para o artigo parece tudo o mesmo. Será?

  3. NAO leia se tiver estomaco fraco.

    O mais angustiante documentario jamais feito esta abaixo.  Nada de images fortes nem manipulacao do publico, mas tenho que deixar o aviso que a narrativa eh muito chocante.

    No meio do nada em algum lugar da Etiopia, uma mulher vasa urina pela vagina depois que o peso da gravidez mergiu o canal vaginal com a bexiga -e existe casos bem piores, como a juncao da vagina ao colon, que deixam a mulher vazando fezes pela vagina.

    Uma angustia tremenda em casa fracao de segundo.  Ate no fim, depois da operacao, quando ela finalmente arruma um emprego do outro lado da India, salvo engano, e voce fica feliz por ela, voce ainda fica angustiado sobre a proverbial “vida” oferecer um campo de sofrimento tao extenso a quem ja nao tem nada.

    [video:youtube.com/watch?v=ZUe5QChQyvg]

    Nao sei se o Brasil de Lula nasceu ou se foi abortado, Luis.

    O que eh visivel eh que todas as instituicoes brasileiras, do judiciario ao espiritismo, estao vazando fezes pela vagina.

  4. curso proibido

    Luís Felipe Miguel é o professor da disciplina eletiva sobre o golpe de 2016 que está sendo oferecido na UnB e que Mendoncinha, o “ministro” da educação do golpe, está querendo proibir. “Não houve golpe, por isso, vamos censurar o conteúdo de uma disciplina, castrar a liberdade de cátedra, avacalhar, mais uma vez, a autonomia universitária.” Que tempos! Ainda bem que as instituições estão funcionando plenamente.

  5. Democracia ocidental…
    … É a arte de seduzir um debiloide (o povo desorganizado). “Vamos tentar Corrupção! Ih, não colou? Então, quem sabe, Criminalidade?”

    Quando a escolha oferecida é binária, o resultado geralmente é empate (menos de 10 pontos percentuais de diferença entre vencedor e perdedor), porque a massa amorfa, não tendo elementos para comparar as duas opções, distribui seus votos equitativamente entre elas. É o que vem ocorrendo nos EUA e no Brasil.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador