As críticas de Tuiuti e Beija-Flor vencem carnaval 2018

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Modificada às 18h40
 
 
Jornal GGN – Beija-Flor e Tuiuti, cada uma abordando de uma forma a crítica, foram as vencedoras do carnaval no Rio de Janeiro. A Beija-Flor abordou a corrupção, ficando com 269,6 pontos. Em seguida veio a Paraíso do Tuiuti, com 269,5 pontos. A Paraíso do Tuiuti conseguiu um grande feito, levou consigo a preferência do público.
 
Paraíso do Tuiuti fez uma crítica contundente ao atual momento brasileiro. A escravidão que foi abolida é reeditada com as ações do governo Michel Temer. Uma apoteótica crítica social e um samba-enredo que vai entrar para o olimpo daqueles inesquecíveis.
 
Abaixo, artigo de Miguel MArtins, da CartaCapital, sobre as críticas potentes das duas escolas no carnaval do Rio 2018:
 
Por Miguel Martins
 
 
Da CartaCapital
 
A primeira escola elegeu a escravidão como raiz de nossos problemas. A segunda contou a história do Brasil a partir dos desvios morais
 

Os desfiles das escolas Paraíso do Tuiuti e Beija-Flor de Nilópolis na Sapucaí chamaram atenção pela dimensão política dos sambas-enredo e por referências nada sutis ao atual estado do País.

Em sua apresentação na madrugada da segunda 12, a primeira retratou manifestantes de verde e amarelo em trajes de pato e manipulados por um vampiro presidente inspirado em Michel Temer. Enalteceu ainda os “guerreiros da CLT”, representados nas fantasias como uma espécie de deus Shiva dos trabalhadores, munido de martelo, foice e outros instrumentos em seus quatro braços. Os integrantes da ala carregavam ainda uma enorme carteira de trabalho avariada, uma crítica à reforma trabalhista aprovada no ano passado.  

Já a Beija-Flor “ergueu” o Congresso e o prédio-sede da Petrobras em um de seus carros alegóricos na madrugada desta terça-feira 13. Tomado pela criminalidade, o edifício da estatal transforma-se aos poucos em uma favela: a pobreza como consequência da corrupção. O saque à Petrobras é acompanhado de perto por corruptos com panos na cabeça, uma clara alusão à “farra dos guardanapos” do ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso, e de seus ex-secretários com o empreiteiro Fernando Cavendish.  

Vigorosos no carnaval de rua, os temas políticos ganham força na Sapucaí em reflexo do ano eleitoral e de um País dividido sobre diversos temas, a começar pela narrativa mais apropriada para explicar o atual drama brasileiro. Os desfiles da Paraíso do Tuiuti e da Beija-Flor não se resumiram aos fatos atuais, mas adotaram abordagens históricas distintas da formação brasileira.

O início do desfile da Beija Flor trouxe alegorias que remontam à história do doutor Frankenstein, escrita há 200 anos, e a relação entre o criador e sua criatura. O monstro de Frankenstein, no caso, é o próprio Brasil. 

Na sequência da apresentação, surgem as alas dos piratas e dos espólios, das santinhas do pau oco usadas para sonegar impostos da Coroa no ciclo da mineração, dos ratos e abutres que integram a “quadrilha da mamata” instalada no poder. O desfecho dessa parte é a ala dos roedores dos cofres públicos, que abre o caminho para a alegoria da Petrobras e dos corruptos atuais. 

O ponto de partida da Tuiuti é a escravidão. Chamada “Grito de Liberdade”, a comissão de frente trouxe negros escravizados que libertam-se por meio da força dos seus ancestrais. Em seguida, o desfile traz temas da história geral e brasileira do cativeiro, até relacionar a perda de direitos trabalhistas na atualidade com a herança escravista de superexploração do trabalho no Brasil. 

As escolas optam por caminhos distintos, que estão por trás de um debate relevante sobre nossa história. A alegoria do País da corrupção trazida pela Beija-Flor é uma das interpretações mais antigas de nossa historiografia. Escrito nos anos 1920, “Retrato do Brasil” de Paulo Prado, buscava explicar a suposta tendência nativa ao desvio moral em razão do tipo imoral de europeu que nos colonizou.

“No Brasil, logo nos anos que se seguiram ao descobrimento, se fixaram aventureiros em feitorias esparsas pelo litoral. Eram degredados que abandonavam nas costas as primeiras frotas exploradas, ou náufragos, ou gente mais ousada desertando das naus, atraída pela fascinação das aventuras. Dessa gente, raros eram de origem superior e passado limpo”, escreve Prado.

Mais à frente, intelectuais como Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro também buscariam em nossa colonização razões para nossos desvios civilizatórios, embora com interpretações muito mais robustas. Rejeitado na academia atualmente, o argumento de Prado sobre a degeneração e nossa suposta essência corrupta por vezes se reproduz no senso comum, sendo tratado como verdade absoluta por grande parte da população em meio às investigações da Lava Jato. 

Se a Beija-Flor foi a porta-bandeira da tese do “País da corrupção” na Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti alinhou-se com uma interpretação acadêmica que ganhou força nas últimas décadas: mais do que a corrupção, a preservação do sistema escravista e da superexploração do trabalho é a principal característica das elites econômicas da Colônia e do Império.

Nas últimas décadas, diversos historiadores buscaram consolidar a escravidão como tema definitivo de nossa formação social e cultural, a exemplo de Luiz Felipe de Alencastro, que aborda em “Trato dos Viventes” a construção do império ultramarino português a partir das redes comerciais no Atlântico Sul, notadamente às do tráfico negreiro. Um dos principais críticos atuais da tese do “País da corrupção”, o sociólogo Jessé Souza costuma afirmar que a escravidão é o principal pilar da nossa formação histórica, e não os desvios éticos, comuns a todos os povos. 

Embora partam de pontos de vista distintos, as abordagens históricas das duas escolas também se entrecruzam. As alas destinadas a retratar a corrupção no início do desfile da Beija-Flor dão lugar a alegorias e fantasias contra a intolerância e o preconceito.

Temas como a xenofobia, a discriminação, o feminícidio e a apresentação do carnaval como espaço da redenção democrática ganham espaço. O abandono dos filhos “da pátria que os pariu”, tema do desfile da escola de Nilópolis, não é apenas fruto da corrupção, mas também das violências simbólicas contra as minorias. 

Por outro lado, a corrupção não está ausente do desfile da Tuiuti. Pelo contrário: enquanto a comissão de frente aborda a escravidão, o último carro alegórico a passar pela Sapucaí não traz apenas um vampiro presidente. Rodeado de notas de dinheiro, o sangue-suga está a serviço do enriquecimento ilícito.

O combate à corrupção surge no desfile da Tuiuti não como ponto central de nossa formação histórica como povo, mas como um discurso muitas vezes utilizado por integrantes da elite, também corruptos, para manipular a opinião pública contra seus algozes. 

A discussão sobre o Brasil estar assentado principalmente na corrupção exposta pela Beija-Flor ou na exploração denunciada pela Paraíso do Tuiuti não se encerra em um simpósio de historiadores ou em um desfile de carnaval. O fato de duas escolas terem transformado esse debate em festa e música mostra, porém, que os problemas do País não são mais adiados para a quarta-feira de cinzas.  

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

25 Comentários

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    1. “establishment”
      A “crítica social” chapa branca, alinhada ao império …
      Há 50 anos, o povão gritava num Maracanãzinho lotado: “é marmelada”!
      A história se repete como farsa.

  1. Acabei de ler uma coisa

    Acabei de ler uma coisa interessante. O enredo da Beija Globo, a campeã, sobre corrupção, teria sido ideia do filho do bicheiro da escola.

  2. Estou aqui imaginando como

    Estou aqui imaginando como vai ser o desfile das campeãs..

    A penultima que entra é Tuiuti – 

    A última que entra é a Petrobras, ops, digo, a Beija Flor – 

     

    (vai entrar aquele pessoal, como foi no desfile da Beija Flor sem punição de tempo)

     

  3. VIVA TUIUTI!

    Mas não puderam deixar de atribuir o vice-campeonato à verdadeira campeã: Paraíso do Tuiuti, que trouxe uma crítica mais profunda e expôs a manipulação da classe média que propiciou o golpe que, por sua vez, está retirando direitos e fortalecendo nossa herança escravista.

    Beija-Flor fez o discurso do stablishment golpista. Só podia ter ganhado.

  4. Sim, mas…

    Os sambas enredo (as narrativas) que estas duas escolas colocaram na rua são opostos. Na verdade, radicalmente opostos.

    A da “ganhadora” usa o discurso da globo e da vazajato. É um discurso adesista, conformado, reacionário, de exaltação do que há de pior no Brasil: este reacionarismo fascista, criminoso e hipócrita – que, aliás, tem tudo a ver com a própria Beija Flor, que é fiananciada pela corruptora contravenção do jogo do bicho e apresenta um samba que exalta o combate à corrupção.

    A que ficou com o vice-campeonato, por outro lado, usa o discurso da dissonância desta hipocrisia dominante e, até onde se sabe, tem financiamento muito modesto. Daí advém sua força, irreprimível.

    No placar oficial, como era de se esperar, “ganhou” a da grobo. No placar da preferência popular, ganhou a que tem a força da realidade e da justiça.

  5. Enredo da Beija Flor para 2019

    Continuação do carnaval 2018. Para combater a corrupção, o samba-enredo Só o Compliance Salva, letra do procurador Carlos Fernando, que vai desfilar no carro alegórico. Aguardem. 

  6. Não devemos nos preocupar com a leitura que o povo fará.

    O enredo da Beija-flor fica limitado a algo episódico manipulado pela mídia, o enredo da Tuiuti simplesmente escreve a história do Brasil da escravidão a Lava-Jato. Um é uma mero deboche de uma situação e outro é um retrato de centenas de anos de história. O povo engole os dois, digere-os e tem a sua própria leitura.

  7. Lavajateiros, bicheiros e Globogolpistas…(Tudo A Ver !!)

    Só falta o filho do bicheiro Anizio Abrão David convidar os juizecos que condenaram o Lula para desfilarem na Beija-Flôr abraçados aos capos do jogo do bicho do RJ e o globalKamelista Boni .  

    Em tempo :

    Os jurados da Marquês de Sapucaí demonstraram mais imparcialidade que juizecos dos tribunalzinhos de Porto Alegre e de Curitiba .

      1. Não duvido de mais nada neste brazil bananeiro…

        A “famiglia Beija-Flor” ditando regras sobre compliance :

        Como utilizar o jogo de bicho para conquistas políticas e sequentemente utilizar o tesouro público (municipal) para financiar escolas de samba e retroalimentar o prestígio político …(e a roda vai girando)

         

  8. tudo que é tocado pela Globo se estraga…

    e não poderia ser diferente com a Beija Flor…………………………………….

    venceu a junção de dois enredos: um do coração e o outro do bolso ou da enganação

    era só o que faltava na avenida, vencer enganando o povo

  9. Pq a Globo censurou a Tuiuti

    Por favor, leia, confira e ajude a divulgar !

    ENTENDA PQ GLOBO CENSUROU TUIUTI

    Livro Abre Alas explica tudo q será exibido e Globo, lógico, o recebeu.

    Lá está tudo q Globo censurou pág 173/223

    http://liesa.globo.com/material/carnaval18/abrealas/Abre-Alas%20-%20Domingo%20-%20Carnaval%202018%20-%20Atual.pdf

    *

    Um Temeroso Tumbeiro

    “Manifestoches”

    “Golpresários”

    “Vampiresários”

    Samile Cunha/Fantasia: Quem é o Pato?

     

  10. Excelente matéria. Resumo
    A

    Excelente matéria. Resumo

    A Beija Flor trata com superficialidade a causa dos problemas brasileiro (povo corrupto por origem)

    A Tuiuti, em revanche, apresenta a versão mais acadêmica e profunda dos problemas brasileiros (sistema escravagista, dominante, o pilar da formação histórica de nosso povo)

     

  11. Tuiuti e Beija Flor

    Boa tarde

    Só para ressaltar que tanto uma quanto a outra, as duas escolas, recebem dinheiro publico. A beija flor tem um historico de bajulação do governo militar brasileiro, lembra? É só procurar se informar de como ela subiu para o grupo especial. Em 2015 a beija flor recebeu dinheiro de uma ditadura africana. E isso foi assumido pelo cacique da escola de samba, neguinho da beija flor. Ele admite que as escolas de samba estão onde estão graças ao dinheiro do jogo do bicho. Ele disse TODAS as escolas. Vamos parar com a hipocrisia. As duas escolas mamam nas tetas do governo e recebem dinheiro sujo do outro lado. Vamos deixar a ideologia de lado e pensar realmente no Brasil.

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