Educação política, a subjetividade integral e uma consciência crítica coletiva contra a ignorância, por Cesar Calejon

As escolhas políticas constituem, em última análise, o caráter das instituições ideológicas (conjuntos de premissas e ideias) e físicas (entidades formais) que orientam a formação de uma sociedade civil moderna.

Educação política, a subjetividade integral e uma consciência crítica coletiva contra a ignorância

por Cesar Calejon

O elemento mais elementar à ascensão e manutenção do bolsonarismo no Brasil é a ignorância, no sentido literal do substantivo feminino: estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo. Com mais de 11 milhões de analfabetos e centenas de milhões de pessoas que se instruem quase exclusivamente via Internet e televisão, o Brasil segue extremamente carente de educação política genuína para atingir um nível de individualidade mais integral e produzir uma consciência crítica coletiva por meio da qual fatos são fatos. 

Mas o que é educação? Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira e considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, define a educação como “o processo constante de criação do conhecimento e de busca da transformação-reinvenção da realidade pela ação-reflexão humana”. Em sua obra clássica, intitulada Pedagogia do Oprimido, Freire afirma também que “a educação é libertadora quando o oprimido aprende a identificar e a questionar a sua relação com o seu opressor” para ser capaz de utilizar esta educação como “instrumento de mudança e justiça social”.

Seguindo este mesmo raciocínio, mas aplicado à vida social dos seres humanos, o conceito de ordem, de acordo com Hedley Bull, o renomado professor de Relações Internacionais, significa um “arranjo específico da vida social que seja adequado à promoção de determinadas metas e/ou valores essenciais à vida do sujeito”. Ou seja, de acordo com estes preceitos, uma sociedade extremamente instruída e organizada para aniquilar os seus “inimigos” não possui educação e não está em ordem. O mesmo vale para as nações e para os indivíduos. Instrução não significa necessariamente educação e organização não é sinônimo de ordem neste contexto. Portanto, mais importante do que simplesmente investir em educação é saber como aprimorar a formação do desenvolvimento desta espécie de consciência crítica coletiva nas próximas gerações. Falhar neste esforço vem nos acarretando efeitos trágicos ao longo dos séculos. Com uma educação reducionista, todos os outros aspectos do desenvolvimento social e da vida em geral ficam debilitados. 

O que é política? O que são escolhas políticas? Quem as faz? Por definição, política é a “arte ou ciência da organização, direção e administração de Nações ou Estados”. Desta forma, todos os agentes envolvidos em determinado contexto social fazem escolhas políticas de alguma maneira. Todos os seres humanos, sem exceções e incluindo até os bebês, que choram quando querem mamar ou sentem dor, adotam medidas políticas, mais ou menos conscientes, em diferentes níveis e de diversas formas. Neste sentido, a política é uma característica inerente e irrefutável da vida humana.

Uma escolha política não significa unicamente se declarar a favor de determinado partido, ideologia ou candidato. Quer dizer, principalmente, que é preciso escolher como tratar um vizinho no elevador, parar ou não na faixa para o pedestre atravessar, lesar o erário, jogar o lixo pela janela do carro, sonegar impostos ou prejudicar um colega de trabalho para obter uma promoção, por exemplo. Entre muitos outros aspectos que formam a rotina cotidiana. Neste contexto, as escolhas políticas constituem, em última análise, o caráter das instituições ideológicas (conjuntos de premissas e ideias) e físicas (entidades formais) que orientam a formação de uma sociedade civil moderna. A questão principal neste caso é que o nível de consciência das tomadas de decisões políticas cresce na proporção em que aumentam os recursos intelectuais de determinado povo, mas não necessariamente de forma automática ou imediata, e tendo em vista um conceito específico do que são e para que servem esses recursos cognitivos, efetivamente. 

De qualquer forma, o fato é que desconhecendo os seus processos históricos, a dinâmica que conduz o funcionamento da sua atual sociedade e para onde os indícios por ela produzidos estão apontando no futuro, determinada nação está literalmente cega. Assim, resta à população somente basear todas as suas escolhas, sua visão e atuação sobre o mundo, no que se absorve por meio de determinado jornal, revista, rádio, TV, redes sociais ou WhatsApp. Sem questionamentos mais profundos ou qualquer tipo de avaliação crítica para lidar com o que se recebe. 

Para Guillermo Arias Beatón, psicólogo com doutorado em Ciências Pedagógicas pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas de Cuba (1987), as sociedades modernas produzem indivíduos que não são capazes de desenvolver o que ele chama de “subjetividade integral”. 

A subjetividade é o termo usado para conceituar a propriedade humana de transformar em subjetivo (espiritual, psíquico, mental ou psicológico) aquilo que o sujeito vive em sua vida concreta, sendo a sua máxima expressão a formação da consciência, da autoconsciência, do comportamento humano e da personalidade. Ou seja, o psíquico ou a subjetividade são ideias, emoções, sentimentos, as funções psíquicas superiores (linguagem, cálculo, desenho, escrita, artes, percepção, memória, atenção, pensamento, formação de conceitos etc.) e o emprego dos símbolos, signos e significados. Os conhecimentos adquiridos e o poder de ser capaz de explicar a nossa existência, da natureza e da sociedade por meio deles. Estas formações psíquicas ou subjetivas são, no ser humano, de natureza cultural, histórica. São produzidas em um ambiente ou contexto social. Conhecer este ambiente é fundamental.  

Esta qualidade do desenvolvimento psíquico humano (ou da subjetividade humana) depende da educação, da formação que o sujeito recebe ao longo de toda a sua vida. Existem diferentes níveis de desenvolvimento dessa subjetividade ou mentes. Podemos notar isso facilmente quando olhamos para a diversidade humana. Então, esta formação depende muito da integralidade que a educação oferecida apresenta, para que o sujeito possa apropriar-se ao máximo de todos os conteúdos e meios de cultura, dos conhecimentos acumulados mais variados, para ser capaz de vivenciar as emoções, os afetos e os sentimentos em todas as suas expressões, estando ciente deles. Além disso, que esteja também consciente de como se formam as suas necessidades e da existência da tarefa do ser humano de atuar em benefício de outros seres humanos.

Quando a educação é incompleta e elaborada somente para habilitar e capacitar o sujeito ou, em outras palavras, para torná-lo apto a produzir, um crime contra a humanidade é cometido porque o processo de desenvolvimento integral dos seres humanos é tolhido. “Esse é o pior erro que o ser humano vem cometendo ao longo da História. Felizmente, mesmo com as contradições e os erros típicos das suas épocas, temos alguns legados de pensamentos dos antigos na Ásia, na América Latina e, no século XVII, Francis Bacon, no Ocidente. Todos estes pensadores nos alertaram sobre este mal que vem sendo feito pelo ser humano por milênios. Eles nos explicam, com seus conhecimentos e sentimentos, esses males”, ressalta Beatón. 

Além disso, no momento da crise da aristocracia e do feudalismo, os renascentistas e iluministas também destacaram esta questão, mas a sociedade de exploração, que foi organizada por parte da população, frustrou estas observações e desenvolveu o que estamos vivendo até hoje, que era o ideal ou a utopia daquela época. Talvez esse tenha sido o caminho para organizar a sociedade na História e o que foi necessário acontecer para produzir o desenvolvimento das forças produtivas que temos hoje. Apesar disso, já passou da hora de analisarmos criticamente essas contribuições dos nossos anciões. 

O problema é que a ambição, o hedonismo, a premissa de que há seres fortes em detrimento de outros fracos e as vaidades humanas produzem tudo o que temos hoje e não permite que as mudanças necessárias na sociedade viabilizem, finalmente, o tipo de educação que desenvolva a subjetividade de forma integral e produza uma consciência crítica coletiva nos seres humanos. Porque há pelo menos 800 mil anos o homo sapiens já possui as condições biológicas para alcançar o desenvolvimento pleno destes aspectos que são fundamentais para almejarmos níveis superiores de desenvolvimento humano.

Neste processo está incluída a educação tradicional, que geralmente é muito insuficiente, além de organizada e fornecida para os seres humanos apenas para formar competências, recursos cognitivos e intelectuais: sem virtudes, sentimentos, estados emocionais ou motivações verdadeiramente humanas, a fim de produzir o que o paradigma atual exige. Trata-se de uma educação para contribuir na formação de um ser humano que atenda às demandas da natureza alienante desta sociedade. 

Consegue-se, de uma forma ou de outra, que esta educação não permita a formação e o desenvolvimento desta subjetividade integral e, consequentemente, de uma consciência crítica coletiva, que implique uma concepção do mundo que ajude as pessoas a explicarem criticamente a existência e a vida. Tudo isso é apoiado não apenas pela instrução oferecida pelas escolas, mas também pela educação produzida pelos meios de comunicação, que são dominados pelas elites das sociedades atuais em praticamente todo o planeta e reforçam todo este mecanismo.

Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas e escritor, autor do livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Enquanto isso os bolsonaristas fanáticos e agressivos do PSL já estão invadindo colégios…
    segundo o 247, Colégio Pedro II foi invadido por dois desses provocadores e sem qualquer aviso prévio ou autorização

    por segurança, foi preciso chamar a PF para acompanhar a invasão

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador