Forças Armadas para quê?, por Arnaldo Cardoso

Na análise de Oliveiros a não restituição do poder aos civis em 1965 e o que se seguiu ao governo Castelo Branco foram resultantes da vitória do Partido Fardado sobre o Estabelecimento Militar.

Forças Armadas para quê?

por Arnaldo Cardoso

Foi no clima sufocante de mais um dia de recordes de novos contágios e mortes pela Covid-19 no Brasil e notícias sobre a incontornável demissão do Ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello – mais um dos militares que integrou o governo Bolsonaro e saiu em contexto nada favorável – que reli o artigo “Sobre a reforma militar” escrito por Oliveiros S. Ferreira e publicado em 09/02/2000 no jornal O Estado de S Paulo. Nele, o experiente estudioso da política brasileira retomou a pergunta “Forças Armadas para que?” que segundo ele “perturba a organização militar desde o Império” e que tanto no meio militar quanto na sociedade civil ainda não teve resposta.

Comum nas análises de Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), cientista político, professor, pesquisador, jornalista e autor de mais de uma dezena de livros – alguns tornados clássicos das Ciências Sociais – o encontro da Ciência Política com a História e a Sociologia lança luzes e amplia a compreensão sobre questões obscuras para a maioria. Ainda no referido artigo Oliveiros expõe que: “o questionamento sobre a necessidade da existência de Forças Armadas permanentes vem sendo feito desde o Primeiro Reinado, acentuando-se, por incrível que possa parecer, menos de 20 anos depois de terminada a Guerra do Paraguai. […] Muito da responsabilidade, para não dizer da culpa, por não se ter ainda respondido à questão primordial é da República”.

Para todos que já leram escritos de Oliveiros ou que assistiram suas aulas sobre política brasileira conhecem sua crítica de que com a derrubada do Império e criação da República perdeu-se o entendimento do que é o Estado.

Oliveiros considerava que a pergunta “Forças Armadas para que?” só poderia ser respondida se governo, sociedade e os militares respondessem primeiro “se [as Forças Armadas] serão, na eventualidade, chamadas a intervir, onde e como”.

Vale aqui recordar que o contexto em que Oliveiros escreveu o artigo ora abordado, foi o do início do segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foram extintos os quatro ministérios militares existentes (Estado-Maior das Forças Armadas, Exército, Aeronáutica e Marinha) e criado em 10/06/1999 o Ministério da Defesa, comandado por um civil, ao qual os militares passaram a responder.

Ilustrando sua argumentação, Oliveiros retoma algumas palavras (incômodas e reveladoras, segundo ele) do discurso de FHC ao dar posse ao Ministro da Defesa, quando, após afirmar que o crime organizado e o narcotráfico eram “os novos problemas a serem enfrentados pelo país”, o então Presidente emendou “Sem que com isso se confunda a missão específica das Forças Armadas de garantir a integridade territorial, a soberania nacional e a vigência da Constituição.”

Antecipando cenários futuros, Oliveiros expressou no artigo seu temor de que diante de uma “falência dos instrumentos normais do Estado brasileiro para combater o crime organizado e o narcotráfico” as Forças Armadas encontrassem na “missão policial uma de suas razões de ser”, o que significaria, segundo o professor, o fim das Forças Armadas como tal.

Os anos que se seguiram deram razão aos temores de Oliveiros, ao dar lugar a uma sucessão de eventos que se mostrariam danosos, para o Estado, os governos, as Forças Armadas e a sociedade. (O que diria Oliveiros, diante do atual estado de coisas?).

Oliveiros empreendeu muito de seu vigor intelectual na tentativa de compreender as intricadas relações entre a sociedade civil e o Estado brasileiro e, especialmente, a marcante presença dos militares na história política brasileira, cujos principais atores são o Estado (a União), os Estados da Federação (oligarquias) e os militares. Particularmente sobre os militares merecem menção os livros “Vida e morte do partido fardado” (2000) e “Elos Partidos. Uma Nova Visão do Poder Militar no Brasil” (2007).

Em “Vida e morte do partido fardado” o autor expõe logo no início do livro que “no longo período que vai de 1821 a 1969 houve momentos em que, no mundo político e civil, as Forças Armadas foram consideradas como o inimigo do Poder Constitucional; outros, em que próceres do mundo civil bateram às portas dos quartéis para pedir aos militares que interviessem na política para ajudá-los a manter o status quo […]”. Para nos conduzir à sua reflexão, Oliveiros salienta que “É preciso deixar bem clara, desde o início, a distinção fundamental entre duas posições: quando se consideram as Forças Armadas como inimigas do Poder Constitucional, atribui-se a elas uma capacidade decisória própria, que as transforma por assim dizer num ator principal, sujeito autônomo na história do Brasil; quando pelo contrário, elas são apresentadas apenas como instrumento, convocadas a fim de apoiar os projetos de manter intocados a distribuição de riqueza e os privilégios sociais e políticos, ou para impor, pela força, mudanças na estrutura social, perdem sua condição de protagonistas e passam a ser coadjuvantes das ações dos civis”. Oliveiros frisa que o mais ausente nesses cenários é o próprio Estado.   

No capítulo “O Partido Fardado em ação” Oliveiros sugere que “Exatamente porque a proclamação da República foi obra do Partido Fardado, é preciso atentar para alguns aspectos que contribuem para melhor definir a maneira pela qual ele intervém na política nacional.”

Com esse sentido, no capítulo “A Corporação contra o Partido” Oliveiros expõe seu entendimento de que em 1964 embora tenha sido o Partido Fardado que apresentou o nome do marechal Castelo Branco para assumir a presidência do Brasil, o mesmo tornou-se seu adversário quando seus integrantes perceberam que Castelo Branco não obedeceria aos seus desígnios, ficando isso claro “a partir do instante em que ele não permitiu que os IPMs para apurar corrupção ficassem sob a direção dos comandantes de áreas, centralizando as investigações na Comissão Geral de Investigações.”

Na análise de Oliveiros a não restituição do poder aos civis em 1965 e o que se seguiu ao governo Castelo Branco foram resultantes da vitória do Partido Fardado sobre o Estabelecimento Militar.

Nas páginas finais do livro, publicado vinte e um anos atrás, Oliveiros avaliou que o Partido Fardado havia morrido e entregado à hierarquia, à burocracia militar a tarefa de compreender os problemas do povo.

Nos últimos dois anos o que vem se passando na política brasileira sob o governo Bolsonaro – apoiado por frações do Estabelecimento Militar (Partido Fardado redivivo?) – com traumáticas consequências para a vida social, tem provocado entre analistas da política aturdimento e interpretações conflitantes, e se revelado um momento oportuno para a leitura ou releitura da obra de Oliveiros.

Com o péssimo desempenho (não reconhecido pelo governo) e incontornável demissão do general Pazuello do Ministério da Saúde, analistas viram nesse um caso exemplar das contradições da relação entre as Forças Armadas e o governo do ex-capitão reformado. A estupefação entre infectologistas e demais profissionais da classe médica e por amplos setores da opinião pública diante da incompetência, mediocridade e estupidez demonstradas através de declarações e ações do ex-Ministro e de outros fardados ocupando altos cargos do governo federal tem feito todos se indagarem não só para que servem, mas para quais ações estão capacitados e se essa amostra dos quadros das Forças Armadas – que hoje integram o governo – são representativas do que se tornaram as Forças Armadas do Brasil.

Referências:

FERREIRA, Oliveiros. Vida e morte do partido fardado. São Paulo: Editora Senac, 2000.

FERREIRA, Oliveiros S. Sobre a reforma militar. São Paulo: Estadão, 09/02/2000. Disponível em: http://www.oliveiros.com.br/sobre-a-reforma-militar/

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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