Globo x Intercept: manobra diversionista pretende inverter o jogo e vincular denúncias a fake news, por Sylvia Debossan Moretzsohn

Os desdobramentos da cobertura deixam agora mais clara a tática diversionista dos veículos do Grupo Globo: centrar fogo na história do ataque hacker para desviar a atenção dos fatos gravíssimos que os diálogos revelam

do ObjETHOS

Globo x Intercept: manobra diversionista pretende inverter o jogo e vincular denúncias a fake news

por Sylvia Debossan Moretzsohn*

A primeira resposta ao profundo abalo que as reportagens iniciais do Intercept Brasil causaram, no domingo, ao expor a conspiração entre o então juiz e os procuradores da Lava Jato, foi dar publicidade ao “outro lado” e acusar o crime que teria sido cometido com a alegada invasão dos celulares da força-tarefa e a captura das mensagens trocadas pelo aplicativo Telegram.

Os desdobramentos da cobertura deixam agora mais clara a tática diversionista dos veículos do Grupo Globo: centrar fogo na história do ataque hacker para desviar a atenção dos fatos gravíssimos que os diálogos revelam, tentando inverter o jogo e alardear um ataque às instituições, quando quem as atacou foram seus próprios integrantes, ao desprezarem os limites que a função de cada um deveria respeitar. Mais que isso: tentar esvaziar o trabalho do Intercept e associá-lo à disseminação de fake news.

É o que se depreende da edição Jornal Nacional desta quarta-feira, 12 de junho, repetida no Bom Dia, Brasil na manhã seguinte (13/06). “As investigações iniciais mostraram que o ataque de hackers a autoridades ligadas à operação foi muito mais amplo do que se supunha”, disse a âncora do JN. A matéria começa com a denúncia de que o grupo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) no Telegram teria sido invadido na terça, dia 11 – ou seja, os hackers continuariam agindo. Momentos depois, destaca nota da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, numa sequência que afirma a possibilidade de um hacker fabricar diálogos, o que tornaria impossível atestar a veracidade do que vem sendo divulgado e abriria espaço para a disseminação de fake news.

Por isso a insistência em sublinhar que se trata de conversas “atribuídas” a Moro e Dallagnol: porque pretende-se sustentar a hipótese de que tenham sido forjadas pelo tal hacker.

Curioso é que a reação imediata dos envolvidos não levantou qualquer dúvida sobre a autenticidade do material publicado pelo Intercept. O MPF da força-tarefa de Curitiba emitiu extensa nota em que acusava “interesses inconfessáveis” nesse ataque à Lava Jato e dizia que “os dados eventualmente obtidos” não sugeriam o cometimento de qualquer irregularidade. Já Moro foi mudando de argumento conforme o tempo passava: primeiro lamentou o sigilo em torno da fonte e afirmou que não havia nada de anormal no conteúdo das mensagens – ou seja, em momento algum contestou-as, embora argumentasse que estariam descontextualizadas. Depois disse que não se lembrava de ter tido aquelas conversas. Mas isso o JN não fez questão de recordar.

A reportagem também informou que os celulares de dois parlamentares haviam sido hackeados.

É uma conhecida tática diversionista, precisamente a que foi utilizada décadas atrás na inútil tentativa de desqualificar o trabalho do jornalista Janio de Freitas, que em 1987 utilizou um artifício tão engenhoso quanto simples para mostrar a fraude na concorrência para a licitação das obras da ferrovia Norte-Sul: publicou um anúncio com mensagem cifrada no caderno de classificados da Folha de S. Paulo, que indicava o nome das empreiteiras vencedoras. Pouco depois começaram a proliferar anúncios do mesmo teor, para tentar espalhar a ideia de que a publicação original não tinha o peso que lhe fora atribuído.

Mais curioso, no caso da suposta invasão do grupo do CNMP, é que o hacker se apresenta alegremente (“sou o hacker”) e, depois de explicar que pretende apenas alertar os demais, escreve: “outrossim, vale ressaltar que não acessei o dispositivo de ninguém”. Mais bandeiroso, impossível, e é claro que isso não passou despercebido daqueles que, nas redes sociais, vêm se divertindo com a evolução dos acontecimentos.

No Globo, que traz na capa a mesma matéria “investigativa” que orientou o noticiário televisivo, a especulação avança para a hipótese de um complô internacional – releve-se a repetição da palavra “ataques”, é dessas coisas que acontecem quando se corre contra o relógio: “Em meio à crise deflagrada pelos ataques, procuradores discutem entre si as mais variadas teses sobre as origens dos ataques. Alguns levantam suspeitas até sobre invasões de origem russa, o que não está comprovado”.

Os russos, sempre eles – e não se trata do “russo”, apelido de Moro nas conversas com os procuradores, mas dos russos à vera, aquelas figuras maquiavélicas que vêm do frio para destruir os melhores valores da sociedade cristã. Afinal, o Telegram – que desde o início negou qualquer possibilidade de hackeamento – é russo, então… Nada como mexer com o imaginário povoado de estereótipos, sobretudo quando se trata da velha pátria do comunismo ateu e sanguinário, ainda que a União Soviética já não exista: uma vez comunista, sempre comunista, ou “globalista”, como gostam de dizer os terraplanistas da atualidade, crentes de que o nazismo é de esquerda.

Num dos últimos artigos que publicou sobre o caso, Luís Nassif apontou os vários aspectos da guerra que a Globo declarou ao Intercept, destacando essa insinuação de “ataque russo”. Mas sublinhou também o ataque pessoal da empresa a Glenn Greenwald, dizendo que havia sido procurada por ele para estabelecer uma parceria na divulgação do material obtido pelo Intercept e manifestando indignação com a entrevista do jornalista à Agência Pública, na qual, ao se referir ao teor dos documentos,  ele diz que a Globo foi “aliada, amiga, parceira, sócia” da Lava Jato, e vice-versa. A nota que Greenwald divulgou em resposta parece incongruente: ele confirma ter procurado a empresa na expectativa de uma parceria como a que estabelecera quando noticiou o caso Snowden – que lhe valeu o Pulitzer – sob a justificativa da necessidade de ampliar a repercussão das informações de agora, considerando a audiência da Globo. Mas como poderia imaginar que a proposta fosse aceita, se o material obtido a implica nessa conspiração?

Esta não é uma questão menor, porque envolve uma importante discussão sobre ética. Mas certamente não é a mais importante no momento. Como Greenwald afirma, “entrar em disputas com a Globo agora seria dar gás àqueles que pretendem desviar a atenção do que vai ficar (sic) o assunto principal”.

O desenrolar dessa cobertura explicita o que são manobras diversionistas verdadeiras. Nada a ver com damarices, bolsonarices e outras tosquices – que, aliás, não eram diversionismo, mas parte da guerra ideológica do governo eleito na esteira do golpe. Cortina de fumaça a sério é o que estamos vendo agora. E é mais uma demonstração de como a Globo é aliada, amiga, parceira, sócia, conivente com todo esse aparato que se montou para derrubar um governo legítimo e estabelecer uma nova ordem que despreza as garantias elementares do direito democrático.

***
*Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada de jornalismo da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho, pesquisadora do ObjETHOS
[publicado anteriormente no Medium]
Redação

7 Comentários

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  1. O que Gleen Greenwald tem colocado é que traz mais medo para a globo, que nunca ficou tão exposta em qualquer outro momento de sua história. O TIB mais de uma vez via Leandro Demori, seu editor executivo e o próprio Gleen postou em seu twitter pessoal no dia 11/06:
    “A Globo é sócia, agente e aliada de Moro e Lava Jato – seus porta-vozes – e não jornalistas que reportem sobre eles com alguma independência. É exatamente assim que Moro, Deltan e a força-tarefa veem a Globo.”
    Tem dado entrevistas a órgãos brasileiros de mídia e tem falado a órgãos de renome da imprensa internacional, reafirmando e prometendo material que estremecerão pilares. É experiente e é de formação advogado nos EUA. Já lidou com “inimigos” dos quais a globo foge, que são os órgãos de espionagem dos EUA. Se fizer acordo com FSP/UOL para liberar por eles, materiais comprometedores, a globo vai ficar em maus lençóis. Em tempos de restrições econômicas, vão gastar muito foco, tempo e dinheiro e onde se escoravam no público com seu resto de credibilidade, podem ir mais para a margem já que esquerda e direita não a suportam. Mercado é cruel e assim como o Neymar (em sendo ou não culpado) já viu contratos e empresas se desvincularem de seu nome, deve acontecer o mesmo com a globo. O deus mercado é hipócrita e falso-moralista e a globo sabe disto. Deus mercado tem interesses de momento. A globo vai fazer o esperado, buscar defender-se em seus jornais. Quando querem fazer armações ou criar suas narrativas vão longe, basta lembrar o estardalhaço da bolinha na careca do José Serra. O TIB foi tão esperto que iniciou as matérias às vésperas da “novela” dominical da globo, “o show da vida”.
    Alea jacta est – a sorte está lançada

  2. Hehehe depende do que for disponibilizado pelo Intercept. Se for uma bomba, bye, bye. Neste jogo quem tem a preferência é o Intercept. Logo, os outros dependem dele pra agir. Vão tentar, claro, impedir a divulgação. Mas, como se sabe, ela pode vir do fora do Brasil.

  3. A Rede Globo de comunicação nunca perdeu tanto, acreditar que ela ajudou a promover um candidato que lhe daria cortes financeiros imensos por causa de Moro é locura.

  4. As táticas da globo a gente conhece bem.
    O modo como ela se apodera de uma narrativa não é nem novidade e nem segredo: é escola.
    A novidade aparecerá na contranarrativa, que deverá ser maciça, surpreendente e desconcertante, e de tal forma, que a globo teria que se reinventar para desmenti-la.
    Com a palavra Glenn Greenwald.

  5. “outrossim,
    vale ressaltar que não acessei o dispositivo de ninguém”.
    um hacker jamais usaria essa palavra tão antiga….
    isso desmascara essa farsa de hackeamento….
    no mais, resta destacar o brilhante artigo
    da professora, cujo final sintetiza o horror e
    a infamia de nossos tempos e esse
    estado de exceção seletivo:
    “é mais uma demonstração de como a Globo
    é aliada, amiga, parceira, sócia, conivente com
    todo esse aparato que se montou para derrubar
    um governo legítimo e estabelecer uma nova
    ordem que despreza as garantias elementares
    do direito democrático.”

  6. E a guerra continua, mas com sérias e pândegas derrotas da Globo. Ontem o Yahoo deu que Ali Kamel declarou que Greenwald procurou a firma “Globo” semana passada fazendo uma proposta de trabalho: publicaria no programa “Fantástico” mais uma parte das denúncias contra a Lava Jato e seu entorno desde que pudesse fazê-lo sem que a firma soubesse antes o que seria revelado.

    https://br.noticias.yahoo.com/greenwald-mente-diretor-globo-005035318.html?fbclid=IwAR0v8qKX6gSU6-G6B2dY9Zud4DjRtvomD4nGK-L8gX7EdtgVzZ3iq0smuQQ

    Diz Kamel que recusou a proposta:

    “A isso se chama cheque em branco. A Globo não dá cheque em banco a ninguém, especialmente a Greenwald.”

    Se isso não é pura invenção de Kamel – dissociação da realidade tem sido sua especialidade há tempos – o tiro saiu pela culatra: Kamel apenas assumiu que censura seus profissionais. E talvez não seja exagero dizer que, se Kamel determina o que que seus jornalistas não podem publicar, provavelmente ele determina também o que seus jornalistas tem que publicar, se quiserem continuar trabalhando naquela firma.

    Como se a firma “Globo” fosse a última Coca-Cola do deserto…

    Imagina se Greenwald, o Pulitzer mais prestigiado no momento e tendo enfrentado os EUA, ia se sujeitar a virar um bonner da vida, um sardenberg ou uma miriam quaisquer…

    Se houve mesmo a proposta e se ela partiu de Greenwald, só posso crer que o estadunidense fez de gozação, só para zoar com o diretor daquela firma. Ou isso ou Greenwald tentou ajudar um colega de profissão a tirar a firma em que trabalha do buraco cada vez maior que cava com seus próprios pés.

    Mas não se descarta, como disse acima, que tudo isso não passe de distorção ou mesmo pura mentira de Kamel: ele está habituado com esquizofrêncas dissociações da realidade.

    A conferir…

    Em tempo: Já pensou se foi o governo dos EUA que entregou anonimamente as gravações da Lava Jato a Greenwald? Um jeito, apenas, daquele estado estrangeiro para se livrar do que, a partir de agora poderia começar a se tornar estorvo, a saber: Moro, Dallagnol e cia. poderiam cobrar dos EUA algo como “missão cumprida, senhor”. A ver o que vem acontecendo em várias cidades estadunidenses, a divulgação midiática de eventual proximidade de Bolsonaro, Moro e turma com pessoas daquele país não parece ser do interesse dos EUA, não é mesmo?

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